Diarréia, tabagismo e miséria
É muito diferente ter alguma preocupação sanitária com as conseqüências do tabagismo (entre outros temas de igual e maior importância), ou ser contra o tabagismo ou, pior ainda, ser contra os tabagistas. A importância deste debate é que ele não se restringe ao cigarro. São modos de lidar com os problemas de saúde, com as pessoas e com as nossas paixões profissionais, que transbordam para outros problemas de saúde.
No plano específico dos problemas de saúde, acredito que ninguém discorda que, prioritariamente ( o máximo do máximo possí¬vel ) os problemas com causas coletivas devem ter soluções coletivas. Se num serviço de saúde começam a chegar pessoas de diferentes lugares com diarréia, nós temos obrigação de pensar em uma causa comum. Se descobrirmos que há uma contaminação de água é fortemente recomendável que tentemos prioritariamente atuar politicamente para que este problema seja resolvido (representantes da comunidade,mí¬dia, governos etc). Isto não nos impede de recomendar que se use cloro na água (e distribuí-lo, se possível), mas seria altamente duvidoso se apenas fizéssemos isto, ou, ainda pior, se culpássemos as pessoas porque não se cuidaram, ou se nos dedicássemos a criminalizar os pais que “deixassem” suas crianças tomar água sem cloro (“negligência”etc…). Acontece que no caso do cigarro e em vários problemas de saúde é mais fácil se esconder das causas coletivas/ sociais / políticas e culpar as pessoas individualmente. Por exemplo, a obesidade e as propagandas de comidas duvidosas (refrigerantes, salgadinhos etc), ou a dificuldade de acesso aos outros alimentos que não carboidratos, ou o tipo de trabalho e a carga horária que dispomos (produzindo sedentarismo), ou a obesidade em diferentes classes e culturas (com causas diferentes) etc… É mais fácil reduzir tudo à culpabilização individual ou familiar e retirar o estômago do pessoal. Se pensamos no discurso oficial para os acidentes com os Motoboys, é mais cruel ainda. Se diz textualmente na mídia: eles são jovens e irresponsáveis… mas e o número de entregas diárias, e a sobrecarga de trabalho? E os que lucram com o trabalho deles? E a falta de opções por outros trabalhos? E o transporte coletivo?
Com o cigarro é a mesma coisa: um problema coletivo que tem muitas causas coletivas, principalmente a propaganda e um certo modo de vida (culturalmente falando). Então por que não discutir estas coisas com a sociedade, por que não aproveitar a oportunidade para buscar aumentar o grau de compreensão dos problemas e pensar (pelo menos também) em soluções que abordem as causas mais coletivas? Por que não buscar aumentar a nossa capacidade de entender como nos constituímos assim e não de outro modo e -quem sabe – aumentar nossas chances lidar melhor (ou pelo menos de formas novas) com estas forças constitutivas (exemplo: por que as pessoas querem fazer parte de um mundo de Marlboro? São iguais os desejos e motivações dos fumantes de classes, idades e sexo diferente? etc) Se pensarmos como desdobramos tratamentos individuais, veremos que neste ponto também somos muito pouco analíticos e bastante moralistas. Reduzimos com facilidade os hábitos e “vícios" a aspectos biológicos ou morais. E ajudamos pouco as pessoas a compreenderem os prazeres, os benefícios e os motivos das escolhas associadas a hábitos e dependências etc… Conseqüentemente ajudamos pouco as pessoas a se re-inventarem sem isto ou aquilo, com outro prazer de viver, outra motivação a não ser a neurótica felicidade do cumprimento de regras morais, ordens médicas ou uma vida longa e sem gosto. (uma bebida numa roda de amigos, não é igual uma bebida sozinho… as drogas e suas potências vitais, conectivas… embora arriscadas… outro assunto)
