A Cura

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– Bom dia doutor

– Bom dia! Fale-me sobre o que o trouxe aqui.

– Bom doutor, nem sei como começar.

O médico experiente, acostumado com tantas e tantas histórias estranhas que entravam no seu consultório esboça um sorriso e tenta deixar o cliente relaxado.

– Fique tranquilo. Que tal então começar do começo? Estou aqui para ouvi-lo e ajuda-lo.

– Doutor….é que…hum….como é difícil.

O cliente, um homem aparentando seus 40 anos de idade parecia agora um tanto dispinéico e a despeito do ar condicionado, já brotavam gotas de suor na testa. Estava decididamente ansioso.

– Por favor, fique calmo, respire fundo, não há pressa!

– Bem doutor o que me motiva a vir aqui é que me sinto doente ultimamente.

– Claro. Estou aqui para ajuda-lo. O que o senhor está sentindo?

– Sabe, eu tenho muitos amigos. Sou uma pessoa muito sociável. Na verdade não aguento ficar em casa. Venho de um casamento fracassado e um dos motivos da separação foi esse. Minha ex-mulher não suportava a vontade que eu tinha de sair o tempo todo.

O médico começou a esboçar os primeiros sinais de impaciência no leve arquear de uma das sobrancelhas. Que diabos aquele homem queria dizer?

– Enfim doutor. Tenho notado que apesar de minha vida sexual ser satisfatório, eu ando meio triste ultimamente. Sabe? Não tenho dificuldades em arrumar namoradas mas…

O médico esboçou um sorriso. Devia apenas ser um homem  maduro já tendo lá seus primeiros problemas com  disfunção erétil ou ejaculação precoce. Ah se não fosse a ejaculação precoce como ele poderia viajar todos os anos para longos passeios na Europa. Bendita invenção da civilização!

– Por favor, continue!

– Sabe…eu tenho alguns amigos gays. Eu nunca tinha percebido o quanto eles eram felizes!

Agora a outra sobrancelha começou a se levantar. Afinal, o que era aquilo tudo?

– Doutor, confesso uma coisa que eu ainda não disse para ninguém!

Pronto, pensou o médico, agora esse cidadão resolveu sair do armário no meu consultório. Acho que ele errou de porta!

– Preciso da sua ajuda doutor!

Ai ai ai! A coisa vai passar do limite agora, pensou o médico que já estava na cadeira como um piloto pronto a apertar o botão de ejeção do caça de combate!

– Doutor, eu não aguento mais ser hetero, por favor me cure!

– O que?

– É isso doutor. Os gays são mais felizes, são mais livres e românticos. São mais inteligentes. Frequentam lugares mais interessantes. Ah, e todos que conheço são muito inteligentes. O Sr sabia que Michelangelo era Gay? E o Caravvagio? Leonardo Da Vinci era comprovadamente gay. Dizem que O Shakespeare também era gay. O Tchaikovsky com certeza era e o Oscar Wild então?! Alias foi ele que disse que a homossexualidade é o amor que não ousa dizer o seu nome, não é lindo? Mas hoje esse amor pode dizer o nome, e eu quero dizer!

– Meu senhor, acho que precisa de um psiquiatra. O senhor veio ao médico errado.

– Mas doutor, estou doente, muito doente. Eu quero ser gay mas não sinto nenhuma atração por outro homem. Por favor, me cure, faça alguma coisa. Eu quero estar na parada gay no ano que vem não só como simpatizante. EU QUERO SER GAY!

Agora todo resto de polidez havia sumido no médico. Aos berros ele disse:

– Olha aqui. O senhor não está doente portanto não posso prescrever remédios e tratamentos. O que o senhor tem é uma  coisa natural, atração pelo sexo oposto!

– Mas eu acho a vida de heterossexual muito chata. E tem mais, me sinto desenturmado dos meus amigos gays. Quero uma outra vida, quem sabe um transplante de alma. Não existe nenhuma terapia para isso? Simplesmente cansei de ser hetero, ora! Não dizem que tudo é uma questão de escolha? Não falam que é uma opção sexual? Mas eu já me decidi e nada acontece. Por favor, me ajude doutor! Existe alguma pílula? Alguma terapia?

– Olha, sinto muito. A única coisa que posso dizer ao senhor é que se aceite como é. O sr não está doente.

O cliente saiu do consultório com uma mistura de tristeza e raiva. Queria ser gay e ninguém o ajudava. Então, pensou assim. Se de fato ele não estava doente…então…era só ir seguindo a vida. Afinal, o médico tinha lhe dito que tudo nele era NORMAL…que bom! Ele devia saber o que falava, afinal, estudou tantos anos!

Vamos parar um pouquinho agora. Se você que estiver lendo essa história for alguém que se rotule como heterossexual pode ter achado isso tudo muito estranho e absurdo. Entre muitas razões, porque você acha normal e natural sua sexualidade. Já se reconhecia assim desde a mais remota infância e teve suas “certezas” reforçadas na adolescência. Pois é. Quando uma pessoa homossexual  lê, vê e ouve a respeito de projetos de lei querem curar sua sexualidade, isso pode soar como um insulto e implicitamente afirma que sua expressão de erotismo e afeto é resultado de DOENÇA. Caso existam gays, como o personagem heterossexual da nossa história, que procuram por “cura” isso é decorrência direta de parte de uma sociedade que chafurda no preconceito e que acha natural impor seus padrões morais e sua visão de sexualidade aos outros.

Aos homossexuais que se sentem tristes, ansiosos e recriminados por sua conduta sexual por pessoas que assim o fazem em nome de valores religiosos, um alerta! Mesmo no campo das visões religiosas, existem grupos e instituições que estão prontos a acolhe-los para afirmar que se Deus é amor, o amor não pode ser pecado!

ABAIXO O PROJETO DA CURA GAY!*

* O projeto de decreto legislativo, de autoria do deputado João Campos (PSDB-GO), suspende dois trechos de resolução instituída em 1999 pelo CFP (Conselho Federal de Psicologia). O primeiro trecho sustado afirma que "os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades".

A proposta aprovada ontem anula ainda artigo da resolução que determina que "os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica".

Na justificativa do documento, Campos afirma que o conselho "extrapolou seu poder regulamentar" ao "restringir o trabalho dos profissionais e o direito da pessoa de receber orientação profissional".

A votação é uma vitória da bancada evangélica, que tenta avançar com o projeto há dois anos. Durante o debate, manifestantes exibiram cartazes com frases contrárias ao texto. "Não há cura para quem não está doente", dizia um deles.

Fonte: Folha de São Paulo 19 de junho de 2013