Morrer em Casa: Entre o “Céu” e o “Inferno”.

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Fui instigado por uma declaração do novo secretário de saúde do Estado do Ceará, o Sr Ciro Gomes, quando  perguntado sobre a superlotação do Hospital Geral de Fortaleza (HGF), mais precisamente sobre como acabar com o “piscinão” do hospital – área improvisada onde pacientes esperam por internação  Uma das   soluções  de Ciro passa pela constatação de que parte desses pacientes seriam “terminais” e que, portanto, deveriam ir para casa. Mas em que circunstâncias eles iriam para casa? E, será a casa o melhor espaço para morrer?

 

 

"Piscinão" do HGF

Sob um certo ponto de vista, ao que parece, seria melhor morrer em casa. Pelo menos, é assim que  penso na minha morte, cercado pelas pessoas que amo, tendo dores e desconforto com bom controle, quem sabe estar consciente e ouvindo Bach até o fim. Mas aqui temos um problema básico. Quem está em vulnerabilidade extrema vive a dependência absoluta, precisa mais do que nunca dos outros. Para se realizar as vontades no final da vida, os outros serão nossos mediadores.

Nem sempre morrer em casa será uma coisa boa. Dependerá de que tipo de recursos sejam necessários deslocar para que sintomas e desconfortos possam ser manejados de maneira competente. E aqui não falamos meramente de tecnologias, falamos de profissionais de saúde com formação adequada para tal. E ainda assim, não estaremos adentrando nos portais do paraíso.  Ao deslocar o paciente o estaremos deixando a mercê dos familiares. E família nem sempre tem um desenho idílico.  Pelo contrário. Podem existir situações onde mais vale a pena ser cuidado por estranhos do que por familiares com perversidade “bem intencionada”.

Certa vez uma idosa com seus 94 anos estava morrendo no hospital. Nos seus últimos dias expressava desesperadamente o desejo de morrer em casa, ao lado dos cachorros, perto das roseiras que sempre cuidava, de preferência numa cadeirinha sob a luz do sol da manhã. Mas o mais importante. Seu quarto era uma espécie de capela improvisada onde ela perfilou a imagem de dezenas de santos, frutos de sua devoção desde a mais tenra infância. Dona da sabedoria do catolicismo popular, ela achava que perto de seus santos morreria mais em paz e os teria como advogados que intercederiam pela salvação de sua alma. Estavam todos ali. De Nossa Senhora a São Francisco de Assis, cheios de bondade pela triste condição humana da morte.

E lá foi ela feliz da vida quando teve seu desejo atendido. Voltou para casa. Mas o que ela não sabia é que depois de sua saída, as relações de poder haviam se modificado radicalmente. Agora a filha mais velha, que havia se convertido a uma igreja evangélica 15 anos antes, havia se livrado dos “ídolos satânicos” que estavam no quarto da mãe e que transgredia os mandamentos de Deus. Quando a idosa lá chegou viu que seus santos de proteção haviam sumido. Em desalento clamava por eles. Pedia que a filha os trouxesse de volta. Mas a sua filha era zelosa. E assim morreu uma mulher de 94 anos, violentada em seus valores, psicologicamente torturada, órfã de seus santos, cuidada por quem a amava e que se dizia fazendo o melhor por ela!

Um jovem de 16 anos morria em decorrência de leucemia depois de um transplante fracassado de medula. Desde criança adorava atividade física. Entre idas e vindas do centro de tratamento oncológico, tentava manter a forma. Mas o tempo passava, a doença avançava e, aos poucos, foi se tornando cada vez mais abatido, a ponto que o psíquico ficou de mãos dadas com o corpo, embotado, infeliz e triste a elaborar a própria morte. Um dia quando a equipe de cuidados paliativos fazia sua visita de rotina, ele disse com clareza que desejava voltar para casa e morrer lá. Um silêncio cortante atingiu a todos. Mas rapidamente ele foi quebrado. Era preciso apresentar ao paciente todas as alternativas e uma delas era exatamente essa. Era possível que ele fosse para casa e  pudesse morrer lá.

E assim foi feito. Ele ficou próximo dos pais. Recebeu todo o apoio deles. Moravam num pequeno sítio onde ele poderia sentir o aroma de sua infância, aquela mistura de estrume de vaca, terra molhada, perfume de flor, canto de passarinho, cacarejar das galinhas…uma sinfonia dos sentidos. E assim ele morreu 12 dias depois de sair do hospital, sendo adequadamente cuidado pelos pais e recebendo regularmente a visita da equipe de cuidados paliativos que, inclusive, estava presente quando a morte ocorreu.

Morrer em casa é assim. Pode ser o “céu” …pode ser o “inferno”. Tudo vai depender da maneira como somos cuidados. Diante da fala do novo Secretario de Saúde do Ceará confesso ter medo de que a retirada de pacientes da desassistência de um hospital possa ser reconfigurada pela desassistência doméstica, afinal, quem está no poder já teve quase sete anos para resolver esse problema, conseqüência da iniqüidade e da falta de trabalho em rede.