Medo e Poder
Sobre o caso Adelir – a mulher que foi condenada judicialmente por desafiar o sistema obstétrico e a autoridade médica
Há muitos anos, o discurso a respeito da humanização do parto tem encontrado respaldo em experiências e evidências científicas. Por que ela ainda não se tornou realidade? Por que apesar de tantos estudos pelo mundo afora, apesar de exemplos bem sucedidos em países europeus, o nosso sistema obstétrico continua se recusando a avançar e abraçar de uma vez por todas a tão sonhada humanização do parto e nascimento?
A resposta está nas palavras PODER e MEDO.
A medicina em geral tem um grande poder social. Isto é muitas vezes benéfico. Muitas pessoas somente mudam um hábito ou estilo de vida depois que o médico "manda".
É fácil testar este poder médico. Tome uma decisão sobre seu corpo e quando alguém contestar, diga que foi por uma questão médica. Pessoas trabalham até a exaustão, mas somente aceitamos que elas deem uma pausa em sua vida quando adoecem e apresentam atestado médico.
Há dois anos decidi ser vegetariana. Quando alguém me perguntava o porquê da decisão, se eu respondesse as verdadeiras razões (novo estilo de vida e forma de pensar, questões espirituais) a pessoa simplesmente brigava comigo, dizia que eu iria morrer de anemia entre outros argumentos infundados. Cheguei mesmo a ouvir que isto seria coisa do demônio. Mas se eu dizesse: "Parei de comer carne porque meu médico mandou" (claro que isto era mentira) a pessoa simplesmente dizia "Ah!" e aceitava a situação com um ar de resignação.
Isto reflete o quanto a sociedade acredita nos médicos. Acreditar nos médicos e na medicina não é ruim, é bom, pois tratamentos verdadeiros acontecem em uma boa interação médico/paciente. Mas percebe-se claramente que as pessoas não querem se responsabilizar pela sua própria saúde e entregam seu corpo nas mãos da medicina.
Tudo é socialmente aceitável quando justificado por autoridade médica. Ao passo que decisões pessoais a respeito do próprio corpo, saúde e estilo de vida são ignoradas, condenadas ou até repudiadas pela sociedade, caso contrarie alguma decisão médica ou não esteja amparada por algum parecer médico.
É neste cenário que a obstetrícia continua engessada, ignorando as evidências científicas em relação ao parto e ignorando o clamor de uma boa parcela de mulheres que desejam parir de forma natural, amorosa e feliz. Ela detém o poder sobre o parto e recebe o consentimento da sociedade.
Esta relação é baseada em medo e poder. Primeiro há um medo irracional em relação ao parto. É verdade que podem acontecer problemas durante um parto, e é para isto que a obstetrícia existe. Mas a maioria das mulheres poderia parir naturalmente, se houvessem bons pré-natais, se não houvesse tanta pressão social e ansiedade quanto à data do parto, tanto estresse da vida cotidiana e se não existisse tantas intervenções no momento do parto.
No entanto, perdemos o poder de parir desde que entregamos nossos corpos à medicina. Então o que poderia ser natural passou a ser um desafio. (Afinal parir com pessoas olhando, com luzes fortes acesas, sem privacidade, em posições horizontais, etc é um verdadeiro ato de heroísmo). O que era para ser celebração passou a ser associado à perigo e morte. E então acreditamos que no parto realmente era algo extremamente perigoso e resolvemos fazer cesáreas “para não correr perigo.”
O sistema obstétrico gerou o medo do parto e este medo nos aprisionou ao sistema obstétrico. Este é o círculo vicioso que precisamos quebrar.
Primeiro alguns acontecimentos trágicos nos fazem ter medo do parto em casa e passamos a parir nos hospitais. Depois o parto hospitalar se torna tão tecnocrático que cada vez produz mais traumas. Isto nos faz cada vez ter mais medo do parto. E cada vez nos entregamos mais. O medo é o combustível que alimenta o poder do sistema obstétrico.
Basta observar os comentários na internet a respeito da gestante de Torres, Adelir. As pessoas a condenam brutalmente e a taxam como louca, irresponsável. Dizem que ela era uma egoísta que só pensava nela e queria ter um parto normal por vaidade. Chegam mesmo a dizer que deveria ter morrido… Por traz de todos estes comentários está o medo.
