A educação popular e a formação dos ACS

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Fortaleza, 24 de fevereiro de 2008-02-24

 

Queridos e queridas agentes comunitárias de Fortaleza

 

È para todos nós atores e atrizes que estamos a construir a rede da Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde em Fortaleza, no Ceará e no Brasil, bastante significativo sermos convidados a lhes falar acerca da educação popular.

Muito desejaríamos poder estar presencialmente nesse momento em todas as turmas, mas são muitas as tarefas e são muitas as turmas o que inviabiliza estarmos presencialmente.  Mas o espírito se faz presença e assim esperamos que as palavras que ora lhes dirigimos possam tocar suas mentes e corações, porque como disse nosso grande mestre Paulo Freire, a leitura, como a educação, precisa ser um ato de amor. Imaginemos que estamos conversando assim, lado a lado, dialogando como diria nosso mestre. E como ele mesmo disse, “um diálogo é como a vida que vem das fontes da terra”.

Assim gostaríamos de, nessa carta, falar-lhes um pouco das histórias de luta e resistência desses movimentos que fazem a história dessa Fortaleza, cada vez mais bela em sua  caminhada com homens e mulheres tão fortes e esperançosos de uma sociedade mais justa, mais solidária, menos desigual.

Inicialmente gostaríamos de nos dirigir aos que vivem na Região I da cidade. Aos que vêm do Pirambu, celeiro de sementes de lutas populares.

Vem ver ó Fortaleza

O Pirambu passar

Somos pessoas “humanas”

Temos direitos que ninguém pode tirar

Somos cristãos que não temem

O cristo é nosso ideal

E por ele todos faremos

A reforma social

Pirambu marchar

Pirambu marchar

Por um mundo melhor

Vamos lutar

No Pirambu, a ANEPS encontrou artistas que fazem da música e da dança, seu espaço de criação, sua estratégia de resistir. Como não trazermos para o cotidiano do trabalho em saúde, o Movimento Popular de Cultura, artistas como Jonhson, Carlos Careca, João Batista e tantos outros que contam assim a história de um povo e de uma comunidade?

As praias do Pirambu

Tem a cor de qualquer mar

Em seus montes belos

O pobre veio morar

Em suas areias fui

Moleque feliz

De amaciar a bola

Singrar em velas

Brancas

Perto vi

Meu povo da cidade

Certo de ser o dono dessa terra

Vi meu povo se libertando

Da pobreza que o castigava

Hoje a tristeza

Mora no meu peito

Em cada lugar  

Pedaços do meu povo

Que saiu sem nada

Expulsado do que é seu

Queria esse povo sofrido

Ficando pra ver o seu preço

 A ANEPS encontrou grupos dançando pra falar do seu lugar como o grupo de quadrilhas Raízes Sertanejas e fazendo cinema como a ACARTES, que vem resgatando a história de parteiras daquela região. Também entrou na roda de movimentos se articulando com a universidade e criando terapias comunitárias como o Quatro Varas que mandou o recado pro Brasil e pro exterior.

Ainda na região I, do Pirambu ao Vila Velha, a ANEPS encontrou o EMAÙS,  ajudando a organização popular; a Companhia Vidança que envolveu crianças e jovens do Vila Velha em dança e percussão pra discutir o mangue, a fome, a possibilidade de sonhar e se expressar. No Jardim Guanabara, o Maracatu Nação Iracema, o GCAP e a capoeira Angola trazendo a dimensão da negritude e da ancestralidade.

Sabemos que há muito mais: rezadeiras, benzedeiros, mães e pais de santos, associações comunitárias, conselhos de saúde. Tantas culturas, identidades que precisamos conhecer e articular pro nosso trabalho ficar a cada dia mais vivo, alegre criativo, essencialmente humano.

Agora gostaríamos de nos dirigir aos que estão na região II. Aqui desde o Serviluz, Morro de Santa Terezinha, tem terreiros de umbanda e candomblé, tem a moçada jovem que traz no grafiti e na dança de rua a semente de organização da juventude. No grande Lagamar a luta das mulheres e o Centro de Direitos Humanos, Fundo Cristão, Fundação Marcos de Bruim, o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua e tantos outros, lutando pra construir projetos de vida cidadã. Nessa região onde a violência cotidiana leva da escola e das famílias tantas, crianças, adolescentes e jovens que são envolvidos no mundo do tráfico, das drogas, dos assaltos, é possível ouvir a voz da juventude a dizer:

Olha a Fortaleza Bela

Nesse imenso arquipélago

De bairros e favelas

Sua área de maiores contradições

É a regional  II

Onde pequenas porções de riquezas

São cercadas por bolsões de pobreza

Vocês tirem a prova, mas eu tenho certeza

Nessa região também é possível ouvir suas vozes e suas pinturas, relatos vivos da sua realidade:

Pio XXI e Lagamar

Nesses bairros viemos morar

Antes, tinha liberdade,

Mas agora não se pode confiar!

