O CONFRONTO DE EXPRESSÕES: A GUERRA NA ERA DA COMUNICAÇÃO?

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Fala-se em caos, em gigante que acordou, em uma nova esperança…
Fala-se em vandalismo, em badernagem e oportunismo…
Mas o que talvez resuma em uma palavra tudo o que tem se passado nas ruas, dentro das casas e no meio virtual é uma única palavra: BASTA!
E é um basta a toda representação, ao falar por, ao decidir por, ao ser conduzido passivamente por…
Há poucos anos atrás, lembro-me de uma conferência dada por Agamben no Rio de Janeiro, na qual ele falava que o Capitalismo atual fazia uma espécie de sacralização do uso e, pelo que entendi, ele se referia a formatação de uma vida, de uma forma de viver produzida e reproduzida por padrões que modulavam nada mais nada menos do que nossa forma de estar no mundo, de produzir possíveis, de sermos construtores e protagonistas de nada mais, nada menos que o nosso próprio viver. Dizia ele que, a seu ver, o desafio dos jovens para o futuro seria a profanação do uso.
Tornar sagrado, continuando a reflexão de Agamben, é retirar algo da esfera humana, afastá-lo da possibilidade de decidir sobre seu uso. Profanar o uso seria, então, devolver à esfera humana à diferença na forma de expressar e de criar possíveis, de produzir mundo de forma autônoma e criativa, fora dos padrões midiáticos, já que a mídia é a máquina expressiva do sistema.
Pois ousaria dizer que o que estamos vendo em marcha é a tal da profanação do uso e, acima de tudo, a guerra entre duas máquinas expressivas. Um Movimento de Passe Livre para a liberdade de expressão e, através dela, uma enxurrada de intoleráveis que, abafados por um só padrão de comunicação, o hegemônico, veio grassando ressentimentos, mágoas e ódios nas almas/ mônadas, diminuindo os afetos alegres e transformando a vida em um tédio enfadonho de não suportar mais tanto descaso e desconsideração. Uma espécie de reação ao assassinato coletivo da cidadania, por não ver canais de abertura.
Acredito que, até no nível metafórico, mas os afetos são mesmo tocados por formas estéticas, o Movimento de Passe Livre abriu caminho para a passagem aos borbotões de todos os intoleráveis. Na enxurrada de dor e desespero de jovens sendo massacrados pelo simples ato constitucional de protestar, estimulado e festejado pela mídia que, ainda por cima, taxa de vândalo e baderneiro o afeto de não tolerar mais, toda uma nação se reencontrou, se viu apanhando, se viu ultrajada em seu direito de ir e vir, não apenas no espaço urbano, mas no espaço vital, no tempo de uma vida que, comprimida, torna sobrevivência e plateia o que deveria ser vida e Ágora.
Ouço um grito de basta a todas as formas de representação. Não por acaso, o movimento recusa bandeiras de partidos, recusa rótulos, recusa lideranças, recusa tapar a cara porque não tem vergonha de se mostrar, é mesmo de apresentação que se trata, de re-apresentação da vida em sua crueza dissonante, heterogênea, viva, expressiva, construtora.
As redes sociais surgem neste cenário, descoberta em sua potência de expressividade autêntica, genuína, na medida em que permite que cada um seja por si mesmo aquele que informa ao mundo o que acontece, o que lhe acontece e, pela primeira vez, parodiando Chico Buarque, “a dor da gente sai nos jornais”. Não nos diários truncados do meio midiático, mas no jornal global, numa espécie de comunalidade de uma vida em movimento…
Gancho para a máquina desejante que encontra, enfim, sua linha de fuga para a castração, abre-se o canal da potência, a linguagem deixa de ser monopólio e a rede midiática se vê contraposta à rede social. Para cada versão hegemônica, explode miríade de versões minoritárias e, como a minoria é o grande lixão da vassoura ávida do sistema, todo o lixo escondido e comprimido aparece na porta principal da casa. Nem subjetividade lixo, nem subjetividade luxo, o que vemos é um combate das formas de produção de subjetividade, uma explosão do diverso, uma subjetividade monstro, com todas as suas arestas, faces, contrafaces, disfarces, de forma que a cada máscara tirada, outra surge em seu lugar, sem nunca rosto. O movimento, enfim, não porta e não comporta identidades. Qualquer tentativa de rotular, perde o movimento, é uma captura dele e, por isto, a frase da multidão só pode ser um Baterbly, “eu preferiria não”, “sem violência”, lembremos que impedir a expressão do vivo é, talvez, a forma mais cruel e insidiosa de violência à vida.
