Harmonia dos Sabores: Novos saberes e práticas num Centro de Convivência

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Quero aproveitar o espaço dessa ágora que é a RHS para narrar cenas do meu encontro como pesquisadora com os Centros de Convivência (CECOs) de Campinas.

Os Centros de Convivência são dispositivos intersetoriais que se propõe através de oficinas e atividades grupais promover o cuidado a sujeitos e coletivos, intervindo diretamente na vida comunitária e nas cidades. Embora seja considerado um dispositivo da saúde, os CECOs são espaços abertos à toda comunidade, com olhar atento á grupos de pessoas em situação de vulnerabilidade ou exclusão social. O critério de inserção desse espaço é balizado pelo desejo do usuário de estar ali.

Vou começar neste post pelo CECO Tear das Artes. Nesse CECO escolhi meu encontro com a oficina de geração de renda chamada “Harmonia dos Sabores” para compartilhar com a rede.

A geração de renda é uma característica marcante do CECO Tear das Artes que funciona também como cooperativa, característica que não é comum em todos os CECOS do município. Nesse post, nosso objetivo não será discorrer sobre a geração de renda, mas o que um dispositivo de oficina de geração de renda pode promover, para além da renda, que é importantíssima.

A oficina a que nos referimos, teve início como um grupo de culinária composto especialmente por usuários da saúde mental denominado “Mania por recheio”, que confeccionava pastéis e era composto integralmente por usuários da Saúde Mental. Aos poucos esse grupo foi se profissionalizando, se abrindo para outros usuários, inseridos ou não em tratamentos psiquiátricos e extrapolando o espaço do CECO. Hoje, embora a maior parte dos membros do grupo seja diagnosticada com algum tipo de transtorno mental, o grupo é aberto a todas as pessoas com dificuldade de inserção no mercado de trabalho formal e é composto por usuários do CECO e de vários outros serviços do Distrito Sudoeste. Além disso, esse grupo seguiu compondo rede com outras iniciativas de geração de renda vinculadas à atividade de culinária, dando origem ao “Clube dos Sabores”, um projeto que cria parcerias de espaço e venda entre os diferentes projetos de culinária e geração de renda do município.

Atualmente, o “Harmonia dos Sabores” se pauta nos princípios da Economia Solidária. É composto em média por 10 pessoas, sendo que cada um tem a flexibilidade necessária na oficina para compor esse projeto de trabalho com seu tratamento no CAPS, no C.S ou em outras instituições da rede.  Além da confecção e venda dos produtos no CECO (que trás para dentro do CECO diferentes pessoas do território), o grupo se desloca, pelo menos duas vezes por semana para participar de feiras ou montar barraca para a venda dos pastéis e salgados em diferentes pontos do território extra CECO. O grupo também recebe encomenda de diversos serviços de saúde e da rede intersetorial para organizar a parte alimentícia de reuniões, encontros e eventos em que isso se faz necessário.

Esse movimento foi um dos processos importantes para diluir a representação social do CECO junto à comunidade como um lugar para “loucos”, sendo também um lugar para comprar pastéis e ao entrar e comer um pastel, descobrir que ali tem um Studio, que tem acesso á internet, grupo de informática, alfabetização de adultos, etc…
As tarefas da oficina são divididas entre todos os usuários e técnicos, de acordo com as potencialidades, desejos e limitações de cada um. De tempos em tempos, trocas de funções e corresponsabilização do todo do processo são estimuladas entre os usuários, valorizando a troca de saberes, a aquisição de novas habilidades e a experimentação de novas possibilidades de estar ali.

Ao final do mês, parte da renda adquirida com a venda de produtos é utilizada para a manutenção da oficina e compra de matéria prima e o restante é dividido pelos membros cooperados de acordo com regras pactuadas coletivamente. Essas regras e demais assuntos pertinentes ao processo terapêutico, ao processo de trabalho ou à questões coletivas, são discutidas semanalmente em reunião junto aos usuários e coordenadores da oficina.

