Conversando com Grupos de Trabalhadores I
No decorrer do debate sobre o SUS introduziu-se o tema dos Direitos dos Usuários e uma frase de um dos participantes foi bastante significativa
“a cartilha de direito dos usuários nós escondemos o quanto podemos dos usuários… já temos trabalho demais e vem o Ministério da Saúde aumentar nossa dor de cabeça”
O que se perguntou ao grupo foram os motivos de não se poder respeitar os direitos dos usuários. A resposta foi que a maior parte dos direitos dependia de questões estruturais, como por exemplo presença do profissional médico (geralmente rarefeito nas periferias), e uma proporção de clientela por equipe adequada. O que se perguntou em seguida foi se eles concordavam com a demanda dos usuários ou não? A resposta foi que sim, concordavam. Então porque não compartilhar as dificuldades e buscar ativar movimentos políticos de lutas reivindicatórias? Aqui apareceu uma situação afetiva muito curiosa e muito freqüente: os profissionais assumem de alguma forma o lugar de “capatazes” do Estado. Por mais que também se encontrem vitimados pela falta de estrutura crônica, identificam-se com a instituição (o “patrão”) quando na relação com os usuários, e acabam reforçando uma lógica de sufocamento das demandas sociais. É claro também que existe um a dunâmica na máquina administrativa que premia os gestores e profissionais que não produzem ruídos, que não permitem que reclamações apareçam. Embora existam limites óbvios para qualquer máquina administrativa, por mais que se entregue ao desejo de implantar o SUS, estes limites podem sempre ser tomados como desafios, ou como fatos inerentes ao SUS. Parece existir ainda uma visão do SUS como “caridade” e não como direito conquistado e a conquistar. Subestimam-se os usuários, tomando-os por incapazes de compreender e lutar por seus direitos de uma forma construtiva. Talvez este seja um dos grandes desafios do SUS na atualidade. Com tantos investimentos ainda necessários, com tantos temas polêmicos que precisam ser debatidos na sociedade, como fazer isto, se a máquina do Estado herda da nossa história de colonização “casa grande e senzala”, um objetivo quase explícito de perpetuar a submissão e a “gratidão” aos senhores? Aqui pudemos retomar brevemente a discussão da reprodução dos afetos passivos e das paixões tristes, nos termos de Espinosa, como elementos de reprodução da dominação como aponta DELEUZE (1978)[1].
De fato não é tarefa simples: lidar com os grupos comunitários de forma a politizar as questões, reconhecer as tensões sociais diversas, mobilizá-los, porém, sem reproduzir ou ampliar o ressentimento, no sentido que NIETZSCHE[2] dá ao termo. É possível que uma das grandes dificuldades seja adquirir o hábito de enxergar as potências, procurar a vida pulsando e conseguir sintonizar-se com elas. Não é, de forma alguma, tarefa simples nem desprovida de riscos. No grupo de discussão pudemos exemplificar possibilidades com o Movimento de Luta contra a AIDS e a Luta Anti-manicomial. Movimentos que buscaram dialogar com a potência dos grupos vulneráveis ou doentes, e fizeram destes grupos aliados principais, em vez de rebanho a “ser salvo”.
[1] Isto permitirá que Spinoza, por exemplo, realize uma abertura em direção a um problema moral e político muito fundamental, que sera a sua própria maneira de estabelecer um problema politico: como acontece que as pessoas que têm o poder , não importa em que dominio, tenham necessidade de afetar-nos de ma maneira triste? As paixões tristes como necessárias: inspirar paixões tristes é necessário ao exrecício do poder.
DELEUZE, G. Spinoza Cours Vincennes – 24/01/1978 Trancrição traduzida para o português.
[2] : “Em Nietzsche, o ressentimento é a doença gerada sob a hegemonia da moral cristã, agravada na modernidade pela domesticação dos cidadãos, sob jugo e proteção do Estado” (…) “o ressentido, escreve, Nietzsche, sofre de uma memória reiterada, de um impedimento de esquecer. O que ele não pode esquecer? O agravo. Por isto não pode entregar-se ao fluxo da vida presente. (…)” (KEHL, M.R. Ressentimento 2005).
Por Shirley Monteiro
Gustavo !!
Muito interessante o que voce coloca aqui !!! Estive de 1988 a 2006 em uma Instituição do SUS que retrata ao longo da sua historia, tudo que está nesse texto … absolutamente tudo !!!
É uma instituição que sempre se destacou, até 2003 pelo menos, pelo protagonismo dos profissionais , pelo trabalho de potencialização dos usuários pais e mães unidos aos profissionais em movimentos de enfrentamento e justiça, as vezes contra alguns gestores locais ( Direção geral), buscando direitos … Por outro lado as famílias confundiam mesmo a postura de direitos, com a questão do assistencialismo, e era complicado. Tínhamos apoio de um Vereador do PT, Olegário Passos, que criou uma pequena cartilha " Os direitos do paciente ", eu mesma trabalhava estas questões com as mães do CRI ( Centro de Reabilitação Infantil) e distribui muitas delas. O Grupo mais ativista da Instituição, FICAVA MARCADO em relação a um ou outro diretor de nova gestão que chegava; a cada vez que havia mudança de governo …éramos perigosos … por tentar mobilizar os familiares dos pacientes infantís, aos nossos interesses. Por outro lado, recebemos apoio do Ministério Público inclusive, e de Promotorias para substituição/ acompanhamento das ações de um certo diretor geral.
A atual gestão ( direção geral) quebrou toda a força de potencia desta historia dos protagonistas de 1988 a 2003, com uma visão empresarial que tem e trouxe de suas atividades externas; mostra um lado positivo e ‘colorido’ quando trouxe investimentos e parcerias terceirizadas para a Unidade, … perseguiu os protagonistas, adoeceu alguns, prendeu sob pressão, para liberar depois, com o intuito de nos separar uns dos outros … e conseguiu. Muitos de nós cansamos após 15, 19 anos de CRI, e precisávamos sair simplesmente para preservar nossa saúde e potencia, a ser preservada e semeada em outras terras… às vezes é estratégico recuar, não é mesmo ??? Mas não foi fácil … E lá ficaram os profissionais mais recentes que desconhecem os anos iniciais desta historia de protagonismos. Restaram ainda , da turma ‘ quente’ dois ou tres que metamorfosiaram-se, com o exercício do semi-poder ao lado, do diretor geral de visão empresarial. É isso … OUTROS CENÁRIOS PARA SAIR DO RESSENTIMENTO, mas sem esquecer os Princípios !! … e o olhar atento …. Jamais !
Se voce for para o Seminário Nacional, visite o meu Painel:
RODAS & DANÇAS DO IMAGINÁRIO: SINGULARIDADES EM GRUPALIDADE … Lá tem uma ou duas fotos de parte desta historia, que derivou para o Mestrado.
Um Abraço !
Shirley Monteiro.