A FARINHADA: A ARTE AJUDANDO A TECER A REDE DA ANEPS NO CEARÁ,

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E por falar em Farinhada esse é um ritual que acompanha a ANEPS no Ceará desde 2004. Por isso convidamos vocês a fazer uma viagem ao túnel do tempo e ler esse texto tecido a muitas mãos e que foi publicado no Boletim Nós da Rede da Rede de Educação Popular e Saúde.
 
A FARINHADA: A ARTE AJUDANDO A TECER A REDE DA ANEPS NO CEARÁ,
A nossa história
Alguém tem que contar
A estrada é muito longa,
Não sabemos onde vai dar
São dois caminhos, um estreito e outro largo,
Já dizia o bom Raul aonde é que eu me encaixo
Junio Santos
 
A poética do encontro: a casa de farinha abre suas portas.
Vou fazer uma farinhada
Muita gente eu vou chamar
Quem entende de farinha
Venha aqui pra peneirar
 
DE QUE LUGAR FALAMOS…..
Falamos de uma construção recente, a ANEPS (Articulação Nacional de Educação Popular em Saúde), que nasce da interação de pessoas vindas dos movimentos populares, universidades e serviços de saúde, acreditando na possibilidade de, compartilhando saberes, pensar ações de transformação capazes de contemplar uma nova visão dos atores envolvidos nas práticas de saúde e construir um percurso que responda aos contextos complexos em que estamos imersos.
    É deste lugar que falamos, resguardando a preciosidade das experiências,sublinhando a perspectiva popular e suas formas de pensar sua prática social.
A POÉTICA DO ENCONTRO: A CASA DE FARINHA ABRE SUAS PORTAS
A ANEPS (Articulação Nacional de Educação Popular em Saúde) nasce no Ceará do encontro de grupos e pessoas vindas dos movimentos populares, serviços de saúde e universidades, na perspectiva de construir um percurso que responda aos contextos complexos em que estamos imersos. Nesse caminho temos vislumbrado como as necessárias ações de transformação deverão ser capazes de contemplar uma nova visão dos sujeitos envolvidos nas práticas educadoras em saúde popular. Assim é que nesse movimento temos tentado tocar dimensões mais totalizadoras do sujeito – como a estética, a ética, o corpo, a espiritualidade, a afetividade – em um construto que vincula desejo e cognição, intuição e sensibilidade. Tentando uma urdidura que parte da busca da memória das lutas populares sem perder a idéia de que a história é criação permanente, o percurso da ANEPS tem nos parecido não só uma possibilidade coletiva de intervenção e produção da vida coletiva, mas um movimento de leitura compreensão do vivido. 
            Como em uma farinhada, vimos alimentando o desejo de alcançarmos preparar um alimento comum para realizar o amálgama dessa construção coletiva de conhecimento e ação transformadora. Temos, freqüentemente nos perguntado: o que haveria de comum entre o MORHAN, às voltas com o ocaso do modelo de segregação das colônias e as lutas contra o estigma da hanseníase e os dilaceramentos dos conflitos interétnicos junto aos indígenas da região metropolitana de Fortaleza? Como construir momentos de aprendizagem e partilha que possam fertilizar as reflexões dos grupos de Coco do Cariri, em sua feição de extenso sertão pobre, com o movimento Escambo de Teatro de Rua, advindo de uma aglutinação dos grupos à margem do teatro que se fazia no eixo das grandes casas de espetáculo. Como fazer dialogar os Círculos de Cultura Brincantes, dos jovens do Pici, com o movimento de saúde mental comunitária do Bom Jardim, que parte de uma Escuta Sensível, da terapia comunitária e traz toda uma história do grupo d’As Marias, eivado do sofrimento feminino e das demandas pela geração de renda no contexto das fomes da periferia ? Como fazer com que essa reflexão, partilha e leitura coletiva das possibilidades da educação popular em saúde possa ser feita também mediante o exercício das linguagens como as dos mestres da arte popular, da viola e do repente, dos grupos de maneiro-pau, de coco, teatro de rua, dos cordelistas, radialistas, palhaços, pajés e xamãs?
 É seguindo essa via que a ANEPS tenta a conexão entre cotidiano e história, ao vincular a experiência local sentida no singular dos grupos com a inserção na história, vivida no exercício político de uma rede de articulação nacional, que visa também uma intervenção junto às políticas públicas.
Na verdade poder-se-ia dizer também que estamos a tentar uma possibilidade de articulação sob um parâmetro deferente das intervenções dos Conselhos de Saúde – espaços de controle social eu, se têm tentado operar como lugar de acesso ao poder, resultou por não dar conta de provocar, aglutinar e fomentar as ações populares e práticas.
A ANEPS, assim, vem tecendo uma caminhada que tem as cores e os desenhos dos movimentos que constituem a sua articulação no âmbito popular. Tem nos parecido valioso que essa articulação tenha se ancorado, desde o início, na própria capilaridade das experiências locais, poderíamos dizer mais no traço singular dos grupos locais no Ceará, pois, em uma vivência de protagonismo ousada, tomaram a frente no processo de articulação como um todo e imprimiram sua feição particular. A singularidade da ANEPS-CE parece-nos, inclusive, o fato dessas experiências não serem vinculadas de antemão aos serviços oficiais de saúde e, aos poucos, como uma dança ou combinado coletivo, passam a incluir-se neles e ensaiar uma ação que interfira nas políticas públicas, mas que, ao mesmo tempo, possa alimentar-se continuamente de suas práticas concretas. Em um misto de sonho possível e ação presente: afinal, como diz Michel Certau, lugar também é tudo aquilo que se pode sonhar sobre o lugar.
 
