SAÚDE MENTAL: a roda-viva da política pública do Estado do Pará – 2007/2010
Resumo
O trabalho ora apresentado desenvolve uma análise sobre o contexto histórico da loucura, destaca a relevância do problema na atualidade e enfatiza o desenvolvimento da reforma psiquiátrica, suas reverberações no Brasil e, particularmente, no Estado do Pará. Na sequência, apresenta as demandas dos movimentos sociais da área da saúde mental em nível nacional e a relação com as ações desenvolvidas no campo da saúde mental no Pará, no período compreendido entre os anos de 2007/2010. Finalmente, identifica a relação entre as reinvindicações dos movimentos sociais na área da saúde mental e a atuação da gestão pública por meio da análise de documentos e ações na área, e, a partir das falas dos sujeitos envolvidos no processo de elaboração e execução da política de saúde mental no Pará, seus limites e desafios.
Abstract
The article develops an analysis of the historical context of madness, the actual relevance of the problem. It emphasizes the development of the psychiatric reform, its impacts in Brazil, and, particularly, in the state of Pará. It presents the demands of the social movements acting in the field of mental health at national level and its repercussion in the actions developed in the field of the mental health in Pará between 2007 and 2010. Finally, identifies the relationship between the demands of the social of the movement in the area of the mental health and the performance of the public administration, by analysing documents and actions developed in the area and interpreting the discourse of the individuals involved in the process of the elaboration and execution of the mental health policies in Pará.
Palavras-chave: Políticas Públicas. Saúde Mental. Movimento da Luta Antimanicomial
SAÚDE MENTAL: a roda viva da política pública do estado do Pará – 2007/2010
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
(Chico Buarque)
Introdução
O presente trabalho discute o modelo da assistência em saúde mental, no Estado do Pará, no período compreendido entre os anos 2007 e 2010, a partir da visão dos sujeitos envolvidos no processo de elaboração e execução da política de saúde mental, e os principais impactos produzidos na realidade efetiva. Tal perspectiva de análise crítica parte da complexa rede de relações sociais no campo da saúde mental, que se expressam em um processo de idas e vindas de uma “roda-viva” que não quer parar de girar.
Destarte, apresentam-se, inicialmente, dados sobre a saúde mental no mundo e no Brasil; em seguida, identifica-se o panorama do processo da reforma psiquiátrica, seus limites e desafios, e a particularidade da saúde mental no Estado do Pará, entre os anos de 2007 a 2010, no que diz respeito à estrutura física, ao número de funcionários e à dinâmica de funcionamento dos serviços; por último, verifica-se o atendimento às demandas dos usuários e familiares, a relação entre gestão e movimento social e, especificamente, o papel do movimento da luta antimanicomial no Pará, seus avanços e desafios.
A vida é dinâmica, pois assim está estruturada a sociedade, uma vida em que as relações sociais se transformam conforme uma variedade de fatores, alguns dos quais foram analisados no presente trabalho. A letra da música de Chico Buarque, no contexto das lutas pela democracia, pelo fortalecimento do poder do povo no contexto da ditadura militar no Brasil que dominou o país partir de 1964 até meados dos anos 1980 parece falar sobre esses movimentos que constroem as lutas pelos direitos sociais, como o direito por saúde pública e mais especificamente por saúde mental. É com essa música que o trabalho tem seu início, inspirando-o, instigando-o a questionar o que há por trás do aparente, o que roda nesta roda viva, afinal?
Dados sobre a saúde mental
Com a finalidade de situar a relevância do tema da pesquisa, apresentam-se dados divulgados pela Organização Pan-Americana da Saúde / Organização Mundial de Saúde – OPAS/OMS (2001), em que são observados transtornos mentais e comportamentais em pessoas de todas as regiões, em todos os países e em todas as sociedades. Tais transtornos estão presentes em todos os estágios da vida, em mulheres e homens, ricos e pobres, habitantes de áreas urbanas e rurais.
Pesquisas diversas, realizadas tanto em países desenvolvidos quanto em países em desenvolvimento, apontam que durante a vida inteira mais de 25% das pessoas apresentam um ou mais transtornos mentais ou comportamentais (REGIER et al., 1988; WELLS et al., 1989; ALMEIDA FILHO et al., 1997, apud OPAS/OMS, 2001). Dentre as perturbações comuns que geralmente causam incapacidade grave apontam-se: perturbações depressivas, perturbações causadas pelo uso de substâncias, esquizofrenia, epilepsia, doença de Alzheimer, atraso mental e perturbações da infância e da adolescência. Os fatores associados com a prevalência, a manifestação e a progressão desses problemas compreendem a pobreza, o sexo, a idade, os conflitos, as catástrofes, as graves doenças físicas e o ambiente familiar e social.
Outros dados da OPAS/OMS evidenciam que cerca de 450 milhões de pessoas ainda estão longe de receberem assistência adequada no âmbito da saúde mental, sobretudo nos países em desenvolvimento. Estima-se que os transtornos mentais comportamentais respondam por 12% da carga mundial de doenças, enquanto as verbas orçamentárias para a saúde mental, na maioria dos países, representam menos de 1% dos seus gastos totais em saúde. Ademais, 40% dos países carecem de políticas de saúde mental, e mais de 30% sequer possuem programas nessa área. Registra-se, também, que os custos indiretos gerados pela desassistência provenientes do aumento da duração dos transtornos e das incapacitações acabam por superar os custos diretos (ONOCKO-CAMPOS e FURTADO, 2006).
Ainda segundo a OPAS/OMS (2001), dados alarmantes demonstram o impacto das doenças mentais nas sociedades atuais e indicam que a depressão grave é atualmente a principal causa de incapacitação em todo o mundo, ocupando o quarto lugar entre as dez principais causas de patologia, em nível mundial. Se estiverem corretas as projeções, caberá à depressão, nos próximos 20 anos, o papel de segunda causa de afastamento do trabalho no mundo. Em todo o globo, 70 milhões de pessoas sofrem de dependência do álcool; cerca de 50 milhões têm epilepsia; 24 milhões têm esquizofrenia; 1 milhão comete suicídio anualmente; e, entre 10 e 20 milhões, tentam suicidar-se.
