Milenarismo Apocalíptico e Ceticismo

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Sim, todos os finais de ano o tema retorna: o milenarismo e a escatologia apocalíptica. Apocalipse significa revelação. Não sei que espécie de feedback se entranhou na psique humana e recorrentemente associa revelação a extinção, catástrofe ou caos destrutivo.

O fato é que a humanidade não precisa imaginar o pior. O pior é o resultado de uma frequência que se repete num tempo mais amplo que o da vida das pessoas, mais amplo do que o da história das sociedades, das nações e das culturas. Por que somos compelidos a desejar a permanência, ligamos o fim ao pior. Mas a regra observável é que tudo acaba. É assim que a vida tem permanecido e se renovado.

O lapso de tempo que nos contém, na forma humana, é muito insignificante diante das imensas profundidades do tempo que nos precede. Por isso milenarismo. Quase nenhuma civilização ultrapassa mais do que um milênio. Temos a imemorial lembrança dos mundos que decaíram para que novos impérios se erguessem. As grandes extinções, para que a vida se renovasse.

É um truísmo afirmar que nossa sociedade é individualista. Bem, o fato é que hoje, como em outras épocas, mas nunca nas quantidades como as de hoje, alguns indivíduos vivem suas existências sem conhecer grandes dores ou sofrimentos mais trágicos.

Paradoxalmente, elas vivem o deleite de observar as misérias do mundo do bunker seguro de seus condomínios de classe média. Somos todos um pouco assim: vizinhos da tragédia, precariamente protegidos, constantemente ameaçados. Nossa vida é uma espécie de exceção que fragilmente se mantém.

Penso que a sensação eminente de um caos pela queda de nosso modelo de civilização, tem a ver com a incongruência de nosso modo de vida e a realidade perene da maioria da humanidade. Neste momento, e em qualquer passado que possamos lembrar, os confortos de uns dependem das dores de outros. É assim que nossos Gadgets tecnológicos vêm de uma mistura de desmaterialização da tecnologia, aliada ao trabalho em regime de escravidão.

Não acredito que poderemos transcender nossa condição. Se tivesse que acontecer, já teria acontecido. Uma forma de transcendência, se existir, acontecerá ao custo que permanecer sobre a terra irá nos cobrar. Como somos muito incipientes e adventícios, transcender sem perder a forma, se vier, não será tão cedo.

Por outro lado, uma forma não humana de persistência pode ser um herança mais de acordo com nosso legado. Deste modo, será apenas quando extintos que veremos aberto o caminho a seguir.

No início do século XX a racionalidade era celebrada como uma forma de redenção da humanidade. Alguns poucos céticos perceberam os horrores que a civilização humana estava gestando naqueles anos. O nazismo teve tanto de ideal modernizador, de eugenia, quanto de ocultismo milenarista. O sonho de liberdade e igualdade de oportunidade americano não pode prescindir da bomba atômica…

Bertrand Russell escreveu em 1920,

"O universo é muito vasto, como revela a astronomia. (…) No mundo visível, a Via Láctea é um fragmento minúsculo; e, nesse fragmento, o sistema solar é uma partícula infinitesimal, e, dessa partícula, nosso planeta é um ponto microscópico. Nesse ponto, pequenas massas impuras de carbono e água, de estrutura complexa, com algumas raras propriedades físicas e químicas, arrastam-se por alguns anos, até serem dissolvidas outra vez nos elementos de que são compostas. Elas dividem seu tempo entre o trabalho designado para adiar o momento de sua dissolução e a luta frenética para acelerar o de outras do mesmo tipo. As convulsões naturais destroem periodicamente milhares ou milhões delas, e a doença devasta, de modo prematuro, mais algumas. Esses eventos são considerado infortúnios; mas quando os homens obtém êxito ao impor semelhante destruição por seus próprios esforços, regozijam-se e agradecem a Deus.

E completa, afirmando que esta visão, precisa e cética, da vida humana é intolerável. Depois ele descreve, deliciosamente, como uma reconfortante visão do mundo é nos fornecida pela filosofia e pela teologia. Parece que sonhar acordado é a maneira que inventamos para escamotear as irracionais consequências da razão.

É por isso que uma visão da transcendência humana não possa se realizar sem um mergulho na profundeza de nossa seminal (des)razão. Talvez a fixação popular pelas narrativas de destruição seja necessária. Ela atua como contrapeso a um otimismo que não encontra base a não ser na utopia que nos move.

Russell, Bertrand. Ensaios Céticos. Porto Alegre: L&PM Editores, 2008.