Eles ajudam a morrer sem dor

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Novo Código de Ética Médica inclui, pela primeira vez, os cuidados paliativos como um princípio fundamental

 

Adriana Carranca

 

A médica Dalva Yukie Matsumoto entra na vida do paciente com a proximidade da morte. É aquele espaço de tempo entre o ouvir do especialista a frase fria "infelizmente, não tenho mais nada a fazer" e o fechar dos olhos derradeiro. Pode levar dias, meses, às vezes, anos.

Aos paliativistas como ela não cabe encurtar esse tempo, tampouco prolongá-lo, mas conduzir a vida até o fim. No tempo natural, sem tratamentos e exames invasivos, sem fios ligados a aparelhos, tendo aliviadas a dor física e a angústia psíquica comum aos doentes terminais; o emocional assistido pelo conforto e segurança de quem há muito aceitou a morte.

Essa aceitação não foi fácil. Entre médicos, a morte é vista como falha, um tabu inviolado. "É difícil falar sobre isso porque os médicos enxergam a morte como fracasso. Nós dizemos "perdi um paciente". Perdi, entende?", diz o cardiologista José Eduardo de Siqueira, professor da Universidade Estadual de Londrina e diretor da Sociedade Brasileira de Bioética. Siqueira integra a Câmara Técnica sobre Terminalidade da Vida e Cuidados Paliativos, do Conselho Federal de Medicina, criada para que o paliativismo se torne um campo de ação médica. A prática é reconhecida desde 1990 pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Na Inglaterra, França e Canadá é uma especialidade tal qual a oncologia ou a cardiologia.

No Brasil, o novo Código de Ética Médica, publicado quinta-feira no Diário Oficial da União, inclui pela primeira vez os cuidados paliativos como um de seus 25 princípios fundamentais. No texto anterior, de 1988, era como se a morte não existisse. O atual proíbe o médico de abandonar o paciente "portador de moléstia crônica ou incurável", determina os cuidados paliativos para esses casos, reforça a proibição da eutanásia, mas admite, com consentimento do paciente, a "suspensão de ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas".

 

VIDA A QUALQUER CUSTO

O Ministério Público Federal chegou a invalidar resolução semelhante (1. 805/2006) do CFM por entender tratar-se de eutanásia passiva. A polêmica aumenta na medida que avança a tecnologia, que já permite manter a vida artificialmente. Mas, diante da possibilidade da reversão do quadro, os paliativistas também adotam tais recursos. Eles consideram "obstinação terapêutica" o prolongamento da vida a "qualquer custo", com adoção de procedimentos inúteis que façam o paciente sofrer. Nesses casos, defendem a substituição do tratamento pelo controle dos sintomas, como dores e náuseas.

O paliativismo está sendo abordado pela novela da TV Globo Viver a Vida, nos personagens de Ellen (Danielle Suzuki) e Ariane (Christine Fernandes), duas paliativistas. "O que defendemos é a qualidade de vida enquanto houver vida", diz o médico Samir Salman, de 49 anos, que fundou o primeiro centro privado de cuidados paliativos, o Premier Hospital, no Brooklin Novo, em São Paulo, onde a médica Dalva Matsumoto é diretora técnica. Foi inspirado no britânico Saint Christopher’s Hospice, aberto em 1967 pela médica Cicely Mary Saunders.

O conceito criado por ela nada tem a ver com eutanásia. Cicely dizia que quando um paciente pede para morrer está, na realidade, querendo alívio para seu sofrimento. "E o sofrimento só é intolerável quando não cuidado", diz Dalva, repetindo as palavras de Cicely. É esse o princípio do não abandono implícito no paliar.

 

ACEITAR A FINITUDE

Entre a oncologia e a medicina paliativa, Dalva viveu uma crise. "Na faculdade, aprendemos a curar. Quando comecei a exercer a prática, eu sofri uma angústia muito grande porque, às vezes, não importa o que você faça, o paciente vai morrer", diz. "Na medicina a gente entende rápido que a vida é finita. Mas, para aceitar isso, é preciso aceitar a própria finitude".