Ao considerar a componente incapacidade, dados sobre a Carga Geral de Doenças – CGD (2000) e informações da OPAS/OMS (2001) indicam que as afecções mentais e neurológicas respondem por 30,8% de todos os anos vividos com incapacidade. A depressão causa a maior proporção de incapacidade, representando quase 12% do total. Seis afecções neuropsiquiátricas situaram-se entre as 20 principais causas de incapacidade no mundo, desdobrando-se em perturbações depressivas unipolares, perturbações pela utilização do álcool, esquizofrenia, perturbações afetivas bipolares, doença de Alzheimer e outras demências.
Do ponto de vista econômico, o impacto das perturbações mentais é profundo, durável e dispendioso. Esses problemas impõem ao indivíduo, à família e à comunidade custos emocionais e financeiros. Para a OPAS/OMS (2001), parte desse tributo é evidente e mensurável, enquanto outra parte é quase impossível de se medir. Dentre os componentes mensuráveis estão os serviços sociais e de saúde; a perda de emprego e a redução da produtividade; o impacto nas famílias e nos prestadores de cuidados; os níveis de criminalidade e a segurança pública; e o impacto negativo na mortalidade prematura.
Alguns estudos, principalmente em países industrializados, calculam os custos econômicos agregados das perturbações mentais. Um desses estudos concluiu que o custo agregado para os Estados Unidos correspondeu a 2,5% do produto nacional bruto. Nesse domínio, determinados estudos da Europa estimam a proporção dos gastos na área da saúde mental em relação aos custos de todos os serviços de saúde. Na Holanda, essa relação foi de 23,2% (MEERDING e col., 1998); no Reino Unido, para gastos com doentes internados, a proporção foi de 22% (PATEL E KNAPP, 1998 apud OPAS/OMS 2001
Embora não haja estimativas científicas disponíveis para outras regiões do mundo, é provável que os custos das perturbações mentais com relação à economia global também sejam elevados. Contudo, em países onde a disponibilidade e a cobertura com cuidados em saúde mental são pequenas e as estimativas de custos diretos possam ser baixas, tais estimativas não têm muita credibilidade. Os custos indiretos, decorrentes da perda de produtividade, respondem por uma proporção maior do total do que os custos diretos. Ademais, os baixos custos do tratamento (devido à sua ausência) podem efetivamente elevar os custos indiretos, ao fazer aumentar a duração das perturbações não tratadas e da concomitante incapacidade (CHISHOLM, 2000, apud OPAS/OMS, 2001.
No Brasil, no que diz respeito aos dados epidemiológicos, Onocko-Campos e Furtado (2006) afirmam que o país tem a prevalência de 3% de transtornos mentais severos e persistentes e 6 % de dependentes químicos e investe cerca de 2,4% do orçamento do Sistema Único de Saúde (SUS) na área de saúde mental.
Pesquisas de várias áreas do conhecimento, corroboradas pela OMS, indicam que a maioria das doenças, mentais e físicas são influenciadas por uma combinação de fatores biológicos, psicológicos e sociais. A compreensão da relação entre saúde mental e física vem aumentando rapidamente. Importa ressaltar que as perturbações mentais resultam de muitos fatores e têm a sua base física no cérebro. Tais perturbações podem afetar a todos e em toda a parte. Contudo, mais frequentemente do que se pensa, podem ser tratadas de forma eficaz e com resultado bastante positivo.
Na realidade brasileira, no tocante à assistência à saúde mental, Ribeiro (2003) ressalta que, até há pouco tempo, o tratamento se organizava exclusivamente em torno das internações psiquiátricas, muitas vezes por longos períodos de tempo, e, não raramente, por toda a vida, acarretando importantes efeitos secundários no nível da deterioração pessoal.
Ao longo das últimas décadas, entretanto, diversos países, inclusive o Brasil, têm implementado políticas de atenção em saúde mental baseadas no elemento central comum de alteração do eixo da atenção do hospital para a comunidade, objetivando a continuidade do cuidado e a atenção integral (DESVIAT, 1994; RAMON, 1985, 1992; LEFF, 1997, apud RIBEIRO, 2003).
Conforme dados da OPAS/OMS (2001), em relatório específico sobre a saúde mental no mundo, esta – negligenciada durante demasiado tempo – é essencial para o bem-estar geral das pessoas, das sociedades e dos países e deve ser universalmente encarada sob nova luz.
O apelo do documento elaborado pela OPAS/OMS (2001) teve a adesão da Assembleia Geral das Nações Unidas, que celebrou este ano o décimo aniversário dos direitos dos doentes mentais à proteção e assistência. Desse modo, desde 1991, o Relatório sobre a Saúde no Mundo 2001 renova a ênfase dada aos princípios proclamados pela ONU, tais como: (1) não deverá existir discriminação por doenças mentais; (2) dentro do possível, deve-se conceder a todo doente o direito de ter os cuidados necessários na sua própria comunidade; e, (3), todo doente terá o direito de ser tratado de forma menos restritiva e intrusiva, em ambiente o menos limitativo possível. Tais princípios são profundamente influenciados pela Reforma Psiquiátrica, que será abordada mais detalhadamente no ponto seguinte.
Panorama do processo da reforma psiquiátrica: limites e desafios
Do ponto de vista de um panorama geral desse processo de reforma psiquiátrica e alguns de seus desafios mais recentes, Vasconcelos (2010, p. 21) afirma que “há sinais de excessiva institucionalização e burocratização dos novos serviços na rede de saúde mental, com forte precarização dos vínculos de trabalho”. Afirma, ainda, que, as enormes dificuldades enfrentadas na luta pela efetivação da reforma psiquiátrica e da reforma sanitária no Brasil significam um desafio com dimensões mais amplas: o da universalização das políticas sociais em contexto periférico ou semiperiférico, como no Brasil, em plena crise das políticas de bem-estar social no plano mundial, ou seja, sob hegemonia e expansão de um longo ciclo histórico de políticas neoliberais, desemprego estrutural, precarização das políticas públicas e indução da desassistência.