“Trabalhamos na saúde em várias dimensões
Com a massoterapia
Auto-estima e oração
Mas também muito importante
É nossa alimentação
 
Temos a rádio Santo Dias
Com o programa famoso
Com a comunicação
Também curamos o povo
No ar às 14 horas
Saúde ao Alcance de Todos
Temos a farmácia viva
E a manipulação
Também de alimentação
Falo de multimistura
Preparada em mutirão”
( Fátima Castro – Associação Mulheres em Movimento)
 
“A medicina científica promove uma perseguição às práticas tradicionais como forma de impor o seu projeto político”(Rino Bonvini Movimento de Saúde Mental Comunitária do Bom Jardim))
 
“Olha, eu fico vendo os mestres que a gente tem, mestre de carpintaria, mestre de boi, mestre do maneiro pau e outros. Quando chega o fim do ano, a secretária de cultura dá um incentivo por exemplo ao grupo de boi, que só dá para fazer a produção(comprar tecido, espelho, prego) e a gente vê que quando o boi sai é um formigueiro de menino, mas quando passa o fim do ano se acaba. Por que não se junta saúde, cultura, educação e dá condições pra aquele boi passar o ano trabalhando, se preparando, envolvendo as crianças?”(Gaudêncio- Circo Saúde Alegria-Sobral)
 
“Profissional de saúde- Rapaz acabei de encontrar o grupo que eu tava procurando, pra abrilhantar a palestra que nós vamos dar no nosso bairro, sobre a questão da diarréia, a fininha! E aí, eu tô precisando da ajuda de um grupo que é vocês, meus parabéns, e já é amanhã
Todos- Amanhã?
Profissional de saúde- eu sei que vocês não tão com caganeira, mas agente precisa de um grupo” (Grupo das linguagens artísticas e de comunicação do encontro estadual da ANEPS-CE, 2003)
 
“Se a gente considerar a realidade da periferia da grande Fortaleza, a questão é muito pior, não passa só pela coisa da relação com o artista, mas com a própria população. Não se admite que a população questione, que dê opinião e quem teima e interfere é visto como inoportuno, como persona não grata”. ( Sérgio- Rádio Comunitária Santo Dias- Conj Palmeiras)
 
É deste lugar que falamos, resguardando a preciosidade das experiências, conservando e depurando suas formas mesmas de dizer, sublinhando a perspectiva popular em suas formas de conquista da saúde e em sua ação de pensar a prática social. Em especial, estamos a procurar entender como as linhagens da arte têm sido importantes nessa construção da ANEPS-CE, também por chamarem dimensões silenciadas pelos sujeitos das práticas de saúde. Nesse sentido, esse estudo se propõe a reflexionar como a perspectiva popular e suas formas de pensar as práticas sociais da educação popular em saúde têm incorporado as linguagens da arte como modo de construção fundamental da experiência da ANEPS. Elegemos contextos de aprendizagens e narrativas nas várias linguagens da arte, que expressam as perplexidades e os possíveis da educação popular em saúde, por entendermos que elas trazem dimensões esquecidas nos processos de conhecer como a do corpo, da estética, a afetiva, a dimensão da ética, da moral, da religiosidade popular. O encontro estadual, ponto de partida desse caminhar da ANEPS, foi marcado pela presença dessas expressões e seus modos de construir a interface com a saúde.
 
“Quem busca a sobrevivência
Sempre busca uma medida
Pra resolver o problema
Pra encontrar a saída
Temos que ser pacientes
Cultura também é vida.
 
