A seriedade do espírito lúdico: ou o que seria um elogio da experiência
Escrevo este texto dois dias após render-me, já pela quarta vez, à experiência do filme/documentário dirigido por Cacau Rhoden e produzido por Estela Renner, Luana Lobo e Marcos Nisti. Tarja Branca: a revolução que faltava já era, antes do lançamento – pelo menos para mim, mas sei que também para muita gente – um daqueles filmes que nos fazem contar os dias por sua estreia. O trailer instigante e a informação de que Maria Farinha e Instituto Alana1 respondiam pela produção já eram indicadores bastante significativos de que coisa boa estava por vir. No entanto, é impossível negar que as quatro idas ao cinema para assistir ao mesmo filme com pessoas diferentes falam da expectativa totalmente superada; a ideia de assistir Tarja Branca mais de uma vez no intuito de redigir um texto sobre o filme seria uma racionalização, já que as lágrimas que correram no meu rosto provam que voltei ao cinema para me emocionar. Retorno três vezes ao filme para ver, escutar e, sobretudo, para senti-lo de novo.
O filme trata do brincar como algo sério e da mais alta seriedade. Os depoentes, cada um a seu modo e a partir de suas histórias de vida, fazem defesas brilhantes do ser brincante e pensam o brincar num patamar de condição estruturante do humano; ao mesmo tempo – e como não poderia deixar de ser – tecem críticas a um brincar administrado e lamentavelmente tão comum aos nossos dias. Ao definir o brincar como um ato de afirmação da vida, a educadora e etnomusicóloga Lydia Hortélio convoca a reflexão urgente que o filme suscita: uma sociedade que não confere ao brincar seu devido valor, não por acaso é uma sociedade que tem negado o ócio, a experiência e o indivíduo; expropria-nos do que há de mais humano em nós para que nos acostumemos ao triste lugar de autômatos. A criança prova, no brincar (de todas as formas que pode), que não é para ser assim. Quando consegue, nos encanta e é chamada criativa; quando não a compreendemos, é chamada desatenta, hiperativa. O filme mostra que nossos modos de vida gritam por transformação e que já não podemos tampar nossos ouvidos ao clamor do brincante que existe e resiste em todos nós. A pedagoga Ana Lucia Vilella constata o que já devíamos ter entendido: “não dá para continuar desse jeito”. Já não podemos mais aceitar uma vida não-brincante. O trabalho penoso e alienado não condiz em nada com a nossa verdade e já devíamos ter compreendido e ter aceitado isso a ponto de mandar ao conserto a “máquina burra da sociedade” (como enfatiza o poeta, escritor e compositor Bráulio Tavares, um dos depoentes do documentário). “Brincar é urgente!”, exclama a coreógrafa Andrea Jabor. “Brincar é usar o fio inteiro do ser”, pensa a pedagoga Maria Amélia Pereira – frases de impacto que jamais serão esquecidas por quem teve/tiver a oportunidade de deixar-se encantar pelas falas deste filme que, decerto, hão de cutucar os espíritos brincantes que a sociedade tem negado. O brincar fala do que é sério e o argumento não é paradoxal (intervenções precisas do psicanalista Ricardo Goldenberg). Trata-se de um documentário com muitas entradas para diversas questões, debates, reflexões importantes e urgentes (me alegra constatar, via redes sociais, que o filme está inspirando muitas pessoas a escreverem sobre ele; o que não é apenas “estratégia inteligente de divulgação”, mas, creio eu, necessidade de expressão daquele que escreve).