Sair na rua à noite?

Nem pensar!

É arriscado não voltar,

A violência ta em todo lugar.

Diz aí, diz aí, amizade:

O que fazer pra transformar

Aos que vivem e trabalham na região III da cidade gostaríamos de apresentar a ação em rede do Fórum Popular de Saúde que na região do Pici, articula vários movimentos como o Espaço Cultural Frei Tito de Alencar- ESCUTA com seus vários grupos: o Círculo de Cultura Brincante, o Núcleo de Educação Popular, as crianças grafiteiras e as Brincantes,  Rede de Educação Cidadã do Talher- Ceará- RECID, CAMP, Pastoral da Criança, GDFAM, a AMORA, Margarida Alves, Pastoral da Criança, entre outros.

Nessa região onde o gargalo da garganta, gueto de exploração sexual, droga e roubo envolvendo crianças e adolescentes, a morte é um fantasma sempre à espreita. Mas ali esses grupos decidem realizar círculos de cultura para mapear os espaços na comunidade onde estão os sinais de vida e os sinais de morte.

Gostaríamos de falar a vocês desse  processo na voz de Elias J. Silva da COMOV  que o viu assim:  

Vidas que pulsam neste território

Pulsos que fervilham no sangue da gente

Sangue, gente, morte e vida

A vida como gargalo

O gargalo da garganta

O sexo das meninas e meninos

As “pedreiras”

As Pedrinas e Pedrinos

As Pedritas e Pedritos

Pedras preciosas exploradas nas esquinas

As bocas que gritam

A Garganta que abafa o grito do desamor em seu apogeu

O amor que tem nome

Os filhos e filhas da fome da alegria e da dor

As linguagens

As imagens

Os sinais

O milho e a pipoca

Pipocar de vidas na cultura que o ESCUTA faz

Morte que explode voraz na demência dos instintos animais

O fósforo apagado – a vida por um fio

Pavio do fósforo e da dor simbolizada no gargalo da garganta em noite de frio

O fósforo que acende – vida que transcende o limite do “EU”

No “NÓS” coletivo da cultura popular

Cultura que se faz perguntas e respostas

Que linguagens?

Que imagens?

O que a rua revela aos que da rua se escondem?

O que a rua esconde aos que na rua viajam?

Quais os olhares que prendem a rua e trancam os lares na boca da noite?

As imagens são respostas e sinais

Os sinais respondem o que?

Imagens, linguagens e sinais decifram ações

Quem age pela morte faz da rua um beco sem saída

A pulsão mortífera leva à rua do fim

Quem age pela vida vai à rua e da rua faz as trilhas do caminho a seguir

Quem faz a pipoca transforma e dá outra forma ao milho

O milho que morre pode renascer

Quem acende o fósforo transforma a centelha em grande lareira

Fogueiras e folguedos de cultura do bem viver

Em meio às sombras da violência que mata e maltrata

Sinais de vida

Linguagens de amor

Olhares de paz

Nos quereres e viveres da cultura

Na dimensão da escuta

Na sutileza das respostas

No desafio das perguntas

Nas imersões dos ESCUTAS e dos sinais

Nestes caminhos da antiga estrada do gado

Há muitas pedreiras

Pedritas e Pedrinas

Planalto da vida que teima em cantar

Que a morte não é capaz de silenciar.

 

Mas nesta região  a ANEPS encontrou também o  Movimento de Mulheres Negras no João XXIII, o Grupo Afro-Berê juntando dança,  ancestralidade, gerações, o espaço da Irmã Yolanda no Henrique Jorge,  o Grupo Soltando a Voz de música e percussão, a capoeira do contra-mestre Piqueno, os grafiteiros da Bela Vista, a turma da comunicação popular do Antônio Bezerra, a Teia da Vida e tantos outros mais. Daqui grandes lições: os círculos de cultura, a arte, o teatro, como espaços de luta, identificação de um povo que luta, que sofre, mas também conquista.

