Comecemos esta reflexão com duas singelas histórias, uma real outra fictícia. Primeiro a real: circulou outro dia pela internet a bizarra notícia de que um empresário russo deseja transferir seu cérebro para um robô, tornando-se, desta forma, imortal. Para tanto, Dmitry Itskov idealizou e patrocina a Iniciativa 2045, projeto tem como objetivo o desenvolvimento de tecnologias de interface cérebro-máquina que possibilitem "a transferência da personalidade de um indivíduo para um portador mais avançado não-biológico, e a extensão da vida, incluindo a questão da imortalidade”. Como resume o portal G1, "a ideia do empresário é transferir seu cérebro para um androide e, através dele, viver para sempre". Narcisicamente, Dmitry criou um robô à sua imagem e semelhança e pretende, até 2020, "fazer com que uma pessoa conecte seu cérebro a uma máquina e possa controlar o robô remotamente", tal como nos filmes Avatar e Substitutos. Posteriormente a ideia parece ser não somente o controle à distância mas a completa fusão com a máquina, através do "transplante" de seu cérebro em um robô, que levaria consigo o "eu" de Dmitry por toda a eternidade.
Agora passemos à história ficcional: no filme "O homem com dois cérebros" (The man with two brains, EUA, 1983, dir: Carl Renner) o neurocirurgião Michael Hfuhruhurr (Steve Martin) se apaixona por um cérebro sem corpo à espera por um transplante, com "quem" se comunica telepaticamente. Esse cérebro em uma cuba – mantido vivo graças a uma tecnologia desenvolvida pelo cientista Dr. Alfred Necessiter – pertence à mulher dos seus sonhos. O problema é que ela (ou melhor, seu cérebro) não tem um corpo. Hfuhuruhurr, que é incapaz de matar uma pessoa, pensa inicialmente em transplantá-lo em um gorila (mas rapidamente desiste da ideia ao se imaginar fazendo sexo com tal animal). Depois pensa em matar uma prostituta, mas também desiste porque sua amada teria uma voz irritante. Finalmente, Hfuhuruhurr acaba realizando o transplante no belo corpo de sua esposa Dolores Benedict (Kathleen Turner), que acabara de ser assassinada. A piada do filme é que, sem que o neurocirurgião saiba, o "eu" cujo cérebro ele se apaixonou tem uma espécie de transtorno de compulsão alimentar. Com isso, após o processo de transplante do cérebro de sua amada no corpo de Dolores, esta torna-se, em pouco tempo, extremamente obesa, tal como seu "corpo" anterior.
O que estas duas histórias tem em comum é a ideia de que nós somos os nossos cérebros, ou seja, tudo o que somos, pensamos e sentimos não somente ESTÁ no nosso cérebro mas como, de certa forma, É o nosso cérebro. Como afirmou o geneticista Francis Crick, no livro A hipótese espantosa, "você, suas alegrias e tristezas, suas lembranças e ambições, seu senso de identidade pessoal e livre-arbítrio, não são mais do que o comportamento de um imenso conjunto de células nervosas e suas moléculas associadas". Assim, na hipótese de um transplante de cérebro, na verdade o que estaria sendo realizado seria um transplante de corpo, haja vista que o "eu", com todas as suas peculiaridades e singularidades, estaria contido no cérebro – ou melhor, seria o cérebro. Como disse o neurocientista alemão Manfred Spitzer (nesta entrevista), "ninguém quer um outro cérebro, mesmo se ele estivesse cheio de conhecimento. O seu cérebro é sua identidade. Você é o seu cérebro. Se alguém te desse outro cérebro, você não seria mais você". Isto não é tão óbvio? O que pretendo argumentar abaixo é que não: isto não é óbvio e não, não somos o nosso cérebro!
Obviamente – e eu seria louco se negasse isso – não há vida humana possível sem um cérebro. Basta constatar que crianças anencéfalas não vivem mais do que poucos dias. Além disso, lesões significativas no sistema nervoso central comprometem e até mesmo impedem, em alguns casos, a vida. O clássico caso do operário Phineas Cage deixa claro a importância do cérebro na constituição do que somos, da nossa personalidade: após um acidente que lesionou seu lobo frontal, Phineas teve uma significativa e abrupta mudança de personalidade, deixando de ser o sujeito pacato que vinha sendo até então. Isto aponta para o fato de que o cérebro é necessário para estarmos vivos e sermos o que somos. Não há como negar isso. Nenhuma pessoa minimamente sensata se oporia à ideia de que o cérebro é absolutamente imprescindível para sermos o que somos. A existência de doenças graves como o Alzheimer, que atrofiam os tecidos cerebrais e alteram (e mesmo impedem) nossa consciência do mundo e de nós mesmos, e o fato de certos medicamentos influenciarem nossas emoções e nossos comportamentos só comprova esta ideia.