Faço questão de destacar a participação de dois brincantes que me levaram às lágrimas e ao riso mais de uma vez ao longo do filme: o artesão Hélio Leites e sua “medicina psicolúdica” – numa crítica genial aos processos de medicalização da vida – e o escritor Marcelino Freire que, ao trazer Manuel Bandeira em seu belíssimo Testamento (poema de 1943), fala da alma brincante daquele que, ao superar o pai, faz-se desejante na poesia. Há que se sublinhar com traços fortes a questão da valorização da cultura popular brasileira no filme; ricas manifestações da memória cultural que resiste ao esquecimento e às investidas da pseudocultura hegemônica industrializada e pasteurizada. O brincante daquele que não pôde ser na infância realiza-se, quando adulto, na arte. Tarja Branca mostra um Brasil que precisamos ser capazes de enxergar. Um país pleno de contradições – muitos problemas (sem dúvida), mas muito encanto e magia (sem dúvida), bem como defendeu o ator, palhaço e diretor teatral Marcio Libar, em suas falas no filme. Difícil não reconhecer, em termos de coerência estética e artística, a diferença das sérias brincadeiras de tradição do povo em relação ao lixo que a indústria cultural vende diariamente.
Não pretendo “fazer o spoiler” neste breve texto, mas não posso encerrá-lo sem mencionar o menino que me olha a partir de uma fotografia para questionar: “e aí? o que você fez de mim?” Não trabalho com cinema, mas não consigo imaginar um desfecho mais apropriado para o filme que não seja o que já está nele. A fala de Lydia Hortélio toca. E a fala que toca é muito mais importante do que a fala que apenas e simplesmente comunica. Ao localizar na infância o baú de tesouros do humano, Lydia te revela como ser de natureza brincante. Negá-lo é uma tristeza e uma lástima. É o que, aliás, tem feito a sociedade contra os homens: negá-los na condição de indivíduos; tal negação se inicia já na infância e se estende por toda a vida. Contra isso, porém, o brincante em nós – aquele que inventa, que quer o sentido do seu trabalho, que está farto de ser podado pela “máquina burra” – irracional e cruel -, que se recusa a abrir mão das pequenas fugas de realidade para que possa respirar melhor e que, enfim, é animado por um desejo que nunca cessa, posto que não encontra objeto que lhe baste – ao contrário do que afirma continuamente a sociedade de consumo conspícuo na qual estamos todos tão imersos.
Por uma feliz coincidência, concluo este texto no dia em que comemoro 31 anos de vida. Tarja Branca foi meu primeiro presente, eu diria. Aceitei o desafio de encarar o garoto da foto e foi ótimo porque o agradeci pelos muitos bonecos de papel que fez em seus deliciosos tempos de ócio, porque os limites das condições materiais jamais abafaram seus sonhos, porque dançou sem o menor constrangimento na frente de todos e porque sempre sorria para as (poucas) fotos. Hoje, quando o garoto questiona se continuo brincando, inventando histórias, monstros e heróis, nem sempre é fácil responder. Mas sim, às vezes até brinco. Às vezes não. É que nem sempre dá. Mas quando dá, eu brinco. E quando brinco, sou bem mais feliz; quando brinco, sou bem mais “eu”, isto é, o ser brincante que (r)existe em mim =)
1 – Maria Farinha Filmes e Instituto Alana já haviam nos surpreendido a todos com os belíssimos Criança, a alma do negócio e Muito além do peso, ambos disponíveis no YouTube (Criança, a alma do negócio é de 2008 e Muito além do peso é de 2012; o primeiro aborda a publicidade dirigida à criança e o segundo trata do problema da obesidade infantil).
Ricardo Taveiros Brasil é psicólogo e mestrando em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Integrante do Grupo Interinstitucional Queixa Escolar e do Fórum Sobre Medicalização da Educação e da Sociedade. Hoje consegue ser mais brincante em suas atividades, pois vê sentido nelas.
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Querido Ricardo,
Seja muito bem-vindo à RHS!
Uma estréia de peso com este texto lindo sobre um filme que nos encanta com as possibilidades de vida e potências "esquecidas" ou relegadas à invisibilidade pelo modo capitalístico de olhar a vida.
Cacau Rodhen, o diretor do filme, escreveu em seu perfil no facebook sobre a experiência de chegar às lágrimas ao ler a tua resenha.
Esperamos que a tua participação na RHS produza o mesmo efeito, adensando a intensidade afetiva peculiar de nossa experiência rizomática por aqui.
um grande beijo