Dirigimos agora nossa palavra aos que estão na região IV da cidade. Serrinha, Montese, Vila União, Jardim América, Damas, Itaóca, Itapery, Parque Dois Irmãos.   Aqui a ANEPS encontrou a COMOV, Comunidades em Movimento da Grande Fortaleza e a sócio-economia-solidária, o Movimento de Trabalho e Renda, os grupos ambientais como o Movimento Pró-parque Lagoa de Itaperaoba, o Maracatu às de Ouro, os grupos de Idosos da Serrinha e Vila União e o  Flor de Cacrtus, Cactus e MH2O articulando a juventude na Serrinha,  Rosalina com o Hip hop em suas narrativas juvenis. Quanto podemos aprender com essa turma para a nossa atuação. O poeta Ray Lima  conta um pouco dessa atuação assim:

Atenção! Atenção! Bom dia!

Venho da Serrinha, dos movimentos sociais, dos movimentos da vida via comunidade.

Se sou Elias, também posso me chamar pessoa humana que humaniza; mistura, impura que cura e se deixa curar ao aceitar o diálogo e dialogar.  Sou de todos e de algum lugar; chapa da chapada do cariri; poeta, teólogo, dialógico, pensador e educador praticante.

Por fim, para dar conta dessa breve apresentação de mim mesmo, gostaria de dizer que me acho e me reconheço um cirandeiro da gema, buscando articular esses todos que sou pela força da prosa ou do poema para  me construir como múltiplo militante da vida. Bem, como não encontrei parecida com o que penso, parafraseando o Mário de Sá Carneiro, diria que eu sou eu e não o outro, mas sempre estando com o outro, procuro fazer a ponte, o pilar da construção que me ligam ao ser e fazer de muitos outros e outras.

É, mas cada dia é um dia. O que me leva a anunciar que daqui para frente tudo vira uma grande feira de solidariedade onde a comunidade é a barraca com seus produtos e bens criados e recriados, qualificados e re-qualificados no cotidiano pelo que me COMOV(e) dia a dia nas práticas das Cirandas da Vida e da cidadania.

Começou, minha gente! Meu senhor, minha senhora! Olhe para dentro, veja aqui fora! Quanta coisa boa para vivenciar, trocar, ofertar!

Quem vai querer! Olhe a saúde fresquinha e socialmente promovida como coisa da vida. Custa muito pouco: uma dose mista e reforçada de participação, tanto quanto de organização comunitária, várias tomadas de decisão associadas a pitadas de conhecimentos produzidos e ações coletivas de qualidade. Quem dá mais? Uma tonelada de arte e cultura popular na praça da moradia saudável. Aqui hap, hip e hop.

Aqui vamos artesanando as práticas de cuidado, o acolhimento; produzindo o alimento necessária à mobilização do ser e da espécie humana. Nossa feira é muito bacana. Tudo é muito barato e as formas de pagamento passa pela participação popular, organização comunitária, mas também pela luta da moradia e do crédito solidário.

Quem dá mais? A nossa feira não pode parar. Ela é solidária e circulante. Gira
constantemente pelas praças da cidade, pelas unidades de saúde, pelos hospitais, etc. A feira é a nossa ciranda de práticas de educação popular, promoção da saúde e transformação social. É circulando os conhecimentos que partilhamos nossas experiências e construímos novos seres humanos. Mas será que pode haver feira solidária em um mundo capitalista, não solidário? Será que nesta feira podemos encontrar a mistura de que precisamos para nos tornarmos mais humanos? Pode haver uma feira de saberes, sabores vitais, de amorosidades? Uma feira de amizade? Uma feira de cuidados? Uma feira de irmanados? Uma feira de saúde ou uma feira, onde a única excluída seria a morte, uma feira da vida? O fato é que a nossa feira está acabando. Por hoje. Porque amanhã estaremos renascendo, girando por outros lugares.