Em conjunturas difíceis como essa, é preciso reconhecer um aspecto importante: as conquistas no processo de consolidação das políticas sociais universais em geral no nosso país, em particular no SUS e no processo de reforma psiquiátrica, dependem fundamentalmente da presença e da ação política de movimentos, atores e forças sociais comprometidos com os interesses popular-democráticos, que pressionam de fora e ocupam os espaços possíveis de luta e gestão dentro do aparelho do Estado a fim de garantir o financiamento e a implantação das novas políticas e programas.
Assim, no campo da saúde mental, salienta-se a importância histórica e da contínua ação política de nossos dois movimentos sociais mais importantes: o Movimento Antimanicomial, com base maior na sociedade civil, em trabalhadores e sobretudo em usuários e familiares; e o Movimento de Reforma Psiquiátrica, mais amplo e com articulações mais institucionais, no campo universitário, dos trabalhadores e da gestão estatal. Os dois movimentos coexistem, mais o primeiro tem como característica central a autonomia e busca de sustentação principal na sociedade civil (VASCONCELOS, 2010, p. 23- 24)
Ao pensar sobre o conjunto de necessidades complexas dos portadores de sofrimento mental, Vasconcelos (2010, p. 149) afirma que o movimento de usuários e familiares e as duas principais tendências do movimento antimanicomial – o Movimento Nacional de Luta Antimanicomial (MNLA) e a Rede de Internúcleos (Renila) – vêm regularmente produzindo documentos e encaminhando reivindicações às agências responsáveis pelas políticas públicas de saúde mental nas três esferas de governo.
Vasconcelos (2010) destaca três grandes iniciativas no campo da saúde mental no ano de 2009: (1) a Marcha dos Usuários, convocada originalmente pela Renila, que aconteceu em Brasília, em setembro de 2009, com a participação de aproximadamente 2.300 pessoas proveniente de todo o país; (2) o VII Encontro Nacional de Usuários e Familiares do MNLA, em São Bernardo do Campo, que produziu um relatório final; e, (3), o IX Encontro do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, cujo produto foi a elaboração de um relatório.
Como apresenta Vasconcelos (2010), ainda que a Marcha dos Usuários represente a pauta mais abrangente, há uma forte confluência entre os movimentos com relação ao perfil das propostas mais gerais para a política de saúde mental no país. Dentre os principais eixos de reivindicações, que também podem ser consideradas as necessidades atuais dos portadores de sofrimento mental, representados pelos movimentos sociais, destacam-se: (a) efetivação imediata da rede substitutiva de atenção em saúde mental, com ampliação do número de Centros de Atendimentos Psíquicos Sociais (CAPS); (b) ampliação dos projetos de trabalho e renda, tais como cursos profissionalizantes, iniciativas de empreendedorismo, cooperativismo e economia solidária, bolsa-trabalho, trabalho protegido etc.; (c) ampliação do Programa de Volta para Casa; (d) regulamentação e financiamento próprio para os Centros de Convivência; (e) não financiamento público de Eletroconvulsoterapia e outras intervenções invasivas pelo SUS; (f) garantia de provisão regular e adequada de medicação psiquiátrica pelo SUS a todos os usuários de serviços e pessoas com transtorno mental; (g) transporte coletivo gratuito para pessoas com transtorno mental; (h) criação de comissões de saúde mental em todos os conselhos estaduais e municipais de saúde, conforme a Lei 8.142/90, que garante o controle social pela participação social da sociedade civil; (i) ação conjunta da Secretaria Especial de Direitos Humanos e do Poder Judiciário para revisão das interdições judiciais de pessoas com transtorno mental; (j) abertura de projetos e serviços gratuitos de defesa dos direitos dos usuários e familiares, com equipes interdisciplinares e, particularmente, com assistência jurídica especializada no campo da saúde mental; (k) aceleração dos processos de desinstitucionalização de hospitais de longa permanência, com medidas imediatas para coibir ações degradantes e maus-tratos; (l) promoções de eventos e ações para garantia dos direitos das pessoas com transtorno mental no sistema prisional, visando também à revisão de toda a legislação penal nesse campo; (m) implantação de política conjunta com o Ministério da Cultura para iniciativas em arte e cultura para pessoas com transtorno mental, particularmente com a participação das associações de usuários e familiares; (n) revisão dos critérios e da garantia do acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), sem a exigência de curatela.
No Brasil, nos últimos anos, além do conjunto de necessidades que já vem sendo palco de lutas e enfrentamentos da reforma psiquiátrica, há um conjunto de propostas e reivindicações que vem sendo levantadas com o objetivo de gerar o fortalecimento organizacional do movimento de usuários e familiares em suas bases, tais como a construção e efetivação de rede de atenção e garantias de direitos, expressos nas reivindicações e na legislação de saúde mental, bem como no relatório final da IV Conferência Nacional de Saúde Mental.