Entre muitas coisas que chamaram minha atenção em relação à essa oficina, vou dar destaque aqui a apenas algumas delas.
Primeiramente foi interessante notar como a oficina “escapa” dos limites da cozinha e invade todos os grupos. Estagiários que visitam o CECO, outros grupos que acontecem lá dentro e a vizinhança são invadidos diariamente pelos cheiros, pelos sabores e pela comilança que o grupo produz. Essa é uma marca dos CECOs em geral: Onde há convivência, há comilança!
Como os integrantes da oficina estão no serviço quase diariamente, sua circulação lá dentro é de muita familiaridade e liberdade, o que interfere diretamente do comportamento de outros usuários de outros grupos ali dentro. Como comentou uma usuária que esperava o profissional para apresentá-la ao CECO:
Nossa! Gostei daqui por que vi que as pessoas são bem respeitadas, se misturam com os profissionais numa boa, parece que também são donos daqui, e isso é legal, por que nos outros lugares os profissionais não se misturam (fala de usuária registrada em diário de campo).

Essa familiaridade se reflete também na gestão do CECO e no encontro entre trabalhadores e usuários-trabalhadores. Por que ali, é também o local de trabalho dos usuários que compõe essa oficina. Na reunião do grupo que eu participei, os usuários cooperados discutiam uma forma de negociar com os trabalhadores formais que a louça que eles sujavam deveria ser lavada por eles e não ser sempre lavada pelos usuários cooperados junto com a louça da oficina.
Os trabalhadores usam a cozinha e não lavam a louça… Se for continuar assim, deve ter um revezamento, às vezes os usuários lavam a louça e às vezes os profissionais… (Fala de usuário registrada em diário de campo)

Outro ponto que me chamou a atenção foi o potencial transformador desse modo de trabalho para a vida das pessoas, primeiramente, por que, diferentemente do modo de trabalho capitalista formal, o modo de trabalho que se registra ali é o trabalho vinculado à produção de vida e a redução do sofrimento das pessoas, e não o contrário. Além disso, se abria uma possibilidade de encontro de pessoas muito diferentes entre si, com limitações diversas, potencialidades variadas, e que buscavam uma composição que explorasse ao máximo a potência desse encontro, gerando renda para uns, complementando a renda de outros, transformando a vida de todos.
Aqui eu fiz meus primeiros amigos de verdade, pessoas que não tem medo nem vergonha de sair comigo (depoimento de usuário da oficina Harmonia dos Sabores, registrado em diário de campo)

A possibilidade aberta de inserção no mundo do trabalho se mostrava altamente significativa para a maioria das pessoas ali presentes, por que de certo modo, através de uma atividade cooperada de trabalho, muitos usuários criavam relações afetivas, amizades, encontravam uma ressignificação para suas vidas cotidianas, antes tomadas pelo universo de sintomas e tratamentos, pelo isolamento ou pela baixa autoestima.
O depoimento de um dos usuários dessa oficina é uma das expressões dessa potência:
Eu queria falar do meu CECO. O Tear das Artes foi uma porta que se abriu na minha frente. Eu fazia os tratamentos, que eu faço até hoje no C.S. Minha vida era do C.S pra casa e de casa pro C.S, não tinha vontade de sair, me fechava dentro de casa, não sabia que tinha e-mail, nada. Minha psiquiatra sempre me orientava sobre o Tear, mas eu não me interessava de ir lá, nem sabia o que era Centro de Convivência. E desde que o rumo da minha vida fugiu de mim, minha psicóloga batia na mesma tecla, me estimulando a viver, a conhecer novas pessoas, sair daquela minha rotina, ter convívio. Então, até que um dia eu tive coragem de ir conhecer. A coordenadora do C.S que me levou um dia lá pra conhecer e eu resolvi começar a participar. No começo eu achava que eu não ia conseguir aprender nada ali, naquele local; eu não tinha memória. Até hoje eu falo pra eles: nunca imaginei que algum dia eu ia conseguir fazer um pastel do começo ao fim, vender… Aos poucos isso foi me incentivando, né? Pra mim, eu fui aprendendo a sentir, é como uma coisa que clareou a minha mente que me vez voltar e querer estar com a sociedade, o convívio, a querer estar com pessoas. E isso me ajudou tanto, que até a medicação diminuiu, a psiquiatra foi abaixando e hoje em dia eu tomo muito menos medicamento do que eu tomava antes. O que eu sempre falo: foi lá no Tear, é que parece que a convivência com outras pessoas e com o trabalho foi o que me ajudou demais. Pras pessoas que tem problemas com a convivência ou que tem distúrbios na mente, o CECO é um caminho que ajuda bastante. Isso foi muito bom, muito gratificante pra mim, é bastante bom. (usuário em grupo focal)

Participando desse grupo, ficou evidente também a intervenção que o CECO pode realizar no território e na criação de laços sociais, antes inexistentes.
No último dia em que eu estive no CECO, fui acompanhar a oficina fora de lá, junto com 05 usuários que iriam vender os produtos num espaço garantido semanalmente para o grupo, em frente ao Complexo hospitalar Ouro Verde.