Mas pra vocês que estão na região V da cidade, ah! quanto temos ali pra conhecer e articular.  A ANEPS começou a circular no Bom Jardim, Movimento de Saúde Mental Comunitária, Projeto Sim à Vida, terapia comunitária, massagens, auto-estima, teatro, capoeira, música e a interação com o CAPS. O CDVHS, Geração Cidadã, COMOV, juntando Bom Jardim, Granja Lisboa, Granja Portugal, Zé Walter, Mondubin. Grupos de Juventude, CUFA, Consciência Break e outros mais. Assim, em nome dos demais vou falar do Semearte a problematizar o acesso:

Meus senhores e senhoras

Que compõem essa platéia

Vamos saber da história

Dessa grande epopéia

Que a nossa periferia

Vive no seu dia-a-dia

E o grupo Semearte

Encena com muita arte

O que se passa com esse povo tão sofrido

Não é história inventada

É realidade encenada

Desse povo excluído

Ai, ai, ai, tô doente tô quebrado e o posto não me atende

Ai, ai, ai, o tempo todo  esperando e o posto me enrolando

Aqui no bairro a saúde é uma piada

Tem que sair de madrugada pra poder ser atendido

Mas depois de ter sofrido noite inteira numa fila

Tem gente que até cochila e não é recebido

E enquanto isso,

Por aí se ouve falar

De um tal sistema único

Que está a se organizar

Esse sistema de saúde

Dizem que é universal

Atendendo a todo mundo

Do pequeno ao maioral

Dizem, porém, que ele garante a eqüidade,

Pois quanto à necessidade,

Nem todo mundo é igual.

Esse tal SUS envolve o posto e o hospital

Corpo, mente e a cultura das pessoas

Numa ação que é integral.

Finalmente falamos pra vocês da região VI. Aqui a ANEPS entrou na roda dos movimentos do Grande Palmeiras: Mulheres em Movimento, Santo Dias, Banco Palmas, Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes, Pastoral da Saúde, CONVIDA, trazendo as práticas populares de cuidado, a dimensão de gênero.  Mas também o Circo Escola, Instituto Meninos Capazes, Palhaços Cirandeiros trazendo a arte resistência e transfiguração. No Barroso, o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua e o hip hop transformando em vida a violência cotidiana. No Alagadiço Novo, o teatro, a capoeira…

Deixo com vocês alguns trechos de cordéis produzidos pela massoterapeuta Fátima Castro  da Associação Mulheres em Movimento sobre os processos vid=vidos nas rodas da ANEPS e das Cirandas Da Vida projeto em parceria ANEPS, Secretaria de Saúde e Ministério da Saúde:

Nas oficinas sobre gênero

Da violência se falou

Pois juntos todos sabemos

Que a violência existente

É por causa da divisão

De gênero ainda existente

Mas com luta vamos acabar

Esta cultura indecente

As mulheres estão

Chegando junto pra lutar

E acabar com a violência

Diz ainda ela:

Rezadeiras e plantas medicinais

As parteiras e o teatro popular

Todas as práticas populares de saúde

A Ciranda sabe muito bem valorizar

A Ciranda andou e encontrou

Crianças fazendo nova história

Jovens vivendo até agora

Tentando mudar pra uma vida nova

No meio da violência

Ainda existem rostos de

Esperança, de vitória.

 

Bem, depois desse passeio rápido pelo universo de possibilidades da cultura e organização populares como espaços privilegiados nos territórios onde a nossa ação acontece, gostaríamos de desejar-lhes muita força, muita esperança e a  certeza de que estamos com vocês.

Se estão a precisar de cuidado, temos o Espaço Ekobé, no campus do Itaperi – UECE. Lá estaremos os cuidadores e cuidadoras dos Movimentos que já descrevemos acima e mais da Rede de Afro-religiosidade e Saúde, MORHAN, NIV, entre outros, lhes esperando com a massagem, a terapia comunitária, a biodança, o reiki, as plantas medicinais, a reza.

 Na comunidade estamos cotidianamente a partir dos nossos movimentos, de braços abertos para recebê-los.  Para maiores contatos nosso telefone é 34526617 e nosso e-mail para quem usa internet é:  [email protected].

Dessa forma nos despedimos lembrando que a educação popular nos ajuda a pensar com a comunidade e não pra ela. Sabemos que são muitos os problemas no  cotidiano de um  ACS em Fortaleza, mas a esperança nos move rumo á utopia. A educação popular nos ajuda a ver que ninguém sabe tudo mas que todos sabem um pouquinho e é no respeito ao  saber do outro que podemos construir diálogos. Queremos dialogar com vocês.

 

Atenciosamente

 

Vera Dantas, Felipe Costa, Beth Silva, Elias Silva, Márcio Firmiano, Ester Melo, Rocineide Ferreira, Thyago Porto, Jonhson Soares, Fátima Castro, Mãe Mocinha  e  Leonardo Sampaio em nome dos movimentos que fazem a ANEPS em Fortaleza