Nesse campo, como aponta Vasconcelos (2010), as principais propostas são: (a) ampliação e fortalecimento do Cadastro Nacional de Associações de Usuários e Familiares em Saúde Mental; (b) realização de programa de inclusão digital para usuários e familiares nos Centros de Atendimento Psíquico Social e para suas associações; (c) elaboração de programa de estímulo a pesquisas sobre a realidade do movimento de usuários e familiares; (d) criação de fundos públicos para financiamento de pequenos projetos autônomos de associações de usuários e familiares; (e) construção de uma política ativa de comunicação regular, de divulgação e apoio estratégico a ações e projetos desenvolvidos pelas associações; (f) criação de equipes específicas para produção de material de educação popular no campo da saúde mental; (g) implantação de grupos de ajuda e suporte mútuos facilitados por lideranças de usuários em processos mais avançados de recuperação e por familiares com mais experiência, com capacitação e supervisão específica, para atuar principalmente na comunidade e na rede de atenção básica; (h) experimentação e implantação de dispositivos variados de apoio a familiares na rede, de forma orgânica com as associações de usuários e familiares; (i) experimentação e difusão de metodologias de gestão autônoma da medicação psiquiátrica para usuários; (j) promoção de cursos de capacitação de conselheiros em saúde mental, incluindo itens de educação e formação política; (k) criação e implementação do “Plano de Crise”, por meio do qual o usuário estabelece as matrizes e medidas necessárias para seu cuidado em períodos de crise aguda; (l) abertura de ouvidorias em saúde mental; (m) oficialização do Grupo de Trabalho de Demandas de Usuários e Familiares, ligados à Coordenação Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde.
Em toda esta discussão, é possível perceber que os portadores de sofrimento mental apresentam um conjunto de necessidades muito complexas que não se resumem ao controle da sintomatologia psiquiátrica ativa. São cidadãos como outros quaisquer e têm necessidades que envolvem a sua integração na sociedade e o desempenho de papéis sociais de forma adequada. Necessitam, contudo, de suporte para enfrentar as exigências da vida cotidiana e melhorar sua qualidade de vida. Destarte, as políticas públicas na área da saúde mental são fundamentais para garantir que seus direitos sejam respeitados. Assim, a questão fundamental que norteou a pesquisa foi: “Qual o modelo de assistência aplicado no Pará entre 2007 e 2010, o tradicional, manicomial ou o da reforma psiquiátrica e quais os resultados da política em termos de impacto?
Caminhos da pesquisa
O trabalho de pesquisa se deu através da análise dos documentos e de entrevista com os executores da política. Para isso, é preciso esclarecer que neste trabalho foram considerados “executores da política”, os gestores governamentais que ocuparam cargos de confiança (Direção e Assessoramento Superior – DAS), nomeados em decretos ou portarias específicas pelo governo do Estado para gerir serviços públicos e os integrantes do movimento social com interesse na área (Movimento Paraense da Luta Antimanicomial – MLA), composto por trabalhadores que executam suas tarefas laborais no âmbito dos serviços de saúde mental do Estado, porém não ocupam cargos de confiança; usuários do serviço, pessoas que buscam tratamento nos serviços apresentando alguma queixa relacionada à saúde mental e os familiares desses usuários, pessoas que de alguma maneira os apoiam e lutam pela melhoria dos serviços e por avanços na política pública. Outras pessoas, que eventualmente não são usuárias dos serviços e nem possuem vínculos familiares diretos com usuários, porém que se identificam com a causa antimanicomial e se reconhecem como participantes do MLA ou da luta antimanicomial também podem ser considerados executores da política.
Ao responder às perguntas e verificação da hipótese de pesquisa pretendeu-se contribuir para a melhoria na qualidade da assistência à saúde mental no Estado do Pará.
O trabalho foi realizado a partir de uma perspectiva crítica de análise. Do ponto de vista dos recursos metodológicos, é possível afirmar que para consecução dos objetivos propostos foi realizado um estudo com o objetivo de explorar o fenômeno a partir de uma ampla base de dados para chegar à compreensão sobre determinado problema. Assim, foi realizada uma pesquisa sobre a política pública de saúde mental no Estado do Pará durante o período demarcado.
O período de 2007 a 2010 foi escolhido também intencionalmente em função da mudança política do governo do Estado do Pará, quando um grupo político (Partido dos Trabalhadores) que mantinha relações próximas com o movimento social, incluindo em seu programa de governo propostas defendidas pelo Movimento da Luta Antimanicomial assumiu a condução do processo de gestão pública. A intenção da pesquisa foi, então, compreender se a pauta de reivindicações do movimento avançou ou não durante este período.
Foram utilizados os seguintes instrumentais técnicos: pesquisa documental e bibliográfica, além da realização de entrevistas semi-estruturadas com os executores da política pública de saúde mental no Pará
O critério de inclusão para participação na pesquisa foi o sujeito ter exercido a função de coordenação na área de saúde mental no âmbito da Secretaria Estadual de Saúde do Estado do Pará e no caso dos gestores e no caso do movimento social, ser membro da direção executiva do mesmo. Ou seja, foram escolhidos para participar da pesquisa não os formuladores da política (os dirigentes nacionais ou estaduais que definem os objetivos da política), mas os seus executores (pessoas que implementam as atividades, acompanham as ações e/ou supervisionam a política), assim como os seus beneficiários, ou aqui chamados usuários.
O Movimento Paraense da Luta Antimanicomial (integrante da rede internúcleos
– RENILA) foi escolhido para participar da pesquisa em função de ter sido o único movimento representativo de usuários, famílias e trabalhadores da área de saúde mental
a participar da VI Conferência Estadual de Saúde Mental Intersetorial, ocorrida em maio de 2010.
Para representar os gestores executores da política, foram entrevistados o coordenador estadual de saúde mental, o diretor da 1ª Regional de Proteção Social, a diretora do CAPS Renascer- (SESPA) e o Diretor Assistencial da Fundação Pública Estadual Hospital de Clínicas Gaspar Vianna que estavam nos cargos citados em 31 de Dezembro de 2010. Para representar o movimento social que organiza usuários, familiares e trabalhadores foram entrevistados 03 membros da direção executiva do MLA. Esses sujeitos foram escolhidos em função de sua posição na tomada de decisões, vivência e conhecimento sobre a política de atenção em saúde mental na área analisada.
Vale destacar que foram utilizadas iniciais falsas com o objetivo de proteger as identidades do máximo possível.