A sociedade “comprou” o pacote de terrorismo do parto. Para a maioria, este evento é perigoso e assustador. E por causa deste medo, acham que a decisão da médica e da juíza foram sábias, afinal só assim para salvar a vida da mulher e da criança.
Em um cenário destes, onde vivemos um ciclo vicioso de medo e poder, qual mulher poderá ser contra as decisões médicas? Como ela poderá fazer valer seus valores diante de uma sociedade que a pressiona a seguir as decisões médicas mesmo quando elas vão contra todos os princípios de humanização, evidências científicas e principalmente respeito à mulher? A mulher que decide ter um parto natural não luta apenas contra o sistema obstétrico, luta contra toda uma sociedade e muitas vezes contra a família.
Mas olhando pelo lado dos médicos, podemos facilmente entender que eles também agem baseados na energia do medo. Assim como toda a sociedade enxerga o parto como algo tenebroso, não é diferente com eles. Foi assim que aprenderam.
E este profissional, que não consegue entender a maravilha da natureza, o poder feminino para parir, a sabedoria ancestral que cada mulher carrega dentro de si, acaba tentando controlar ao máximo um processo que deveria ser natural. Acaba tirando da mulher o direito à exercer sua sexualidade e seu poder pessoal. Acaba indicando uma cirugria para extração do feto, já que em seu íntimo tem medo do parto e não confia na capacidade que a mulher tem de parir.
Não vejo pessoas malvadas neste processo. Vejo médicas dominadas pelo medo e tentando esconder sua fragilidade atrás de um diploma. Vejo uma juíza medrosa que acredita estar protegendo uma vida, quando na verdade está usurpando o direito de uma mãe parir em paz e de um bebê nascer em paz. Vejo uma sociedade imersa no medo e que valida os atos extremos destas profissionais. O autoristarismo destas profissionais é apenas uma máscara para esconder sua verdadeira fragilidade, sua falta de confiança, falta de conhecimento e falta de capacidade para diálogo, interação e empatia.
E no cerne da questão, uma mulher corajosa que foi condenada pela medicina, pela justiça e pela sociedade. Porquê? Simplesmente porque queria parir naturalmente.
O mundo já evoluiu muito, mas continua regido pelo medo. Há 2.000 anos um homem morria pendurando em uma cruz. Sua acusação: Dizer que era filho de Deus. Imagine em uma época de total servidão, uma pessoa dizer “Sou filho de Deus”! Representava uma grave ameaça a todos os sistemas autoritários.
Hoje temos muitas mulheres sendo condenadas a partos traumáticos e à cesáreas simplesmente porque ousaram dizer: “Sou capaz de parir”. Elas desafiam o sistema obstétrico e toda a sociedade que tenta submetê-las e ter domínio até mesmo sobre seus corpos.
Infelizmente, a sociedade vive imersa no medo e quando surge alguém que consegue enxergar além do medo é brutalmente condenado. Nós todos que lutamos a favor da humanização do parto, somos estas poucas pessoas que conseguem enxergar além do medo. Saindo do medo, saímos também da subserviência aos sistemas sociais. E por isto causamos tanto incômodo.
Que este triste episódio da história da obstetrícia e da história brasileira sirva de marco na luta da humanização do parto e na luta pelos direitos femininos. Que levantemos nossas vozes e gritemos bem alto:
“Sou capaz de parir”!
Apenas quando não tivermos mais medo de nossa feminilidade, de nosso poder, de nosso corpo, de nossas decisões, poderemos quebrar este ciclo de autoritarismo social que se impõe sobre nosso corpo e nossa saúde.
Por Sabrina Ferigato
Olá Liliane!
Obrigada por contribuir com esse debate em tempos sombrios para a humanização do parto e nascimento!
Suas reflexões nos dão elementos para compreender a cultura obstétrica brasileira e nos fortalece para não nos curvarmos diante dela.
Veja as contribuições da coordenação nacional da PNH sobre o caso Torres:
https://redehumanizasus.net/82622-caso-torres-e-a-judicializacao-do-parto
abraços
Sabrina