A partir desse momento
Mudou a mentalidade
Quem não entendeu ainda
Não tem mais dificuldade
De entender que a saúde
É a solidariedade.”
(Jota Gomes- Icapuí)
 
“A gente dança o coco que é uma dança que mexe muito com a saúde da gente. Brincadeira boa quando a gente tá desequilibrada, com dor, a gente vai e com o movimento quando termina não tem mais dor nenhuma.” (Socorro- Crato)
 
“…a saúde, como uma coisa boa, a vida, a alegria, a própria arte que a gente faz no dia-a-dia como um espaço de promoção da saúde.”( Grupo das linguagens artísticas e de comunicação do encontro estadual da ANEPS-CE, 2003)
 
“Porque todos são artistas no sentido que todos podem e devem incorporar a arte como uma dimensão da vida (artisticidade de todos).” (Ângela Linhares- artista e professora da UFC)
 
“Na, minha aldeia não tem escola diferenciada mais eu reuno as crianças e os jovens pra passar as histórias pra gente dançar o toré  que é pra quando agente não tiver mais aqui eles poderem saber quem sã. Essa é a minha obrigação como liderança.”(Raimunda – Pajé Tapeba)
 
“Vou dizer que teatro de cantoria
 Que o coco de roda e o xamã
É melhor do que mil diazepan
Prá quem quer renovar sua energia
Que o índio tem mais sabedoria
Mesmo sem trabalhar nos hospitais
Reforçar que seus belos rituais
Também age com muito eficácia
E faz a gente esquecer que tem farmácia
 
 
 Poesia, teatro, música e dança
 É além de uma grande terapia
Um caminho para cidadania
Um resgate da auto-confiança
Exercício prá jovem ou criança
Das diversas camadas sociais
São recursos educacionais
Que despertam a nova consciência
Prevenção contra droga e violência”
(Jota Gomes)
 
 
“A gente estimula ela pra serem cantoras, dançarinas atrizes, pra promover a auto estima pois muitas delas fazem cursos e não conseguem trabalho.”(grupo afro-berê)
 
“Os intrépidos humanos
De uma mesma consciência
A vida estava no sangue
E na sua fantasia
Uma profunda anemia
Era causa de demência”
(Edésio – Academia dos Cordelistas do Crato)
 
 
A raspagem da mandioca expôs e problematizou os conflitos do cotidiano dos grupos os quais foram convidados a intervir a partir do teatro fórum, da ciranda e da poesia popular, construindo novas possibilidades de parcerias com os companheiros de farinhada.
 
“O trem agora vai seguir viagem,
Vai passar em todo lugar
E quem vai no mesmo caminho
Dê sinal para poder entrar.
 
A saúde é nosso destino,
Os passageiros somos nós,
A ANEPS é nosso caminho
Construído com a nossa voz”
(Márcio Firmiano – Grupo Semearte )
ARTE : ESPAÇO DE COMUNICAÇÃO E DE PROBLEMATIZAÇÃO DA REALIDADE
No decorrer do processo, a arte continuou a temperar novos pratos que foram sendo preparados pelo conjunto dos grupos que, até então, não conheciam o sabor da farinha do outro. Elegemos como aspecto central desta comunicação, as narrativas que mostram como as linguagens da arte têm trazido no movimento de compreensão do vivido – das experiências de educação popular em saúde – dimensões fundamentais nos processos de conhecer, constituindo a singularidade da farinha fabricada pela ANEPS-CE.
É assim que nos propomos a um percurso teórico-metodológico capaz de fazer convergir as leituras críticas do vivido na ANEPS-CE.e, agora, o que parece-nos também um desafio fundamental, pensar o que seria formação no âmbito de uma articulação que se dá nesse nível. Por isso a metáfora da farinhada – encontro popular que é trabalho e celebração da produção de todos – nos parece tão justa e vai permeando toda a nossa reflexão: o alimento formador deverá ser gestado de forma a dar conta das singularidades desse percurso. E pra contar em  ritmo de cordel a gente diz assim:
 
Vou contar, vou contar              Viram a massoterapia
Vou contar uma história            E as plantas medicinais
Que ora se desenrola                Também círculos de cultura
Nas terras do Ceará                  Teatro e muito mais
                                                   
Nascendo a menina ANEPS         Vou contar, vou contar
A farinhada começou
O povo e a universidade            O espaço da academia
Logo, logo se juntou                  Fez-se mais interativo
                                                    Aprendendo com o povo
Vou contar, vou contar              A ser bem mais criativo
 
E logo a estudantada           Vou contar, vou contar
Começou a conhecer
O que no meio popular              Trabalhando a realidade
Estava a acontecer                    Com base na experiência
                                                  Juntando vários olhares
Vou contar, vou contar              Pensando uma nova Ciência
Vera Dantas
 
 
Tecedores dessa conversa: Vera Dantas, Felipe Costa e Ângela Linhares
 

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