Na análise foram utilizadas pesquisa bibliográfica, documental e entrevistas. Assim, foram buscados documentos e relatórios de gestão que auxiliassem na compreensão sobre a estrutura e a dinâmica de funcionamento da rede; documentos publicados pelo MLA durante o período pesquisado para se compreender os principais pontos de pauta do movimento social, além da compreensão da avaliação que os gestores e movimento social fazem da situação da saúde mental do Estado do Pará no período de 2007 a 2010, bem como suas sugestões para melhoria da rede de atenção psicossocial do Pará.
Nas entrevistas foram procurados alguns pontos específicos com objetivo de compreender a realidade estudada, tais como o contexto histórico em que cada serviço se encontrava e a avaliação que cada sujeito fazia do momento vivenciado pela política pública de saúde mental no período de 2007 a 2010, suas análises sobre a rede de atenção, percepções sobre a relação entre movimento social e gestão, além de sugestões para melhoria.
Para análise dos dados provenientes das entrevistas foi utilizada a técnica de sistematização e operacionalização metodológica que consiste na organização por falas semelhantes sobre determinado tema ou assuntado perguntado previamente no roteiro de entrevistas.
Vale destacar que a pesquisa obedeceu a resolução 196/06 do Conselho Nacional de Saúde, sendo submetido ao Comitê de Ética Local da FHCGV. Somente após a aprovação o trabalho de coleta de dados teve início efetivamente.
Particularidade da saúde mental no estado do Pará, nos anos de 2007 a 2010
Com base nas informações do relatório da Coordenação Estadual de Álcool e Outras Drogas, concernentes aos anos de 2007 a 2010, apresenta-se um quadro das principais ações realizadas no setor, tais como: visitas técnicas realizadas em municípios diversos; capacitação para os profissionais dos Centros de Atendimento Psíquico Social, totalizando 51 eventos de capacitação em quatro anos; instituição do Grupo de Trabalho Desinstitucionalização, em maio de 2008; instituição do Grupo Técnico Expansão de Leitos Psiquiátricos no período de julho e agosto de 2008; Realização da “III chamada para supervisão clínico-institucional dos CAPS e rede de atenção psicossocial”, em 09 de maio de 2008.
A partir dessas ações, pode-se afirmar que o Estado apresentou melhoras nos Indicadores de Saúde Mental (CAPS/100.000 habitantes) saindo de uma baixa cobertura (0,27 CAPS/100.000 habitantes) para uma regular cobertura (0,37 CAPS/100.000 habitantes). O relatório também menciona que, apesar do crescimento da rede CAPS (de 31 em 2006 para 42 em 2009), o Ministério da Saúde precisa habilitar 7 dos 42 CAPS existentes, o que melhoraria ainda mais o indicador naquele momento. Destarte, outras ações também aconteceram no campo da saúde mental, como: (a) Construção e Participação na IV Conferência Nacional de Saúde Mental – Intersetorial ; (b) Carnaval da diversidade: de sambista e louco todo mundo tem um pouco! – 2º carnaval de rua dos serviços de saúde mental da capital, com a participação de aproximadamente 200 brincantes; (c) Inauguração da 1ª Residência Terapêutica do Pará.
Importa sinalizar que, a partir das informações analisadas nos relatórios de gestão (período 2007/2010), percebe-se que o Estado do Pará, na área da saúde, enfrenta inúmeras questões que se traduzem em grandes desafios, tais como: (a) as mudanças ocorridas na coordenação do programa, gerando descontinuidade nas ações programadas pela equipe técnica; (b) o número reduzido de profissional médico psiquiatra na equipe multidisciplinar dos serviços; (c) a dificuldade de acesso em consequência da diversidade geográfica do Estado; (d) a não prioridade de um número significativo de gestores municipais na implantação de serviços de saúde mental; (f) a centralização, nos municípios, da assistência em saúde mental somente nos CAPS, descaracterizando seu objetivo; (g) a inexistência de um sistema informatizado que possibilite acompanhar e avaliar o perfil epidemiológico da saúde mental no Estado; (h) as dificuldades na implantação de Leitos de Atenção Integral em hospitais gerais.
As questões relacionadas surgem nas falas dos sujeitos entrevistados na pesquisa e, de certa forma, são expressas na prática cotidiana dos profissionais da área da saúde mental (gestores da política de saúde mental; trabalhadores responsáveis pela realização das ações e atendimentos na área), dos representantes dos movimentos sociais da saúde mental, dos usuários dos serviços e de seus familiares.
Desse modo, o Coordenador Estadual de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, com relação à avaliação da política pública de saúde mental no Estado do Pará, afirma que houve, no período de três anos (2007/2009), um aumento de 96% no número de serviços. Contudo, esse fato é questionado, não só no âmbito da própria gestão, como também, na visão do movimento social sobre a condução da gestão.
Como afirma o referido coordenador, no que concerne à abertura de novos Centros de Atendimentos Psíquicos Sociais em diferentes localidades e municípios do Estado do Pará,Todo mundo da cidade iria saber que lá tem saúde mental e iria saber que a equipe de saúde mental não era suficiente para dar conta da demanda, então eu conflitava com a minha equipe e com o próprio movimento social. […] Algumas pessoas do movimento social falavam que não adiantava montar um CAPS lá se ele não estiver forte o suficiente, potente o suficiente para prestar uma boa assistência. E eu tinha uma outra concepção: Está cumprindo a portaria? Está funcionando? Então deixa eles tocarem, deixa a cidade saber que é o CAPS, daqui a pouco vai ter uma greve na frente, vai ter mobilização da sociedade. Olha, por que não tem remédio? Porque essa cidade não tem estoque de CAPS, porque essa cidade nem sabe o que é CAPS, não é? […] (V, Coordenador Estadual de Saúde Mental, Álcool e Ouras Drogas, Gestor, 2012).
No que diz respeito a essa questão específica apresentada acima, uma diretora do Movimento Nacional de Luta Antimanicomial (MNLA) argumenta que pode ter sido um erro estratégico da gestão a abertura de muitos CAPS em diferentes municípios do Estado do Pará. Segundo a entrevistada, essa iniciativa da gestão resultou apenas em mudanças quantitativas e não qualitativas.
