A política de Redução de Danos no Brasil e os direitos fundamentais do homem
O (En)Cena conversou com Domiciano Siqueira sobre a questão do enfrentamento do uso de drogas no Brasil e das Políticas de Redução de Danos. Domiciano é consultor na área dos direitos humanos ligados aos processos de exclusão social, com ênfase na questão do uso de drogas, trabalhando com grupos de alta vulnerabilidade como; prisioneiros, prostitutas, homossexuais, negros, índios etc.
Domiciano Siqueira – Foto Arquivo Pessoal
(En)Cena: Hoje vemos duas vertentes simultâneas e que vão em sentido contrário à Política de Redução de Danos, a Internação Compulsória e as Comunidades Terapêuticas. Sabemos que muitas dessas Comunidades trabalham apenas duas dimensões do homem: o trabalho e a religiosidade, e negligenciam que outros aspectos como: a dimensão afetiva, a dimensão orgânica e a implicação política desses sujeitos. Como você enxerga isso?
Domiciano: Historicamente no Brasil só existem três olhares sobre as drogas. O primeiro é o olhar da saúde, que vê no uso de drogas uma doença chamada dependência química e propõe como tratamento a clínica psiquiátrica, felizmente a gente vem descobrindo que hospital psiquiátrico não serve para nada, não serve nem para louco. Há uma tendência em transformar o usuário de drogas no novo louco. Como vivemos em uma sociedade capitalista, esse conceito da saúde que vê no uso de drogas uma doença chamada dependência química e que propõe a clínica psiquiátrica como forma de atenção, divide a sociedade em dois grupos: quem tem dinheiro e vai ter acesso às clínicas particulares, e quem não tem dinheiro e depende de serviços como o Centro de Atenção Psicossocial em Álcool e outras Drogas (CAPS AD). Com o fechamento dos hospitais psiquiátricos os CAPS AD passam a fazer o trabalho com os usuários de drogas, desinternando, atendendo essas pessoas de uma nova maneira, baseada no conceito de redução de danos. O segundo olhar sobre as drogas é o da justiça, que não a vê como doença, mas sim como um delito. O tratamento, portanto, não é a clínica psiquiátrica, é a punição. Essa visão também divide a sociedade em dois grupos: quem tem dinheiro para contratar um advogado, e quem não tem e vai preso. O terceiro e último olhar, é o mais antigo, o das religiões. Ela não vê nem como doença, nem como um delito, ela vê como um pecado, portanto, o tratamento não é nem a clínica psiquiátrica nem a punição, é a conversão. A religião é, por sua vez, a única que não divide, não separa ricos e pobres. Se você está convertido estará curado e o problema está resolvido. Quem usa drogas ou é doente, ou é delinquente ou é pecador, então ele raciocina e reage de acordo com aquilo. O olhar que a redução de danos nos propõe é que o uso de drogas não é só uma doença, não é só um delito, não é só um pecado, existe um quarto olhar, é o olhar baseado no nosso conceito de cidadania. A cidadania vê como um direito.
(En)Cena: Você entende a dependência química como doença?
Domiciano: A redução de danos questiona as duas palavras chaves que organizam o nosso pensamento em relação às drogas que são; prevenção e tratamento. Vamos falar de álcool, por exemplo, os adolescentes olham para os adultos que bebem numa boa e veem que a prevenção não foi cumprida, pois a prevenção diz para não usar nunca, é por isso que a prevenção que as pessoas tanto gostam é uma ilusão. É necessário que tanto estado quanto sociedade civil se organize para permitir esse grupo intermediário, onde está a maioria das pessoas. É possível usar drogas e cumprir com as suas responsabilidades, quem duvidar disso que eu estou falando, dá um passeio pela cidade e você verá quanta gente bonita, quanta gente rica, quanta gente boa, quanta gente que estuda e trabalha e vai beber, e depois volta para casa numa boa, não perde trabalho nem família, muito menos não rouba ninguém… Nós temos que parar com essa ideia ilusória de achar que o mundo é o mundo que a gente imagina. O mundo é diverso, a ausência do exercício da democracia, tão importante para nós, é que precisa ser restaurada para que a gente comece a lidar melhor com esses, assim chamados, grupos de alta vulnerabilidade.
(En)Cena: A droga sempre existiu e sempre vai existir, as pessoas usam drogas. O problema não é a droga em si, mas é a relação que a gente estabelece com ela, como você vê essa a relação que essa sociedade estabelece com as drogas em geral?
Domiciano: Tem uma frase histórica, do psiquiatra e professor na UNIFESP, Dr. Dartiu Xavier da Silveira “o contrário de dependência não é abstinência, o contrário de dependência é liberdade”. Isso explica porque somos contrários à internação compulsória… A internação trata de uma doença da liberdade. Nós, principalmente brasileiros, temos um histórico de convivência com a democracia, consequentemente a gente não sabe viver com liberdade, daí a influência tão forte e muitas vezes negativa da ideia das religiões. Eu defendo a espiritualidade, é bom dizer isso, como defensor dos direitos fundamentais, eu defendo qualquer crença, mas agora estamos falando de políticas públicas e quando estamos falando de políticas públicas, a gente não pode pegar a fé individual e transforma-la numa política que vai atender pessoas que não tem religião. Eu acho que a redução de danos é muito polêmica, pois ela não traz só prevenção de doenças, ela traz toda a liberdade à tona e mostra escancaradamente que as pessoas que não tem direito sobre seus próprios corpos, não terão os seus deveres acionados, trabalhados e mobilizados em prol da maioria. Para encerrar essa parte, você vê que no Brasil uma das penas alternativas – e eu sou favorável às penas alternativas – oferecidas é prestação de serviço à comunidade. Prestar serviço à comunidade tinha https://ulbra-to.br/encena/ue ser um prazer a todo mundo, mas no Brasil isso é castigo.1940.
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