Não é um movimento de direita, embora a direita dele queira se apoderar e esteja se esforçando para dar uma solução final, uma palavra final, uma identidade final, nem que seja à força, àquilo “o que não tem certeza nem nunca terá, o que não tem conserto nem nunca terá, o que não tem tamanho”…
É sim, em sua expressão maior, um movimento de esquerda, mas que, estranhamente, recusa as representações formalizadas de esquerda, como recusa qualquer representação, porque é aquilo “o que não tem decência nem nunca terá, o que não tem censura nem nunca terá, o que não faz sentido” em nenhuma caixinha instituída…
Não faz sentido porque é a própria construção de sentido, é o próprio combate, embate pelo sentido, é a recusa a qualquer forma sagrada e consagrada e, por isto, ouso dizer, é a profanação do uso em andamento.
Direita e esquerda andam atônitas, mas enquanto a direita se infiltra no movimento, tentando cooptá-lo, tentando dar a ele um cunho que não tem, transformando tudo em um espetáculo midiático ou numa manobra de interesses, à esquerda, por não entender como seu ideário aparece diante de uma recusa, sem procurar meios novos de dialogar com o movimento e compor com ele, já o aponta como tendo sido recuperado e dá sinais de querer abandoná-lo.  Portanto, força uma identidade para aquilo que é recusa inegociável dela.
E o movimento diante disto flui, escorre e, de um riacho, vai se transformando em um oceano interminável, uma grande interface, uma superfície na qual nada se esconde, nada se escamoteia, tudo aparece em sua face/disfarce, nem segredo, nem secreto, apenas à mostra, exposta, contraposta em sua manifestação. Um gigante corpo sem órgão capaz de servir de penduricalho para tudo, sem, nem por isto, se transformar em organismo.
Não é um gigante que acordou, porque ele nunca esteve dormindo; não é o despertar da esperança porque ela nunca deixou de ser vigil, é sim a construção de uma máquina expressiva alternativa, rica em sua potência de vida, heterogênea, subjetividade monstro porque é um agregado de afetos em composição, em desafio de sentido e de convivência.
O intolerável encontrou sua máquina expressiva.
O que será, que será?
Que todos os avisos não vão evitar
Por que todos os risos vão desafiar
Por que todos os sinos irão repicar
Por que todos os hinos irão consagrar
E todos os meninos vão desembestar
E todos os destinos irão se encontrar

E mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá
Olhando aquele inferno vai abençoar
O que não tem governo nem nunca terá
O que não tem vergonha nem nunca terá
O que não tem juízo…
Todos os mundos possíveis e incompossíveis estão à solta. Porém expressar o possível é só o começo, falta efetuá-lo, falta dispositivos sociais concretos para encarnar a nova subjetividade nascente. Mas, isto, queira ou não esse movimento, passará por formas instituídas de compor uma nova sociedade, o contrário é fascismo. A democracia, dos males o menor, exige a presença dos partidos e um diálogo com eles. O grande desafio é a construção de uma comunidade por vir, falta o povo de uma multidão que não acredita mais nas formas representativas.
A Ágora foi refeita e esperemos que através dela surja um novo Brasil e, este novo Brasil deve ser construído por todos e cada um de nós. Pois no ranço do velho, ainda se houve o clamar por uma ação messiânica, ainda se coloca a resolução ou a culpa de tudo em formas representativas, isto sim é paradoxal.
Não é um Ele que deve mudar tudo e dar todas as respostas, somos nós que teremos, enquanto nação, que construir e ajudar a construir o que o desejo grita nas ruas e que deixamos calar por tanto tempo.
É o desafio da cogestão, do protagonismo, da autonomia, mas, acima de tudo, da corresponsabilidade pela vida em todas as suas formas de manifestação. Aquilo que Guattari nomeava as três ecologias: a do ambiente, a das relações sociais e a da subjetividade humana e suas formas responsáveis de uso em prol do Planeta.
Bem-vindos todos à caosmose, origem de tudo e aonde nada começa, porque tudo está em constante engendramento: enfim, o lado de fora?
Enfim, esta é só mais uma forma de ver as coisas, a minha própria que, no bojo da máquina expressiva e democrática da RHS, um canal aberto de manifestação para a expressividade do vivo, ouso compartilhar com vocês.