Desse modo, parte da direção do movimento critica e denuncia a abertura e inauguração dos diversos CAPS com escassez de equipamentos, de pessoal e com a assistência não adequada. A diretora do MNLA faz uma crítica contundente no que se refere à relação entre a gestão da coordenação estadual e a gestão municipal. Em sua opinião, a precariedade dos serviços do município de Belém merecia uma intervenção estadual. Como profissional da área, ela entende que “a coordenação estadual poderia estar intervindo no município de Belém em termos de estar forçando ou então cobrando, exigindo que não houvesse um total sucateamento dos equipamentos e não fez”.
No tocante à intervenção no município, o Coordenador da Saúde Mental compreende a crítica do movimento, entretanto, dentro da sua governabilidade, entende que o governo já estava envolvido em outras tarefas mais prioritárias.
Ainda há, contudo, enormes desafios a serem enfrentados em termos de ampliação e diversidade da rede de atenção a saúde mental, como os projetos de geração de trabalho e renda; os pontos de cultura em CAPS; e a criação do primeiro centro de convivência do Pará. Ademais, faz-se necessária a criação de uma espécie de residência terapêutica para moradores de rua, hoje totalmente desassistidos. Enfim, o desafio neste campo é grande e deve ser enfrentado com a intersetorialidade.
Ainda, com relação ao novo modelo de assistência proposto, uma trabalhadora do CAPS municipal de Belém, quando indagada sobre a adesão dos trabalhadores inseridos nos CAPS ao projeto desenvolvido pela gestão, afirma “que, não houve adesão dos trabalhadores, que até hoje se recusam a atender”. Afirma a entrevistada:
Atender a crise gera uma crise. Os trabalhadores não conseguem pensar isso. Para mim, que vivenciei toda a construção do projeto de uma política, a função do CAPS é atender usuário grave, não é atender usuário estabilizado. Usuário estabilizado deve ir para a rede básica. Esse é o funcionamento e é assim que a gente deve pensar o trabalho de rede, é trabalhar uma rede psicossocial. Como fazer isso? É muito claro, cada um tem uma função e o CAPS não pode ser essa, é aprender e prevenir para que não tenha a ocorrência das longas internações.
(V, Coordenador Estadual de Saúde Mental, alcool e Ouras Drogas, Gestor, 2012).
Sobre essa questão, analisada anteriormente, todos os sujeitos da pesquisa, de uma forma ou de outra, concordam com a opinião da entrevistada, destacando que é necessário receber mais capacitação e que a culpa do serviço de má qualidade não é do trabalhador e sim do gestor, que não oferece as condições necessárias.
A propósito do papel do CAPS no atendimento à crise e sua relação com o Hospital de Clínicas Gaspar Vianna (HCGV), o diretor do mencionado hospital argumenta que
Por mais que existam o CAPS I, II e III, a capacidade de resolutividade é limitada, chega um momento em que o CAPS não consegue mais segurar. Ele pode e deve prevenir o adoecimento, a crise, a reagudização, mas a partir do momento em que ele reagudiza, o paciente deixa de ser, vamos dizer assim, manejável, ele deixa de ser tratável nesse tipo de serviço de assistência e aí se retorna à assistência hospitalar.
Entretanto, apesar das ponderações em relação à abertura e atuação dos CAPS, o diretor do HCGV admite “que foi um ganho o aumento do número de serviços no interior do Estado”. Como informa o entrevistado,
Existe uma estimativa mundial que 80% dos pacientes que tem transtornos mentais, desde os mais graves até os mais brandos, não são diagnosticados e não procuraram atendimento, isso no mundo todo. Então, a partir do momento que os CAPS começaram a existir em vários municípios do Estado, eu acho que muitos dos pacientes que não tinham qualquer nível de assistência começaram a ter e esses CAPS. A partir do momento em que não puderam dar a alguns deles a resolutividade que era necessária, tiveram que encaminhar para a gente. Em parte eu explico essa demanda dos pacientes, sim porque aumentou a demanda de pacientes de todo o Estado para cá, e em parte eu explico isso pelo aumento do número de CAPS. Então, começamos a ver esses pacientes, começamos a levantar a poeira desses pacientes.
Diferentemente, o usuário do CAPS e membro da Diretoria Executiva do Movimento Paraense da Luta Antimanicomial, Movimento Social – Usuário, CAPS estadual – Grão-Pará- Belém, defende o modelo de atendimento a partir de sua experiência com a melhora no tratamento após chegada no CAPS. Nessa mesma direção, uma familiar de um dos usuários dos serviços oferecidos no CAPS fornece o seguinte depoimento:
A minha mãe só vivia dormindo, veio para o CAPS, hoje já caminha, fala com as vizinhas, bota uma roupa limpa. Aí eu pedi a palavra e falei: essa é mais uma vitória de Deus e dos profissionais. O que não pode são esses pacientes que só vem pra consulta e para pegar remédio. Esses tem que encaminhar para o posto de saúde.
Um grande problema identificado na pesquisa foi o “gargalo” da insuficiência de leitos psiquiátricos, criando um grande nó na emergência do HC. Esta situação poderia ter sido diluída, por exemplo, com a implantação de um dispositivo que vem sendo estimulado pelo Ministério da Saúde: os leitos de Atenção Integral à Saúde Mental em Hospital Geral. Como se viu no Relatório de gestão da SESPA nenhum leito em hospital geral foi aberto durante o período.
Os leitos de atenção integral em saúde mental fazem parte de uma rede de atenção, estão referenciados no território e encontram-se intimamente articulados de forma complementar, solidária e com propósitos definidos. Trata-se de leitos que se destinam ao acolhimento noturno de usuários em situação de crise que necessitam de cuidados contínuos, definidos pela equipe de referência do usuário, a partir de seu projeto terapêutico individual. Podem ter como espaço de referência os CAPS III, as unidades de emergência ou leitos psiquiátricos em hospital geral. A portaria que regulamenta esse dispositivo prevê a existência de uma unidade com recursos humanos e materiais específicos (Portaria GM 1.612/2005), e essa é uma das dificuldades da sua implementação, a existência de um déficit no recurso de acolhimento noturno.