A oncologista encontrou essa aceitação e um novo caminho no câncer que levou a sua mãe. "Acho que Deus estava me testando: "É isso mesmo o que você quer fazer? ". Era. Desde 2004, quando ela inaugurou a Hospedaria de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Público Municipal, mais de 200 pacientes viveram até fechar os olhos sob seus cuidados – um a cada três dias. No casarão antigo, decorado como residência, 80% têm sobrevida de dois a quatro meses após a chegada.

Eles morrem de câncer, aids e doenças neurológicas, nessa ordem; a maioria tem entre 40 e 50 anos. Na semana da reportagem, Dalva perdeu cinco deles. Ela lista cada um por nome e sobrenome emendados a histórias pessoais. Só então cita a doença que os levou – aos paliativistas importa mais a vida do que o porquê da morte.

 

PALIAR O SOFRIMENTO

"Tudo bem, seu Nelson? Não vá chorar, hein!", diz a médica, afagando-lhe os cabelos brancos e ralos. Seu Nelson tem um grau de demência causado pelo mal de Parkinson e agravado por uma imunodeficiência crônica. Já não fala. Então, chora. "Ele não vê o filho há anos e tem saudade. Dona Lourdes não tem família. E o cunhado do seu Manoel nunca mais apareceu", diz Dalva. A equipe tenta reencontrar parentes e amigos, mas, para muitos, médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e cuidadores (que acompanham cada paciente) são o único vínculo.

Seu Pedro tem sorte. Os filhos não saem do seu lado, até dormem na hospedaria. Se as camas estão ocupadas, ajeitam-se em poltronas ou colchonetes. "Ele morria numa UTI, com muito sofrimento, até que o trouxemos para cá, controlamos a sua dor e ele teve uma sobrevida excepcional", diz a médica. "Doutora, vou correndo em casa buscar o pandeiro. Posso?", perguntou o sambista, de sua cadeira de rodas, na quinta-feira. Por ela, podia. Mas seu corpo já não responde. A equipe pede que tragam o instrumento "logo". Enquanto espera, seu Pedro cai num sono profundo e não acorda. Ele morreu na segunda-feira.

Mas na hospedaria não há só morte. Já houve até casamento, a pedido da noiva de um paciente com câncer de garganta avançado. A equipe convenceu um juiz da urgência e o casório se fez em dois dias, com vestido de noiva presenteado pelo enfermeiro, as alianças por colegas de trabalho, os quitutes pelos funcionários, a auxiliar de enfermagem no teclado e bênção do pároco do bairro, Aclimação.

O paliativismo tem o apoio do padre Leo Pessini, capelão do Hospital das Clínicas por 13 anos. Doutor em bioética e coautor de Humanização e Cuidados Paliativos, ele acompanhou os 39 últimos dias do presidente Tancredo Neves, em 2005. "Não
queriam deixá-lo ir. Mas esse prolongamento inútil não é da vida e sim do morrer".

Diagnosticada com câncer de mama em 2003, Marinete Rodrigues Pereira, de 39 anos, submeteu-se a mastectomia e quimioterapia. Há um ano, "voltou tudo". Uma convulsão revelou metástase no cérebro. Ela retomou o tratamento, mas, em março, já não tinha cura. Passou a ter os sintomas controlados e há duas semanas quis ir para a hospedaria. Não suportava o sofrimento das filhas, de 8 e 15 anos, que cuidavam dela para o pai trabalhar. Mais tranquila, ela escreve um diário que deixará para elas. "São só conselhos. Se escolherem outro rumo, de onde eu estiver, eu as abençoarei", escreveu com letras trêmulas. As mãos já não seguram bem a caneta, os braços lhe traem, mas ela faz questão de passar batom para a foto. "Estou viva, não estou?”
 

 

(Fonte: O Globo, 27/09/2009)