A hipocrisia e o Especialismo

13 votos

concencrico.png

 

O que chama atenção no discurso do especialismo cartesiano é seu resultado prático.

Uma desconstrução do objeto ao nível de suas mínimas partes constituintes não significa o acesso a uma verdade cada vez maior sobre os componentes do todo. Ao contrário, permite integrar os fenômenos globais do todo em eventos que são observáveis em recortes mais específicos. O ser é sua integralidade.

No entanto, se confundirmos qualquer território dos sintomas com a verdade única do ser, teremos uma polifonia de discursos que não dialogam. E, paradoxalmente seriam todos portadores de pretensas verdades. Deste modo ninguém poderia dizer ser “seu” determinado caso, paciente ou usuário. Na prática sempre o neurologista pode dizer que o problema do tabagista é sua saúde mental, assim como o endocrinologista pode argumentar que seu paciente não pode ficar bem sem um odontólogo e o cardiologista pode afirmar que o problema do transplantado é sua condição social e assim por diante…

Então, quando observamos aspectos do sofrimento psíquico em uma ressonância magnética não estamos reduzindo o fenômeno a suas manifestações. Apenas percebemos como o global e o local se integram de forma complexa.

Tenho me admirado que em cada reunião, seminário ou congresso que participo, todos falam da integralidade e da necessidade de se sair da “caixinha”. Mas nem uma vez ouvi alguém dizer: Agora neste momento, neste espaço e nesta circunstância, este é meu usuário, este é meu paciente. Nossos esforços de racionalização consistem em apontar aquilo que é essencial para meu paciente e que, curiosamente, não me cabe fazer.

É sempre a atribuição de outro colega, de outra instituição, de outro equipamento ou de outro setor que falta para completar a minha parte. Afirmo que a minha responsabilidade já foi feita de forma satisfatória, ou não tem condições de ser feita porque “outro” setor, mais especializado ou mais básico, ainda não o fez.

A distorção mais evidente nessa maneira de pensar é o reducionismo do saber específico e da pratica especializada diante do real. Aquilo em que nos especializamos, o tema ao qual dedicamos nossas vidas profissionais e nossos estudos continuados não é nem plenipotente, nem impotente. Não é desculpa para não agir, nem justificativa para a ineficácia.

De fato a vida é complexa e a produção de saúde e de doença ultrapassam nossa capacidade limitada de produzir curas definitivas. Mas a solidariedade, a competência e a implicação realizadas na escuta e no acolhimento são ferramentas válidas em qualquer contexto. E o próximo, aquele que vem narrar sua dor, é sempre o nosso usuário. Por isso, somos profissionais da saúde.

O tipo ideal, que foi adequadamente tratado por todos os especialistas e só necessita de nosso toque final, não existe. Esse tipo de idealismo não é ético e a redução de danos, que para mim é outro nome para a humanização, é o melhor antídoto contra o idealismo associado a hipocrisia.