Em relação à políticas de inclusão digital para usuários e familiares, por ser um tema transversal, aparece várias vezes nos relatórios das conferências estadual e nacional de saúde mental. No que diz respeito à Inclusão Digital propriamente dita, o item 971. “Promoção de programas de inclusão digital e de incentivo à produção cultural comunitária dos usuários de Saúde Mental, com ênfase na sua autonomia, por meio de oficinas terapêuticas, capacitações e parcerias com universidades, ONGs, mídias comunitárias, dentre outros, incluindo os meios oficiais oferecidos pelo Ministério da Cultura.” e no 972. “Garantir aos usuários de Saúde mental a inserção nos infocentros.”
Passando à prática, em relação à questão da existência ou não de algum programa de inclusão digital para usuários da saúde mental entre 2007 e 2010, afirmou o coordenador Estadual de Saúde Mental, V ter conhecimento da existência:
[…] Tenho. O CAPS chamado CAPS Amazônia, ou CAPS Marambaia
tem uma situação com a escola de governo da universidade, eu não
sei te dizer o nome, mas eles formam, dão curso em informática. Fui
chamado uma vez lá na formatura de uma turma de 12 pessoas que
eles formaram lá, isso no ano de 2010. Havia também a proposta de
começar isso também no CAPS III ad, o CCDQ, mas é como te disse,
não tivemos tempo[…]
(V, Coordenador Estadual de Saúde Mental, Álcool e Ouras Drogas, Gestor, 2012).
Quando perguntado se foi uma iniciativa dos usuários dos CAPS ou da gestão,respondeu:
“Não, foi iniciativa deles. Foi naquela perspectiva da assembleia, essa demanda saiu de uma assembleia e lá mesmo eles se articularam e fizeram tudo,chegando a formar essas 12 pessoas. Não sei te dizer se hoje está funcionando, mas na época eles conseguiram.”
A importância da iniciativa dos usuários por qualificação, por inclusão digital saída de uma assembleia ser apoiada pela gestão é um fato relevante e de destaque, porém esta boa prática poderia ter servido de modelo para outros CAPS se de fato estivesse sendo pensada do ponto de vista da gestão em saúde pública. Porém parece demonstrar também que os usuários tinham liberdade para pensar em suas próprias soluções de maneira autônoma, um dos principais objetivos dos CAPs.
Sobre as demandas específicas do Movimento da Luta Antimanicomial no Pará, algumas pautas são as mesmas que as nacionais, porém há algumas especificidades regionais que serão destacadas abaixo:
A) Implantar Residências Terapêuticas, como dispositivos de moradia e cuidado aos portadores de transtornos mentais que se encontram em situação de risco social (moradores de rua e pacientes institucionalizados);
B) Transformar o CIASPA ( um serviço estadual que funciona como resquício de um manicômio desativado) em Serviço Residencial Terapêutico possibilitando outra perspectiva de vida, através de uma outra forma de cuidado para os moradores que lá se encontram;
C) Implantar CAPS FLUTUANTE, equipamento capaz de dar contar da
peculiaridade regional;
D) Criar CAPS MISTOS (CAPS que atendam clientela diversificada: adulto,
criança e AD) nos municípios onde houver pouca demanda para atendimento
específico;
E) Implantar CAPS AD para atender demanda de crianças e adolescentes, que
sabemos ter nos centros urbanos (nas esquinas das avenidas, praças e fora da
escola) um elevado índice dessa demanda com problemas de dependência
química;
F) Reorganizar a situação de Emissão de Laudo para fins de Benefícios dos
Portadores de sofrimento mental, que hoje se concentra apenas no Instituto
de Perícias Renato Chaves, o que vem dificultando o acesso do referido
documento para a maioria dos usuários;
G )Criar uma Política de valorização dos Profissionais que atuam na saúde
mental, através de capacitação/educação continuada, Cursos deaperfeiçoamento nos princípios da Reforma Psiquiátrica e regularização do Recesso de 15 dias;
H)Instituir no estado o “Programa de Volta Pra Casa”, através de bolsa-auxílio
e Residências Terapêuticas, destinado aos pacientes institucionalizados no
CIASPA
I)Implantar o Curso de Especialização em Saúde Mental e Reforma
Psiquiátrica, na UEPA.
Considerações finais
Parece consenso, entre os vários entrevistados na pesquisa, que houve um aumento significativo do número de serviços, todavia com qualidade e impactos questionáveis, tanto pela gestão quanto pelos movimentos sociais.
São dignos de nota, conforme os relatos dos entrevistados, a grande oportunidade do movimento social de receber capacitações e treinamentos e, também, o estímulo aos usuários dos serviços a uma participação mais democrática, criando uma nova cultura nos CAPS estaduais. Houve, inclusive, a participação de alguns usuários na Marcha dos Usuários para Brasília, em 2009, mediante fornecimento de transporte (ônibus) pelo governo para trabalhadores e usuários. Tal fato foi decisivo para a construção das estratégias políticas na VI Conferência Nacional de Saúde Mental em 2010.
Referentemente à relação entre movimentos sociais e governos, observa-se que quanto maior o grau de organização do movimento, maior a autonomia e menor a dependência do governo. Em compensação, movimentos dependentes de governos terminam por ser cooptados e perdem sua força de luta .
Além disso, as relações político-partidárias entre governo estadual e municipal impactaram: (1) de forma positiva, na realização de acordos políticos e alianças, em muitas ações que possibilitaram avanços na política em saúde mental do Estado do Pará, o que pode representar um dado importante no atual contexto de precarização das políticas públicas sociais; e, (2), de forma negativa, no que diz respeito à ausência do Estado, na cobrança e na fiscalização dos serviços de saúde mental, segundo os preceitos constitucionais, e na falta de uma presença mais ativa do Estado, com uma intervenção mais efetiva junto às várias ações desenvolvidas pelo Ministério Público Federal, amplamente divulgadas na imprensa local, na defesa de uma política de saúde mental para o município.