Por outro lado, nesta questão da lei, temos uma tradição na cultura ocidental de nos afirmarmos pela negação e exclusão do outro. Exemplos mais trágicos não faltam em guerras religiosas e étnicas. Então é muito fácil para políticos e sacerdotes pouco responsáveis e pouco interessados em abordar temas de saúde, com a complexidade que eles tem, utilizar estas questões para criar “bodes expiatórios” sociais, em que um número grande de pessoas ganha a possibilidade de se “sentir melhor” por NAO SER UM OUTRO (um judeu, um palestino, um terrorista, um bárbaro, um chicano, um negro, um tabagista, um obeso, um louco, um estrangeiro etc ). Eu não sou a favor que as pessoas fumem em lugares fechados (já paguei muito mico, por tosse uma alérgica incontível que eu tinha ocaisonalmente, pedindo para as pessoas pararem de fumar perto de mim em shows semi-abertos), mas ainda assim não sou a favor de alimentar maluquices coletivas, tão antigas e letais. Antes desta lei ainti-fumo, no departamento onde eu trabalho já era proibido fumar. Um dia mandaram um e-mail totalmente irado para a lista coletiva do departamento, cobrando o chefe de departamento que tomasse providências porque o enviante do e-mail tinha sentido um cheiro de cigarro, vindo de alguma sala no corredor tal. Eu estou esperando, -agora que os fumantes são quase criminosos- a pessoa mandar outro e-mail reclamando providências contra gazes intestinais ou algum perfume duvidoso, porque ela “sentiu um cheiro”. Fora o fato de que “sentir um cheiro” não caracteriza o fumo passivo, será que nós precisaríamos, crianças indefesas e mal amadas, de grandes pais tirânicos que nos possibilitem uma convivência impossível? Se for mesmo impossível, serão as leis que resolverão nossos problemas? Não que eu considere que as leis sejam desnecessárias, mas acho que todos vamos concordar que não é nada agradável estar em um lugar em que sabemos que as pessoas não vão nos matar ou roubar apenas e tão somente porque é contra a lei. Ou seja, por medo. “Qual a paz que eu não posso concordar? ” diz a música. É uma aposta miserável. E me espanta que esta miséria de cercas elétricas, muros altos e policiamento ostensivo seja tão desejada por tantos, ainda. Os anti-tabagistas me parecem fortemente próximos deste tipo de ideal nefasto, de miséria existencial. Alguns setores da sociedade e seus representantes na mídia e na política fazem companhia.
Por ultimo, quando se juntam medicina, Lei e polícia, como ocorre agora no caso dos cigarros, sempre é bom o máximo de desconfiança. Já jogamos na cadeia ou cometemos as mais cruéis violências com os diferentes e os doentes de todos os tipos. Sempre que queremos salvar as pessoas apesar delas, e ainda por cima usamos a força contra elas, estamos correndo sérios riscos de fazer bobagens enormes (embora muito antigas). Porque ao excluir as pessoas (com seus desejos, ineresses e contexto) de qualquer decisão, materializa-se um conceito de saúde e de clínica extremamente pobres. Oswaldo Cruz e sua polícia não morreram, infelizmente.
Por Cláudia Matthes
escutei tua fala, durante o curso de pós em Humanização em Porto Alegre e quando vieste a Ijui fomos te buscar no hotel e te levar até a Unijui e tua fala, foi ainda mais forte pois mexia com detalhes do meu dia a dia, de coisas tão enraizadas nas veias que fico em dúvidas se estou falando de co-gestão de clínica ampliada………. pois a percepção que tenho é de que um novo mundo se "des-cortina" e eu vejo um mundo que eu desconhecia…e como dizem por ai….parece que nem sei dar nomes aos bois…
quando vc falou em Ijui, eu para não perder sua fala perdi o ônibus de volta para casa. Isso foi o que venho experimentando em muitas situações da pnh nesse novo formatar de redes, de possibilidades, perco caminhos, caronas, fico na estrada e procuro por encruzilhadas que me mostrem onde realmente serei coerente com o momento.
Enfim Gustavo, muito orgulho de ter vc aqui na rede, dando essa "palinha" do que vc vem aprofundando e divulgando e acrescentando na minha vida.
Acredito, que quando estamos por ai, não temos a dimensão real da nossa fala…mas, pode crer, perderia todas os transportes possiveis para escutar você!
Um grande orgulho de vcs, da rede
e de estar viva,
vamos combinar!
Cláudia-feliz-peju