A estupidez da guerra às drogas “level” 450 kg. Porque estamos em guerra contra Luciano?

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por Rita de Cássia de A. Almeida

Assim como a maioria dos moradores dos milhares de bairros ou comunidades pobres espalhados pelas grandes e médias cidades do Brasil, eu sempre convivi com o comércio de drogas ilegais, seja na porta da minha casa, na esquina da minha rua, na rua de cima ou na rua de baixo.

Com cerca de 8 ou 9 anos, eu já sabia quem era o “traficante” do nosso bairro, aliás, todas as crianças da minha rede de amigos da rua sabiam. No meu tempo de criança, brincar na rua era uma regra sem exceção para meninas e meninos de bairros semelhantes ao meu, por isso, assistíamos diariamente e cotidianamente o movimento das drogas. Víamos quem chegava e quem saía, quem buscava e quem levava. Alguns chegavam em carrões que não costumávamos ver por ali em outras ocasiões. Carrões para os quais tínhamos que dar passagem, afastando nossas traves de gol ou nossas bandeiras de pique bandeira, o que nos aborrecia muito, aliás. Apenas por duas vezes, quando criança, me lembro da polícia invadir o local e fazer alguma intervenção, mas na grande parte do tempo tudo parecia correr na mais profunda paz.

Ainda hoje moro no mesmo bairro e da minha infância pra cá muitas coisas mudaram. As crianças brincam menos na rua, os pontos de comércio de drogas se multiplicaram e a escalada da violência alcançou níveis nunca vistos. Só este ano, que eu me lembro, foram pelo menos 5 assassinatos no entorno da minha casa, todos eles ligados ao comércio de drogas. Outra mudança que observo é o surgimento de um novo personagem nesse movimento. Eles sobem e descem o morro inúmeras vezes ao dia. São usuários, mas também participantes ativos do comércio, muito provavelmente levam e trazem o produto em troca de alguma droga para sustentar o próprio vício. Todos por aqui os chamam de “craqueiros”. Os reconhecemos pela magreza, pelo andar acelerado e pela pouca higiene corporal. Mendigam dinheiro no sinal, nos estacionamentos, pedem comida e lanches nas portas das padarias e lanchonetes e dormem nas calçadas, debaixo das marquises.

Há cerca de quatro anos mais ou menos estabeleci uma relação de proximidade com um desses personagens, conhecido como “Neguinho”. Depois de conversarmos algumas vezes, perguntei o seu nome e ele me disse que era Luciano (para preservar a identidade do nosso personagem, este nome é fictício). Luciano deve ter entre 25 e 30 anos, é usuário de drogas e dado o seu apelido não preciso dizer sua cor. Sobe e desce o morro pelo menos uma dezena de vezes por dia. Pede dinheiro no sinal, nos estacionamentos e aos transeuntes ou moradores do bairro. Ultimamente andava dormindo debaixo da marquise de uma das padarias mais tradicionais do bairro, mas já dormiu numa casa abandonada (onde, certa vez, quase morreu queimado) e debaixo da carroceria de uma carreta enguiçada.

Minha proximidade com Luciano se deu mais por mérito dele do que meu. Ele sempre foi muito educado comigo, me dando bom dia, boa tarde ou boa noite quando que me encontrava, cumprimento que eu também passei a retribuir com o mesmo respeito que ele me dirigia. Diante da sua educação e simpatia, não pude evitar as conversas mais longas. Luciano conheceu meus filhos e meu marido, por isso, passou a cumprimentá-los também e sempre pergunta por eles quando me vê sozinha.

Antes de prosseguir com o texto, preciso abrir um parêntese para relatar uma coisa muito importante que aprendi com Luciano. Anteriormente, minha única questão para com os que me abordavam pedindo esmola, era se eu iria lhes dar dinheiro ou não. E o pior é que sempre me sentia desconfortável em quaisquer das opções que escolhesse. Me sentia mal quando dava esmola e também quando não dava. Luciano me ajudou a resolver definitivamente essa questão. Hoje sei que não importa se eu dou ou não dou a esmola que me pedem, o que faz diferença é o que eu estou disposta a oferecer, ou receber, para além do dinheiro, que dou ou não. Depois de Luciano, minha relação com os moradores de rua, ou os que me pedem dinheiro, mudou profundamente. Às vezes dou dinheiro, às vezes não dou, mas agora, sempre olho no olho, sorrio, cumprimento, pergunto alguma coisa e me coloco aberta a uma conversa. Aprendi isso com Luciano, que nem sempre me aborda pedindo alguma coisa, mas sempre está disposto a me desejar bom dia e me atualizar dos últimos acontecimentos do nosso território. Luciano me ensinou que os moradores de rua e afins, também precisam e merecem muito mais do que só dinheiro ou comida, merecem ser vistos como pessoas. Fecho o parêntese.

Sabendo que meus filhos adolescentes transitam pelo bairro à noite, Luciano sempre me tranquiliza dizendo que está cuidando deles pra mim quando chegam tarde. Ele me diz: – Pode deixar que eu fico de olho nos seus moleques, ninguém mexe com eles, eu estou sempre por aqui. O que me comove nessa promessa tão carinhosa de Luciano é a sua ingenuidade, pois eu sei que ninguém corre mais risco do que ele, especialmente nas noites violentas e incertas do meu bairro. Meus filhos são brancos, bem aparentados e usam “roupa da moda”. Numa confusão qualquer, num arrocho da polícia ou qualquer outro mal-entendido, provavelmente vão se safar. Vão poder se esconder no primeiro comércio ou portão que virem aberto sem serem acusados de marginais, terão a oportunidade de ligar para mim ou outro familiar e direito a uma abordagem amena da polícia, ou seja, lhes será garantida uma proteção que eu sei, nós sabemos, que Luciano não terá. Meu coração aperta diante da promessa de Luciano, porque eu sei que é sincera, e me dói saber que, eu, nós, nossa sociedade, não pode lhe garantir essa mesma proteção que ele gentilmente oferece aos meus filhos. Pobre, negro, craqueiro, morador de rua; sobram nele adjetivos e atributos para ser alvo fácil e frágil da violência, especialmente aquela alimentada pela estúpida e cruel política de “guerra às drogas”.

