A ilusão
O livre arbítrio é um conceito metafísico. Um atributo que deriva da fé e da crença. A liberdade da escolha decorre de um efeito de perspectiva que nos é acessível pela consciência da passagem do tempo. Acima de tudo, um efeito do pensamento que pode ampliar o sentido e o conteúdo na passagem de cada instante. Ao rememorarmos e projetarmos o futuro a cada momento em que pensamos, alteramos a qualidade do tempo. Tornamos o tempo, ou o seu elemento constituinte (segundo Bachelard) o instante, um veículo, mais ou menos carregado. A relatividade do tempo é um efeito concreto, dado pela percepção do tempo.
Albert Einstein, descobriu esta constante da física pela imaginação: Como veria o mundo, um homem que pudesse acompanhar (viajar na) a velocidade de um raio de luz? A gravidade foi percebida a partir da mesma estratégia imaginativa e criadora. Mas longe de terem descoberto algo, perceberam novos signos e significados para expressar, em termos humanos, o mundo.
Isso nos dá medidas variadas de conforto e desconforto ontológico. Mas antes de qualquer suposto conforto que o saber nos forneça, é o poder que nos atrai no conhecimento. Mesmo que seja como no mito de Prometeu, ao custo de termos parte do fígado devorado a cada noite, ou como no mito do Gênese, que tenhamos caído do paraíso para, com o suor do nosso rosto, conhecermos a vida e adiarmos a morte.
O fato de observarmos a dilatação e contração do tempo, ao termos em mente a velocidade da luz no georreferenciamento por satélite, muda a disposição das coisas e dos eventos no mundo percebido. O cálculo da velocidade da luz (a forma mais rápida possível para o transporte de informação) é o que torna possível a telecomunicação ou os sistemas de orientação de tráfico por satélite. No limite, tornou possível a internet e esta rede por onde vai itinerar este texto.
Assim, a ideia de causa e consequência é artefato do pensamento humano que precisa de um fundamento fora da experiência humana. A noção de justiça e de moral estão atreladas a fé humana de que escolhemos.
Porém, além da explicação divina, nada na observação sustenta a noção de livre arbítrio. Nós confundimos as noções de que a consciência das leis de causa e consequência podem nos tornar responsáveis. Isso é uma fé cristã, iluminista, positivista, moderna, ocidental e nada mais.
Afora ser um paradigma que usamos para narrar o mundo e a nós mesmos, não tem nenhuma outra consequência prática em nossas vidas. Se uma pedra vem em nossa direção, desviamos dela, de acordo com a interação dos fatores que não controlamos: Nossos reflexos, a velocidade da pedra, seu peso, a resistência do ar, e assim por diante. Assim, como lidamos a cada instante com o que se apresenta, é que educamos nossos filhos, mantemos nossos casamentos, nossos empregos e carreiras, além de uma variada, e mais ou menos cambiante, noção de quem somos.
Uma pedra maior vindo em nossa direção pode nos varrer da face da terra, da mesma forma que uma enxada separa uma planta de suas raízes. Estamos presos ao nosso ambiente segundo as regras que prendem um estrela do mar ao leito do oceano. Não há nenhum significado nisso além do que nossos mitos propõem.
O caso é que o conhecimento científico, filosófico e teológico correspondem a sistemas de signos que nos oferecem mais controle e poder, mas não sem custos, para estar no mundo. Assim como um capacete (ou elmo) nos protege de pedradas e de golpes de espada, ele pode evitar a visão periférica que evitaria o golpe de espada. Se temos sorte ou habilidade para vestir e tirar o capacete de modo a ter o melhor resultado não é porque escolhemos de forma consciente ou que exercemos o livre arbítrio. Tentamos lidar com o que se apresenta de acordo com a sorte e nossa habilidade.
Uma profusão de probabilidades infinitas e expedientes limitados em suas possibilidades, pelas condições dadas a cada instante, resumem a equação incerta que chamamos de existência. Ou melhor, uma equação que se resolve, como tudo mais, em seu desenlace. Morremos para saber porque foi necessário ter vivido, como arrisca propor John Gray.
Por Emilia Alves de Sousa
Oi Marco, que bom que você retornou com seus textos maravilhosos. Já estava com saudades!
Um abração!
Emília