Uma leitura sobre a atenção consciente em John Gray.

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Uma parte insignificante da informação que chega aos nossos sentidos é processada de forma consciente. Nos lembramos de fatos que ficaram impressos em nossa memória na proporção de uns poucos, para milhares de outros que são esquecidos. Mas é a conexão entre estas memórias mais raras, mas marcantes, que permite que tenhamos uma noção de continuidade de nosso ser ao longo dos anos. No entanto, um olhar mais detido nos dá a oportunidade de ver como estamos presos a ilusão de que somos uma pessoa unificada em uma alma. Pensamos que temos um centro, uma espécie de eu profundo que pensa, escolhe, decide, e o faz de forma auto consciente. Na verdade é porque somos capazes de esquecer e o fato de a consciência ter este caráter flutuante (que emerge e submerge constantemente) que podemos operar no mundo.

As ações que exigem habilidade, são apreendidas pelo hábito e sua capacidade de oferecer um caminho, em meio a diversidade de coisas que se apresentam, são resultado de operações e cálculos cognitivos realizados inconscientemente. Atravessar uma rua exige muito cálculo matemático, assim como o editor de texto que estou usando configura o texto e corrige a ortografia através da execução de algoritmos matemáticos pré-programados. Como uma raiz cresce na direção dos nutrientes, o cálculo e a cognição não exigem a auto consciência. Não poderiam ser executados eficientemente se fossem realizados conscientemente. O melhor atleta é o que consegue seu melhor desempenho quando se abandona ao relaxamento do fluxo da consciência. Também é assim no modo de entendimento do mundo. As observações das repetições, das constâncias, e das variações permitem um saber sobre o mundo que é intuído a partir do que nos acostumamos a ver. Para mim, felizmente isso nos aproxima dos demais animais e não o contrário.

A ignorância, nesse sentido é uma incapacidade para ver claramente. Curiosamente a ignorância pressupõe uma consciência que incorra em preconceito e idealização do real, em geral em uma forma de simplificação. Ignorância não é a ausência de conhecimento, é a crença que vai contra as evidências. Então, uma consciência de si mesmo que não ceda as evidências de nossa comunhão com o que nos constitui é, na verdade uma desvantagem. Ocorre que uma vida, vivida de forma a ver claramente, não é uma exclusividade humana, ou de alguns humanos.

Viver, em qualquer sentido que possamos conceber, é uma forma de mobilizar informações na forma da emergência de resposta aos estímulos do ambiente. Mesmo nos seres vivos que não possuem sistema nervoso, verifica-se esta reação ao ambiente que envolve graus profundos de cognição. Os animais domésticos, as cobaias em laboratório, os animais que criamos, com fins alimentares ou econômicos, experimentam sensações e variados graus de humor.

É um mero preconceito considerar, por exemplo, a linguagem como uma distinção humana. Plantas se comunicam, lobos e primatas possuem a experiência de organizar-se de forma hierárquica, ficam deprimidos e expressam tristeza, demarcam territórios e trocam informações para articular as formas de uso de um dado território ou nicho ecológico.

O que é peculiarmente humano é a capacidade de registrar a informações em longos feitos de memória e pela escrita. Nessa peculiaridade de criar suporte externos para o armazenamento e tratamento de informação (podemos estar engendrando formas de inteligência) não importa se autoconscientes ou não, que virão a nos superar como espécie. A forma de comunicação que a escrita engendrou é eficiente para potencializar a produção de tecnologias. Gerações podem se comunicar com inteligências que deixaram suas mensagens desde há muito tempo.

Nós temos uma ideia vaga de que nossa obsessão pode significar a ruína. Mesmo quando operamos com o senso comum, a escatologia e a expectativa de que nos dirigimos ao abismo, é recorrente. Em todas as religiões vivenciamos a fé em mitos de destruição e salvação numa vida além dessa. O que poderia ser mais significativo em relação ao sentimento comum que temos com os demais animais, do que essa sensação de que a tudo que está sobre a terra participa de sua dinâmica pré e interorgânica. Ou seja, surge, se desenvolve, decai e desaparece. Mas a intuição de que um Deus eterno, onipresente e onipotente irá julgar nossos erros, salvar os crentes e condenar eternamente os pecadores, é uma forma piedosa de aceitar que estamos destinados a perecer como todas as espécies que vivem ou viveram sobre este planeta.

Estamos vendo que 20 ou 30 anos depois de termos vivido nossa juventude, nos esforçamos para conectar o ser que agora recorda a aquele que é recordado. O problema é que lembramos dos fatos mais importantes, quase como quem recorda um filme. A cenas mais dramáticas, felizes ou tristes, ficaram impressas em nós. Mas milhares de outras são esquecidas. As que conseguimos lembrar são como ancoras onde depositamos a convicção de uma unidade que nos confira uma identidade essencial, mas livre para construir seu caminho.

Quando vemos um filme novamente, nos surpreendemos com o que não notamos na primeira vez que o assistimos. Mas se o vermos ao longo da vida, diversas vezes, veremos que não há coisas que não vimos. Há as que vimos e que nos imprimiram uma memória. Nas novas vezes em que voltamos ao filme, temos a oportunidade de vermos aflorar na consciência, aspectos que antes haviam ficado registrados diretamente no nosso inconsciente.

Há outras formas de perceber que a maior parte da informação que nosso sistema nervoso registra e articula em formas de resposta é processada de forma inconsciente. Não é que nossa atenção consciente possa ser expandida até as profundezas de nosso inconsciente. O caso é que nos momentos em que adormecemos, deixamos de pensar aceleradamente, meditamos ou exercitamos as habilidades que conhecemos pelo hábito, descansamos da atenção consciente. É por isso que podemos realizar as demais atividades conscientes. É porque podemos agir inconscientemente na maior parte do tempo que podemos ter uma noção fixa de nós mesmos.

Não sabemos se a autoconsciência é, de fato, a forma mais avançada de inteligência. Talvez exista uma espécie de consciência coletiva que ainda não conseguimos conceber ou imaginar. A teoria Gaia parece supor que a terra é como um organismo vivo. Mas sua fração de tempo existencial é muito mais ampla do que a nossa. Toda a cognição mobilizada no mero ato de existir é muito superior ao conhecimento tecnológico que acumulamos nessa etapa de nossa civilização. Não sabemos se o que viermos a ser, será tão ou mais  significativo para nossos descendentes, como são os demais animais para nós.

Mas aqui e agora a sensação do eu é incontornável. É apenas no movimento, no refletir sobre nosso andar pela vida, ao termos a sensação de cumprirmos uma sina e de que criamos um caminho, que desconfiamos…

Referencia:

Gray, John. Cachorros de Palha: reflexões sobre humanos e outros animais. 5ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2007.