Pressupostos para construção de indicadores de avaliação da qualidade na atenção em saúde.
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A experiência de ser é multifacetada, fragmentada e polifônica. O que designamos como identidade é uma síntese instável como a mítica hidra de muitas cabeças. Somos não apenas com uma única face. Encaramos a vida com perspectivas múltiplas e nenhuma retidão é possível sem as curvas que integram os múltiplos modos de ser que persistem em nós.
A integridade e a retidão de caráter são uma imagem que se movimenta e assume muitas formas. Cada momento é o palco para que os fragmentos de nossa personalidade se revesem na condução de nossos atos. Nunca podemos saber com certeza o que faremos. Mesmo com uma rígida disciplina de hábitos, se as condições ambientais mudam radicalmente, nossa previsibilidade se dissolve. Nosso caráter só se unifica quando racionalizamos uma explicação para o que já fizemos.
Conhecemos a experiência de se enamorar intermitentemente ao longo da vida. Os encontros inesperados, imprevisíveis, nos fazem reagir de maneiras distintas. Nossa primeira infidelidade é a que trai alguma inclinação que não podemos negar, nem honrar. Conhecemos nossos hábitos contraditórios e só podemos evitá-los por que sabemos modular o olhar. O custo da integridade é a sedação dos sentidos.
Se levássemos em consideração o que sabemos sobre nós mesmos não ousaríamos condenar ninguém. Perceberíamos a proximidade que nos torna, simultaneamente iguais e diversos. Não podemos atirar a primeira pedra, por que ela atingiria algum rosto das muitas cabeças que recalcamos.
Muito sofrimento advém de não podermos aceitar o que já sabemos sobre nós mesmos. Chamamos o que não podemos elaborar de pecado, erro ou crime. Segundo Espinosa podemos afirmar os bons encontros e tentar evitar a sedução das paixões tristes que diminuem a potência da vida. Mas o bem nem sempre é o que floresce em meio a felicidade. E a vida se afirma no limite de sua potência. Na fronteira do que acreditamos ser é que começamos a viver o que ainda não conhecemos. O futuro nos redefine por que os gestos passados não nos definem, apenas impactam, afetam e apontam aberturas. O hábito é uma intermitência sempre assaltada pelo novo. Os gestos expressam o fluxo de encontros em que somos jogados.
Nunca vamos tolerar as diferenças entre nós, se não pudermos tolerar as diferenças em nós. Por que os limites que nos definem não são claros e estáticos. É necessário que aceitamos que cada encontro implica numa abertura para uma nova condição de ser.
Pode ser que nos deparemos com centenas, milhares de situações similares. Humanizar-se é abrir-se para a singularidade de cada novo encontro com o mesmo. Por que, de fato, ele nunca é o mesmo. Se tivermos um câncer em nós, ele será inerente a trajetória existencial que unifica nosso ser. Mesmo que alguém possa conhecer milhões de cancerosos, nem de perto, chegará a nos conhecer de verdade.
A psicose, o estado psicótico, antes de ser considerado uma doença, já foi uma defesa, assim como a dissociação de personalidade e muitas das alterações da percepção. Socialmente reificadas como sintomas de um erro, essas defesas que usamos por milhares de anos para lidar com as tragédias de um ambiente hostil, viraram estigmas. No lugar de vivermos a realidade subjetiva que emerge dos encontros, nos fixamos numa insubstancial essência da identidade. É louco, alucinado, delirante, mentiroso, incoerente, sexualizado, maníaco, obsessivo… Nada é, tudo vai, provisoriamente, estando e sendo.
Se alguém sorri para mim, muda meu humor e a expressão de mim mesmo é determinada pela investida de que instaura esse encontro. Mas o ato de me arremessar um sorriso não está na essência do outro. Ela habita o meio caminho da sensação que minha presença desperta.
Por isso não podemos aprender um conhecimento sobre o acolhimento que seja perene. Só podemos ser sábios o suficiente para apostar no conhecimento único e intransferível que é próprio a natureza singular de cada encontro.
Podemos estar abertos a ensinar a complexidade, mas ninguém pode aprender se não se dispor a se implicar. Uma certa capacidade de exercitar um ceticismo lúcido a respeito de si mesmo e disposição para desmascarar crenças, mitos e auto ilusões é indispensável para para que nossa humanidade seja a mais saudável que possamos atingir, sempre um pouco além do possível.
A qualidade do cuidado é estatística apenas se possibilitar formulações qualitativas. E como o amor só é relevante se pressupor o outro, a avaliação é mais robusta se nos for ofertada por àqueles a quem cuidamos. Não para julgar nossa essência, que imóvel é apenas um fantasma. Mas para estabelecer as condições objetivas e subjetivas da produção coletiva de um bem.