Como resultado das ações realizadas, entre os anos de 2007/2009, pode-se inferir que 2010 foi um ano importante para o Estado do Pará, principalmente no que diz respeito aos avanços no campo da saúde mental. Através da participação social, exigida pelo Sistema Único de Saúde (SUS), dos gestores, trabalhadores e usuários, nas três etapas de conferências da área da saúde mental, foi possível a construção de um novo “norte” para os futuros governos, independente de cor partidária.
Apesar dos avanços e recuos registrados durante o período da pesquisa, no ano de 2012, a saúde mental entra na pauta de discussões do atual governo em função de pressões de trabalhadores, usuários e familiares organizados (conselhos gestores). Nesse período, foi montada uma greve por melhores condições de trabalho em função do não pagamento de uma gratificação para os trabalhadores. Nesse sentido, ressaltam-se inúmeros desdobramentos dessa greve, tais como: reuniões com o Conselho Estadual de Saúde; reuniões com o Secretário de Saúde e Sindicato dos Trabalhadores da Saúde para tratar do tema saúde mental; organização do dia Nacional da Luta Antimanicomial (18 de Maio/2012), pautando a relação com a cidade de uma forma crítica.
Não restam dúvidas de que determinados desafios, pautados a partir das conquistas realizadas, particularmente entre os anos de 2007 a 2010, poderão ser retomados na atualidade. Importa sinalizar que o movimento apresenta um maior grau de politização e conta com um quadro de pessoas que ocuparam cargos de gestão ou participaram como delegados das conferências de saúde mental em 2010, o que possibilita uma abertura de visão no campo político da saúde mental. Desse modo, percebe-se que o movimento está mais fortalecido, com mais fôlego para pensar velhos e novos desafios, como a efetivação de uma política de intersetorialidade que envolva a assistência social, a cultura, o esporte e o lazer, a habitação, o emprego e a renda.
Assim, respondendo mais diretamente à questão central que permeou este trabalho, o modelo de Política do estado do Pará no período de 2007 a 2010 possuiu aspectos do modelo manicomial e aspectos do modelo da Reforma Psiquiátrica, caracterizando um período de transição, porém a correlação de forças entre os defensores dos dois modelos pautaram e ainda continuam a pautar o estado de avanço maior ou menor da Reforma Psiquiátrica.
Outras conclusões que puderam ser percebidos a partir do trabalho de análise dos dados foi o baixo nível de satisfação dos gestores com transformações nos serviços, o que provavelmente tem uma relação com a sua relação de militante político (a) da causa antimanicomial,ou do Partido dos Trabalhadores. Isso expressa uma franca contradição entre papel de militante e gestor, contradição percebida em todos os movimentos nesta pesquisa.
Do ponto de vista do movimento social, foi possível perceber certo grau de dependência do grupo, em especial dos usuários em relação a uma liderança específica, pertencente ao grupo dos trabalhadores, o que pode refletir o baixo nível de organização do MLA no Pará, condizente com o que a literatura aponta acontecer em outros estados brasileiros.
No que diz respeito às demandas específicas por fortalecimento organizacional do movimento no estado e sobre a relação com a gestão é preciso fazer um balanço de que nenhum item analisado foi plenamente atendido, pois o Estado continua adotando uma orientação neoliberal (Estado Mínimo), apesar de apresentar alguns avanços focalizados em termos de superação da pobreza absoluta.
No que diz respeito a novas pesquisas, o campo da saúde mental na Amazônia ainda permanece carente de pesquisas. As possibilidades e necessidades são inúmeras.
Somente a título de exemplo, sugiro que este trabalho inspire a curiosidade para que se conheça mais de perto a realidade dos movimentos sociais na área da saúde mental, assim como há a necessidade de aprofundar os conhecimentos sobre a área da gestão da saúde pública. É necessário conhecer a utilização dos recursos financeiros para a saúde mental do estado do Pará. Somente a partir do conhecimento será possível prever a necessidade de investimentos. Somente assim o planejamento se torna viável.
Os caminhos estão apontados pelas conferências, não há segredo sobre o que fazer, a luta é pelas estratégias certas e pela tranquilidade necessária para lidar com o sentimento de inquietação ao se deparar com tanta dor sem continente. De resto, fica a inspiração de Bertold Brecht: “Que nunca se diga: isso é natural, para que nada passe por imutável…”
Referências
BRASIL. Portaria do Ministério da Saúde Portaria Nº 1.612/GM DE 9 SETEMBRO DE 2005. Disponível em: < https://dtr2001.saude.gov.br/sas/PORTARIAS/Port2005/GM/GM-1612.htm>
ONOCKO-CAMPOS R.T; FURTADO, J.P. Entre a saúde coletiva e a saúde mental: um instrumental metodológico para avaliação da rede de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Sistema Único de Saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 22, n.5, maio, 2006.
ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE E ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE (OPAS/OMS). Relatório sobre a Saúde no Mundo – Saúde Mental: Nova Concepção. Nova Esperança. 2001.
RIBEIRO, J. M. A Agência Nacional de Saúde Suplementar e as Políticas de Saúde Mental Direcionadas para Portadores de Enfermidades Mentais Severas. Rio de Janeiro, 2003. Disponível em: <https://www.ans.gov.br/portal/upload/forum_saude/forum_bibliografias/documentostecnicos/EAatencaoasaude/09_JMendes_SaudeMental.pdf>. Acesso em: 11 jul. 2009.
VASCONCELOS, E.M. Desafios políticos da reforma psiquiátrica. HUCITEC, Brasília, 2010.
Por Elida Rodrigues
Olá Josie,
Como está a Saúde Mental no Pará hoje?