Mas essa “guerra às drogas”, pelo que estamos vendo nas últimas semanas, além de estúpida é também seletiva. Estamos em guerra contra os muito Lucianos que existem por aí, e no máximo, entramos em guerra contra o ”Zezão”, o “Pezão” ou o “Cachorrão”; “os “traficantes” dos bairros ou de comunidades pobres. Metaforizando, a guerra às drogas se limita a eliminar civis e soldados rasos que, sabemos, não produzem armas e nem munição, recebem isso de outrem. E se o tráfico de verdade é internacional, metaforizando de novo, ele só acontece com a participação das grandes corporações, com a complacência e intervenção de membros de alta patente: generais e coronéis. Então eu me pergunto: se vamos continuar com essa guerra estúpida, porque pelo menos não fazemos isso de forma mais inteligente intervindo com os generais, coronéis e grandes corporações, ou seja, com os que fornecem a arma e a munição?

Encontrar com Luciano passou a ser uma rotina nesses últimos 4 anos, tanto que passei a esperar por isso em determinados horários e locais e a sentir falta quando não o via. E já aconteceu como agora, de Luciano sumir por vários meses. A primeira vez que ele sumiu, imaginei que tivesse morto ou preso. Quando o vi de novo, depois de vários meses, perguntei por onde ele andava e ele me respondeu ironicamente: – Estava viajando, de férias. Depois riu da minha cara desconcertada e admitiu que estava “cumprindo cadeia”. Luciano anda sumido nos últimos meses, como não soube de sua morte, imagino que esteja preso novamente e muito provavelmente pelo mesmo motivo anterior: “tráfico de drogas”.

Nos últimos dias soubemos da interceptação de um helicóptero com carregamento de 450 kg pasta base de cocaína. Nesse caso, nenhuma corporação foi acusada, nenhum general ou nenhum coronel foi preso ou interrogado de verdade. Quem está preso é apenas o piloto do avião, outro soldado raso. Luciano, possivelmente está preso outra vez e seu crime deve ter sido carregar algumas gramas de cocaína, algumas pedras de crack ou alguns cigarros de "baseado". Ou seja, algo em quantidade suficiente para fazê-lo perder a condição de usuário (nesse caso não seria preso), mas nada que pudesse ser comparado a um helicóptero com 450kg de matéria prima capaz de fabricar 1 tonelada e meia de cocaína refinada. Temo que o destino do meu amigo seja uma sequencia de prisões, até que morra em combate, vítima dessa guerra que ele não criou e nem alimenta, mas que precisa dele como “bode expiatório”, como “boi de piranha”. Ao contrário do helicóptero abarrotado de munição para o tráfico que apareceu timidamente nos noticiários, é Luciano quem vai aparecer com notoriedade na capa jornal e no noticiário da TV, para ficarmos aliviados e dormirmos mais tranquilos quando anunciarem que ele foi preso ou morto em alguma esquina. Nessa hora seu apelido, “Neguinho”, ficará muito bem nas letras garrafais da manchete ou na voz incisiva do âncora do telejornal. ”Zezão”, “Pezão” e “Cachorrão” também são garantia de audiência.

Vale reforçar que é muito provável que Luciano não morra em consequência do uso de drogas, como se propagandeia por aí, mas sim, pela violência da guerra contra as drogas. Mas, como já disse, numa guerra seletiva, que só é feita nas ruas, de preferencia onde gente pobre mora, raramente nos helicópteros, nos aviões e navios e nunca contra os comandantes de alta patente.

Curiosamente, o comércio ilegal de drogas, que gera milhões e milhões de lucros para generais, coronéis e suas corporações, precisa do “Neguinho” e do “Zezão”. Mas esses personagens são totalmente descartáveis. Eles morrem aos punhados ou cumprem cadeia repetidamente, entretanto, haverá sempre um exército de reserva para cobrir o posto que ficou vago. E ainda tem gente pensando em mudar a legislação e agregar mais estupidez a essa barbárie, criminalizando o porte de qualquer quantidade de droga ilícita, inclusive para consumo! Quanta hipocrisia!

Agora, imaginem, apenas imaginem: e se a nossa política de drogas legislasse com o objetivo de parar de gastar tempo e dinheiro para fazer guerra contra o “Neguinho” e o “Zezão”? Ao invés disso, poderia concentrar esforços e recursos para reduzir a munição que chega até o “Pezão” e oferecer políticas sociais e de tratamento para “Neguinho”. Isso não seria mais inteligente e eficaz?

A política de guerra às drogas não está funcionando. Meu bairro é a prova viva disso. Passaram-se 35 anos desde a minha infância e nós continuamos sabendo quem são os traficantes da região, a droga continua sendo comercializada e a única coisa que a repressão tem produzido é um aumento galopante na escalada da violência. Por isso, se ainda sim vamos manter essa guerra estúpida, que pelo menos façamos guerra nos lugares e com as pessoas que realmente a alimentam e sustentam. Minha sugestão, pra começar, é que se investigue, descubra e prenda o traficante (sem aspas) da meia tonelada de cocaína apreendida do helicóptero dos Perella com combustível pago pela Assembleia Mineira e deixem meu amigo Luciano em paz. 

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