A solução emergencial do Mais Médicos pode dar certo se pararmos de discutir as coisas erradas

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david oliete
towers
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Tenho vários amigos e conhecidos médicos, pessoas que respeito e admiro, e por isso mesmo tenho feito um esforço para tentar entender e me colocar no lugar deles quando eles se posicionam contra o programa Mais Médicos, do governo federal.

Minha primeira tentativa, nesse sentido, é não polarizar a discussão entre médicos e não médicos – inclusive porque conheço também médicos que, apesar de todas as ressalvas, são a favor do programa.

Partindo desse ponto, existem dois grupos que considero relevantes para essa discussão (existem muitos outros, porém estou falando dos grupos que sustentam uma discussão fundamentada e inteligente sobre o tema, não sobre os mais combativos):

1) Um grupo de pessoas que acha que o programa é uma saída válida, ainda que longe de perfeita, para uma situação de emergência. Que acredita que sim, existem vários problemas que precisam ser resolvidos para atingir a visão de um SUS de qualidade para todos os cidadãos (planos de carreira, incentivos, investimento em infra-estrutura, saúde não centrada no papel do médico) – porém que não são esses mesmos cidadãos em situação de risco que precisam pagar a conta até que a solução chegue.

2) Um grupo de pessoas que acredita que o Mais Médicos é um programa eleitoreiro, que irá trazer mais danos do que benefícios, que irá colocar a saúde e os cidadãos em risco porque não está tendo o mínimo cuidado de avaliar a qualidade do atendimento que será prestado. Este grupo teme pela desorganização do já limitado sistema de saúde, uma vez que médicos locais serão demitidos quando médicos estrangeiros estiverem disponíveis, e os municípios poderão economizar o dinheiro que pagam a esses médicos.

O que me impressiona nesta discussão é que, se você olhar com cuidado e estiver disposto a realmente entrar na discussão, os pontos de vista dos dois grupos acima não são mutuamente excludentes. De fato, apesar de explicarem o argumento de maneira diferente, a conclusão é a mesma: ambos os grupos reconhecem que o Mais Médicos não é a solução para uma saúde pública de qualidade, e ambos os grupos estão preocupados com as consequências do programa a longo prazo.

O que diferencia os dois grupos, entretanto, é o que percebem como a solução para o problema.

O primeiro grupo, que acredita que o Mais Médicos é uma medida positiva, ainda que imperfeita, não se exime da responsabilidade e da discussão de como evitar que isso se torne um problema de longo prazo.

O segundo grupo, entretanto, parece não querer falar sobre saídas que resolvam o problema emergencial e ao mesmo tempo não coloquem o peso das decisões mal planejadas do estado, sobre a parte mais frágil do sistema: as populações de baixa renda, residentes distantes de áreas não atendidas.

Minha opinião é de que se ambos os grupos focarem no problema real – de que existem áreas não atendidas que precisam urgentemente de apoio – não haveria tanta discórdia nesta discussão. Porque os passos de como chegar até lá poderiam ser discutidos para além das soluções já propostas até agora (Revalida, cursos de idiomas etc).

Em outras palavras – é um problema que médicos locais sejam demitidos para serem substituídos por médicos estrangeiros? Sem sombra de dúvida. Que não esteja sendo feito um investimento em infra-estrutura? Claro. Que os setores da sociedade não tenham sido envolvidos na discussão? Naturalmente.

Como, então, resolver esse problema? Acabar com o Mais Médicos é apenas uma resposta. Exigir o Revalida é outra. Será que não existem outras, que ao mesmo tempo evitem esses problemas e permitam um atendimento de emergência nessas cidades? Será que fazer um Controle Social do que ocorre não é uma saída melhor do que repetir incessantemente que o Mais Médicos é uma má ideia, sem reconhecer qualquer mérito do que está sendo feito?

Já ouvi pessoas dizerem que esses locais onde não há atendimento médico já estão sem médicos há tanto tempo que poderiam esperar mais um mês para que os médicos estrangeiros passassem pelo Revalida. Fico em dúvida se pessoas que usam esse tipo de argumento percebem o quão insensíveis estão sendo – e que o mundo de hoje leve tanta gente a ser tão alheio ao sofrimento único de uma vida perdida. Não estamos falando de uma "população", estamos falando de pessoas que aguardam por atendimento. E quando falamos de pessoas, cada dia faz diferença.

Não tenho dúvida de que qualquer ser humano pode compreender esse sentimento de empatia – basta pensar que um ente querido está em uma situação de emergência – e que nesta situação, ninguém perguntaria a um médico disponível se seu diploma é reconhecido ou não, ou se ele está tomando o local de outro médico ou não. Sequer se importariam qual o idioma que essa pessoa fala. Pessoas só querem uma vida digna.

Continuo minha busca, então, por entender o sentimento das pessoas do segundo grupo, que é tão radicalmente contra a vinda dos médicos e segue buscando razões para provar que a medida é mais nociva do que positiva.

Faço um exercício de criatividade: como jornalista, imagino como me sentiria caso o governo decidisse "importar" jornalistas portugueses – que ganhariam menos, mas que teriam como missão reportar realidades que jornalistas que vivem na cidade e fazem matérias sentados em suas poltronas nas redações, não têm nem ideia de que existem.

Jornalistas também são capazes de gerar danos incríveis – quem conhece a trágica história da Escola Base sabe de que estou falando – mas também são capazes de grandes transformações.

Consigo então imaginar os protestos dos profissionais da imprensa, argumentando que a língua não é a mesma, que possivelmente esses profissionais não tem o mesmo compromisso, que podem causar mais dano do que benefício, que é uma medida que não irá realmente mudar a realidade do interior, que possivelmente esses jornalistas estarão a mando do governo e só veicularão notícias que beneficiem o governo por ser uma medida eleitoreira.

Em última instância, dirão que o governo está gastando dinheiro com jornalistas estrangeiros que, se investido internamente, poderia ter o mesmo efeito. (Talvez apenas demorasse muito tempo para ocorrer).

Ainda assim, penso que, no fundo, com todas as ressalvas que pudesse ter, eu torceria para que o programa desse certo. Mesmo que com percalços (que sempre acontecem – trabalhar com políticas públicas é trabalhar com probabilidades), penso que apoiaria uma medida se conseguisse ver, no meio dos problemas, que existe sim uma possibilidade de solução que tenha como objetivo final beneficiar a população em uma situação de emergência.

Nesse sentido, gostaria muito de ver a energia que está sendo gasta para atacar a medida como eleitoreira, ou criticando os problemas num tom de "eu te disse!" sendo investida em pensar como, ao mesmo tempo que é atendida uma demanda de emergência, podemos lutar para que essa atenção dada à questão de saúde não se limite aos Mais Médicos. Que já que todas as atenções estão voltadas para essa discussão, porque não aceitar e agradecer a vinda dos médicos estrangeiros, e juntos lutarmos para construir um SUS melhor e mais justo para todos?

Nesse contexto todo, a única justificativa que consigo encontrar para que as pessoas do segundo grupo sigam sendo contra um programa de emergência é que existem interesses que vão além da solução do problema real e emergencial da população.

Sobre esses interesses, eu acho que não vale à pena discutir.