Encontrei os usuários no local combinado, e me surpreendi com a autonomia do grupo, que não estava sendo acompanhado por nenhum profissional formal do CECO.  Por coincidência, naquele dia, os usuários que estavam ali eram 02 deles vinculados ao CAPS e outros 02 vinculados ao C.S em tratamento de Saúde Mental. Um dos usuários já era conhecido por mim pelo espaço do CAPS, mas eu via ali um sujeito totalmente diferente da pessoa com transtorno mental que eu conheci. Eles dividiram suas tarefas, discutiram um pouco sobre a sobrecarga de uns em relação a outros, já que um deles estava aparentemente entrando uma crise, e por isso, foi poupado do trabalho mais pesado pelos outros colegas.

As vendas eram constantes e ali, naquele espaço eles não eram reconhecidos como doentes, eram profissionais que precisavam fazer um trabalho bem feito para atingir um objetivo coletivamente compartilhado, nas palavras de uma das coordenadoras do grupo:
O Gera Renda do Ceco hoje está de fato na comunidade. Eles estão com uma barraca em frente ao P.S Ouro Verde e aí qual é essa diferença da relação que as pessoas estabelecem com os “ditos loucos” que faz mudar essa concepção da loucura? Hoje esse é um dos exemplos que a gente sempre dá. Quando alguém vai lá comprar alguma coisa, ninguém diz: “Ah… que pena, a coxinha tá fria por dentro, mas tudo bem, eles são da saúde mental, vamos comer assim mesmo…”. Estabelece-se outra relação. Eles estão lá, como vendedores, vão ter que oferecer um bom produto, comercializar de uma forma bacana… E aí se estabelecem outras relações, que eu diria que não é só do CECO, mas da parceria com a comunidade (trabalhador em grupo focal).

Participando desse momento em frente ao P.S, vendo os usuários sendo chamado pelo nome pelos profissionais do Ouro Verde, observando o desenvolvimento do poder contratual e da comunicação interpessoal entre os usuários que antes diziam-se “envergonhados” ou “doentes”, observando o companheirismo entre eles era possível ver os efeitos terapêuticos e a potência daqueles encontros. Não se tratava da loucura encoberta por um uniforme e uma touca, mas sim a produção da vida ressignificando o lugar da doença.

Um dos momentos marcantes que eu pude presenciar neste grupo foi o momento em que o grupo de culinária infantil dividiu o espaço da cozinha com o grupo Harmonia dos Sabores. Foi muito interessante observar o encontro de dois grupos aparentemente inconciliáveis ou que historicamente foram afastados um do outro por motivos de uma pretensa segurança – homens e mulheres antes tidos como “loucos” e um grupo de crianças antes tidas como “indefesas”. Surpreendentemente, alguns usuários do grupo harmonia dos Sabores iam até o grupo de crianças ensinarem algumas receitas e se surpreendiam por ver que meninas com menos de 08 anos já sabiam ‘macetes’ da culinária por terem tido que desenvolver uma autonomia em relação às atividades domésticas em suas casas, por conta de suas histórias familiares ou do trabalho integral de suas mães.

Um dos membros do grupo harmonia dos sabores, um rapaz com síndrome de down, se apresentou para as crianças e para os estagiários como ‘o pizzaiolo do Tear’, um novo devir em constante transformação, como as mãos das crianças que circulam dando forma ao brigadeiro, circulam ali novos papéis, novos desejos, novos encontros.

Encontro de pessoas com diferentes diagnósticos, encontro de profissionais com usuários, de crianças com adultos, de cooperados com estagiários, encontro de equipes de diferentes serviços da rede, encontro do pastel com muitos olfatos e paladares…. paladares que provam novos sabores na vida, audição aberta às alucinações  e a outras narrativas cotidianas, olhar atento, tato de gente com gente aberta para o contato com outras superfícies, para além da superfície tratamento… Encontros aumentativos de potência!