Um incentivo à deduragem

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Maria Inês Nassif
13/08/2009

Delatar é um ato não raro possuído por uma exuberante certeza – e desejo – de poder sobre a vida dos outros. A delação encontra trânsito e é incentivada pelo Estado policial (ou com vocação policial) e exerce o papel de controle do cidadão sobre o cidadão, no pressuposto de que cada indivíduo é potencialmente um fiscal, um agente do Estado capaz de apontar os pretensos inimigos da “ordem”; e cada indivíduo é pontencialmente um criminoso. Do lado do indivíduo que delata, o poder a ele conferido pela delação é o de sair da planície dos cidadãos com os mesmos direitos e regidos pelas mesmas leis e o de ascender ao aparelho de Estado, mesmo que pela porta da atividade repressiva.

Os dois lados, do delator e do Estado que incentiva a delação, são alimentados e justificam seus atos pela ideia de que sobre o que julgam verdade e justiça não há possibilidade de dissenso – a controvérsia é condenável, intolerável e em princípio pode ser criminosa. O nazismo, a União Soviética de Stálin e o Estado policial incentivado pela ação do senador Joseph Raymond McCarthy entre 1950 e 1956, nos Estados Unidos, são os exemplos clássicos da relação entre delação e autoritarismo. Nesses casos históricos, a delação serviu igualmente para alimentar ambientes políticos fortemente radicalizados e forçar “consensos” aparentes, formados na verdade por ações repressivas que incluíam a inserção do cidadão no papel de vigia de seu vizinho. Pelo medo, portanto.

A Lei Antifumo do governador José Serra parte de uma premissa altamente democrática – a de que o não-fumante tem o direito de preservar a sua saúde, ameaçada pelo uso do cigarro em ambientes fechados. A partir desse correto entendimento do direito do não-fumante, foi elaborada uma lei conceitualmente discutível. Todo o texto legal foi montado em torno da delação. A pessoa que fuma em locais públicos fechados não será punida, ou melhor, ela apenas será punida se for denunciada pelo dono do estabelecimento em que fumou. Quem delata fica com a razão; quem não delata assume o crime. Se o fumante acende um cigarro dentro de um restaurante e um fiscal flagra a transgressão, o dono do restaurante será multado. O fumante irá para casa sem que nada tenha acontecido a ele. Se, todavia, o dono do restaurante chamar a polícia e delatar o fumante, estará livre de punições, e o transgressor será punido. Nessa hipótese, o dono do restaurante será premiado pela delação e não sofrerá as sanções previstas na lei para os estabelecimentos cujo ambiente não está livre do fumo.

Pela lei, a delação passa a ter status de prova. Uma pessoa qualquer que estiver no restaurante quando alguém acender um cigarro lá dentro poderá ligar para um 0800 e fazer uma denúncia, ou preencher um “formulário” na internet. A sua palavra é prova contra o restaurante e dela decorrerão sanções legais. Para a lei, basta que o denunciante diga que não mentiu para que a sua denúncia seja considerada verdade. O estabelecimento acusado, no entanto, terá que provar que a denúncia foi mentirosa para ser considerado inocente.

Outra situação: o morador de um condomínio pode usar o mesmo 0800, ou o site da lei antifumo, para denunciar um vizinho que tenha fumado em áreas fechadas e públicas do condomínio. O vizinho-delator tem autoridade, pela lei, de autorizar a entrada dos fiscais no condomínio. Mais uma vez, a denúncia será a prova, e certamente não existirá uma outra: até que os fiscais cheguem ao condomínio, o morador delatado pelo uso do cigarro certamente já terá dado um sumiço no cigarro. É uma situação onde dificilmente ocorrerá um flagrante. Nesse caso também a multa é do condomínio. Aí também prevalece o conceito de que é preciso vigiar o vizinho para que não haja prejuízo coletivo.

A ideia da delação é central na lei, e essa intenção foi propagandeada pelo governo do Estado. O secretário de Justiça do Estado, Luiz Antônio Marrey, ao comentar uma pesquisa do Instituto GPP e da InformEstado que indicava que 64,9% dos entrevistados não pretendem denunciar locais com fumantes, disse que, num primeiro momento, a “metade que vai denunciar é suficiente para colaborar com a fiscalização”. A tendência é que a delação aumente, para o bem de todos, disse o secretário de Estado da Saúde, Luiz Roberto Barradas Barata: “O uso do cigarro em ambiente interno é culturalmente aceito há anos. Começamos a mudar isso só agora. Por isso, nesse primeiro momento, a intenção de denunciar não aparece. Acredito que, com a aplicação da lei e os donos de bares se engajando em preservar os estabelecimentos, as denúncias vão surgir”.

Portanto, o governo do Estado julga desejável que os paulistas se dediquem à delação. E seus representantes deixam claro que a intenção da lei é exatamente essa.

A tempo: sou ex-fumante e a fumaça do cigarro me incomoda profundamente, mas não mais do que o incentivo à deduragem.

Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras no jornal Valor 

https://colunistas.ig.com.br/luisnassif/2009/08/13/um-incentivo-a-deduragem/

O pior, embora não surpreenda a mais ninguém, foi a reação do governador contra a autora da crítica:

https://colunistas.ig.com.br/luisnassif/2009/08/25/o-metodo-serra-de-calar-a-critica/#more-32544