Ao mesmo tempo, apesar de absolutamente necessário, ter um cérebro não é suficiente para sermos o que somos. Antes de tudo, precisamos de um corpo. Um cérebro em uma cuba, ao contrário daquele que o neurocirurgião do filme se apaixona, não é nada mais nada menos do que um pedaço de carne. Não há vida possível sem um corpo. Mas e aqueles sujeitos com corpo paralisado ou extremamente comprometido (como o protagonista do filme O escafandro e a borboleta ou o físico Steven Hawking) que, mesmo com o corpo inativo mantém a mente e a criatividade ativas? Isto não comprovaria que o corpo é desnecessário? Absolutamente não! Nos dois exemplos citados, os sujeitos, apesar de todo comprometimento, mantinham (e no caso de Hawking, mantém) uma relação corporal com o mundo e com as outras pessoas. No caso do personagem do filme, seu contato com o mundo se dava através da audição, do olhar e do piscar. Já Hawking se utiliza de uma moderna tecnologia que transforma as vibrações de sua garganta em fala. Além disso ele se relaciona com o mundo através do olhar, da audição e do tato. No caso de pessoas com o corpo completamente paralisado, a relação com o mundo é impedida. Mesmo que se desenvolvam formas de se comunicar com estas pessoas (e isto já está sendo testado), alguém dúvida da importância do nosso corpo na nossa relação com o mundo, com as pessoas e com nós mesmos? Obviamente, além de um corpo é necessário um mundo para este corpo atuar e se relacionar. Neste sentido, como aponta o filósofo Alva Noe, no livro Out of our heads, "você não é o seu cérebro. Você tem um cérebro, sim. Mas você é um ser vivo que está ligado a um ambiente, você tem um corpo e interage de forma dinâmica com o mundo. Nós não podemos explicar a consciência somente em termos cerebrais porque a consciência não acontece no cérebro sozinho". Ou seja, nosso cérebro está num corpo que, por sua vez, está num mundo e com ele interage. Não somos um cérebro em uma cuba.
Para Noe, a atividade neural é necessária, mas não suficiente para explicar nossa consciência de nós mesmos e do mundo. Segundo ele, "não há nada dentro de nós que pensa e sente e é consciente. A consciência não é algo que acontece dentro de nós. É algo que nós fazemos". Para Noe, o cérebro é necessário para a consciência assim como um motor é necessário para um carro. Mas o motor não "dá origem" à condução; dirigir não é algo que acontece dentro do motor. Da mesma forma, a consciência não é algo que ocorre dentro do cérebro. Outra metáfora utilizada por Noe é o dinheiro. Será possível dizer que o valor do dinheiro está na nota? Obviamente não. Se pegássemos um microscópio e observássemos a nota, não encontraríamos nela qualquer valor, porque este não se encontra em suas propriedades químicas. O que faz uma nota de 10 reais valer efetivamente 10 reais são práticas, convenções e instituições e não qualquer materialidade da nota. Da mesma forma, para Noe, a consciência não está no cérebro, mas sim – como o título de seu livro aponta – "fora de nossas cabeças". Mas isto não significa que Noe defenda a noção antiga de um espírito ou alma imaterial. Não! Noe defende que a consciência é relacional, não material. Isto pode parecer estranho num mundo cada vez mais materialista e cerebrocêntrico, mas faz todo o sentido. Se pararmos para pensar, o amor, por exemplo, não tem como estar no cérebro. Certamente existem regiões do cérebro que se ativam quando pensamos ou encontramos a pessoa amada (ou quando fazemos, pensamos ou sentimos qualquer coisa) – mas isto não significa que o amor seja esta atividade cerebral. Seguindo o pensamento de Noe, o amor não está no nosso cérebro, mas na relação das pessoas umas com as outras e com o mundo. O amor, assim como qualquer outro sentimento, valor ou ideia, não está em qualquer lugar específico, mas na dinâmica das relações. Neste sentido, a verdadeira hipótese espantosa é que nós NÃO somos o nosso cérebro. Nós somos muito, mas muito mais: somos o todo e não uma parte, somos nossas relações com os outros e com o mundo – como disse o sociólogo Norbert Elias, "somos partes uns dos outros". Não podemos ser reduzidos ou nos reduzir a um pedaço de carne, por mais nobre que seja esta carne.
OBS: Sobre a ideia de que a depressão é uma doença cerebral, Alva Noe escreveu o seguinte em seu livro: "Em um sentido, isto é obviamente correto. Existem assinaturas neurais da depressão. Além disso, a ação direta sobre o cérebro – na forma de uma terapia medicamentosa – pode influenciar a depressão. Mas em outro sentido, isto é obviamente incorreto. É simplesmente impossível entender porque as pessoas ficam deprimidas – ou porque o indivíduo está deprimido aqui e agora – somente em termos neurais. A depressão ocorre em pessoas reais com histórias de vida reais face a eventos da vida real. O dogma de que a depressão é uma doença do cérebro serve aos interesses da indústria farmacêutica, sem dúvida; também serve para desistigmatizar a luta contra a depressão, o que é uma coisa boa. Mas é falso" (tradução minha)