Memórias de um encontro: Claude Lévi-Strauss (1908-2009)

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Quarta, 4 de novembro de 2009, 09h12 Atualizada às 09h17

Memórias de um encontro: Claude Lévi-Strauss (1908-2009)

Fernando Eichenberg
De Paris

Tive a chance, como jornalista, de entrevistar Claude Lévi-Strauss em duas ocasiões. Na primeira delas, em 2004, quando telefonei para a casa dele aqui em Paris, mostrou-se, de início, irredutível. "Tudo o que tinha de dizer eu já disse. Não tenho mais nada de novo a dizer, só iria me repetir, portanto prefiro não falar". Mas tanto foi a minha insistência que ele cedeu: "Está bem, mas algo curto, só cinco ou dez minutos". Devido a sua avançada idade, acreditava que nosso breve encontro seria marcado em sua residência, mas, para espanto meu, ele agendou a entrevista para a sua sala do Laboratório de Antropologia Social do Collège de France, no número 52 da rua Cardinal Lemoine, no chamado Quartier Latin.

Na tarde de 9 de janeiro, uma sexta-feira, me recebeu à porta, vestido de um impecável conjunto de terno e gravata, simpático e sorridente. Lúcido, a fala pausada, e também com matizes de humor, relembrou seus primeiros momentos no Brasil e sua participação na fundação da Universidade de São Paulo. Por vezes, silenciava brevemente e cerrava os olhos, como se retornasse no tempo para resgatar da memória acontecimentos, sensações e sentimentos passados. Em relação ao presente e ao futuro, seus comentários eram módicos. Num tom nuançado de nostalgia e renúncia, e com uma naturalidade desconcertante, dizia já não se sentir um homem deste mundo: "Hoje, não sou muito otimista em relação à atualidade do mundo, mas, enfim, me abstenho de fazer julgamentos. Sou pessimista, hoje, em comparação ao mundo que eu conheci e que amei. Esse, sei bem que acabou, não existe mais. Um outro mundo vai tomar o seu lugar, um mundo que eu não conhecerei".

A conversa que era para durar apenas uma dezena de minutos acabou encompridando para mais de 40 minutos e, ao final, ao ver o adiantado da hora, me disse, rindo: "Você me enganou, me fez falar demais!". No caminho até a porta, como eu estava de viagem de férias marcada para o Brasil, perguntei se, na volta, poderia trazer algo que ele gostaria de receber da terra que tanto lhe marcou. Diante de seu silêncio, acrescentei: "Algo do Brasil de que o senhor sinta saudades". Ele respondeu, sem hesitar: "O que mais tenho saudades do Brasil você não pode me trazer: é a natureza".

No ano seguinte, no verão parisiense de 2005, retornei ao Collège de France para uma segunda entrevista. Aos 96 anos, ainda vivaz e ativo, revelou, no entanto, uma melancolia crescente. Do Brasil, dizia só restar "as boas lembranças": "Antes de tudo, foi o período da minha juventude, e guardamos boas lembranças da juventude. Foram, provavelmente, os anos mais fecundos que conheci na minha vida, porque aprendia algo de tudo. Eu tenho saudades de um Brasil que receio que não existe mais. Não mais do que os meus anos de juventude que passei lá e que se foram irremediavelmente".

Seu sentimento em relação ao futuro? "O que eu sinto é que quando nasci havia 1,5 bilhão de homens sobre a Terra; quando cheguei na Universidade de São Paulo, no início da minha vida ativa, havia 2 bilhões; hoje, há 6 bilhões, e que daqui a 20 ou 30 anos haverá 9 bilhões. Não é mais o mesmo mundo e eu sinto que não pertenço mais a ele".

Mais adiante, desabafou seu pessimismo: "Desde o final do século 18 a civilização ocidental conscientizou-se de que, por meio de seu poder e de sua força, se espalhava por toda a Terra e ameaçava a existência de milhares de pequenas sociedades cujas criações culturais, artísticas, sociais e religiosas eram essenciais para o patrimônio da humanidade. Tudo o que podemos fazer é esperar que nessa espécie de síntese que está sendo feita de uma ponta a outra da Terra apareçam novas diferenças, novas originalidades, em formas que não podemos nem imaginar, e que ajudarão a humanidade a continuar criativa. Mas, e é provavelmente culpa da idade, não sou muito otimista".

Em Tristes Trópicos, escrevera: "A vida social consiste em destruir aquilo que lhe dá seu aroma". O senhor ainda pensa assim?, perguntei. Laconicamente, ele respondeu: "Infelizmente, sim". Tentei arrancar um sopro de esperança ao citar a filósofa Catherine Clément, sua colega e conhecida: "O coração não envelhece". Mas ele me desarmou: "Eu gostaria de ter certeza disso".

Na tarde desta terça-feira, 03/11, em casa, falava ao telefone ao mesmo tempo em que olhava para a tevê ligada, sem som, no canal francês de informações LCI, quando apareceu a tarja vermelha correndo na parte inferior da tela trazendo secamente a notícia: "Urgente: anunciada a morte do antropólogo Claude Lévi-Strauss aos 100 anos de idade". Instantaneamente fui invadido pela lembrança de momentos dos dois encontros que tivemos. Claude Lévi-Strauss não mais pertence mais a este mundo, mas, de alguma forma, o personagem e sua obra permanecem.

Obs: a entrevista realizada para a tevê, editada, pode ser visualizada neste aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=9gGetfMwq4w&feature=channel_page