Turcke, o TDAH e o mito do Naturvolker
Como antropólogo parto do pressuposto de que todo relato é sempre uma re-invenção do observado e vivido; espero que esse seja um pressuposto divido por todos que exerçam a antropologia como atividade.
A explicitação desse pressuposto no início do texto serve como mea culpa do lapso temporal que me levou a escrever esse relato. Há um pouco mais de uma semana (08 de Setembro) pude ouvir a palestra de Christoph Turcke na UNIRIO, com título "Cultura do Déficit de Atenção".
É fácil imaginar que o tema é de interesse de muita gente, sobretudo pelo título que, em português, permite muitas interpretações. Cultura como prática, cultura como cuidado, cultura como algo transcendente. As possibilidades se multiplicam ao lembrarmos que o termo cultura, como é utilizado no mundo ocidental nos dias de hoje, vem do alemão kultur. Então nada como ter um filósofo alemão falando a respeito.
Não quero fazer uma exposição escolar do que ouvi no dia, apenas centrar minha 'atenção' no que ele chama de 'máquinas imagéticas'.
Para Turcke, a máquina imagética é o elemento necessário para entender a cultura do nosso tempo. E se a revolução industrial possibilitou a máquina à vapor com a sua repetição ad infinitum do trabalho mecânico externo ao ser humano; logo, a máquina imagética, em sua eterna reprodução imagética, imagia pelos seres humanos.
Esse é o ponto interessante do autor: a repetição constante das imagens, como nos filmes, é a realização de uma imaginação, de uma criatividade específica. E o que ocorre nos tempos de hoje é que o excesso de imaginações externas, seja em filmes, celulares, TVs, impedem que o espectador possa absorver e reter a informação e, a partir desse repositório, criar.
A explicação é simples, quando somos bombardeados por estímulos visuais, como filmes, TV, internet e video games, deixamos de ter tempo para absorvê-los e retê-los, talvez no processo que fica conhecido como subjetivação, já que quem imagina e cria por nós são as máquinas imagéticas. Esse não é um discurso novo, já na virada do séc. XX, Simmel falava que o excesso de estímulos da vida nas grandes cidades obrigava que seus moradores tivessem uma postura embotada, blasè, cinza como em resposta ao excesso de estímulos. Se a cada fato novo e diferente o citadino fosse obrigado a compreender e absorver os estímulos ao seu redor, a vida em uma grande cidade seria impossível. Já naquela época os pensadores alemães se debatiam com o que, desde um século atrás, chamamos de modernidade.
É nesse ponto que precisamos tomar precaução, como um bom seguidor da Escola Crítica de Frankfurt Turcke traz consigo a visão pessimista da modernidade, e não por um acaso diz que o TDAH é a ponta do iceberg de um processo quase que inexorável da cultura da excitação rumo à degeneração humana.
O sintoma desse processo são as crianças diagnosticadas com TDAH que não conseguem prestar atenção, e somente em frente de máquinas imagéticas, como os computadores, podem ficar sentadas e paradas. E só o fazem porque são as máquinas que operam a imaginação por elas e que explica, para o autor, essa atração entre crianças com TDAH e as máquinas imagéticas.
O que essas máquinas imagéticas fazem é proliferar um novo padrão de subjetivação onde a representação e a percepção são as mesmas coisas, ou seja, onde o que foi imaginado pelo criador primeiro e o que é experienciado pelo receptor se emparelham inviabilizando discursos dissonantes e sedimentando uma realidade que não precisa ser imaginada ou pensada, ela é dada.
O mundo atual, da qual a Cultura do Déficit de Atenção é produto, é uma do excesso de atenção, diferente da cidade do séc. XX onde se poderia simplesmente privar a experiência subjetiva de inúmeros acontecimentos da cidade. Hoje, vivemos em um tempo onde é necessário 'apresentar'-se engajado nos mais variados debates. Entretanto, o excesso de informação caminha pari passu a escassez de tempo, e não por acaso vemos Jornais com páginas de resumo das notícias do dia, aulas que são dadas com slides e artigos com restrição de caracteres. Cada vez mais, multiplicamos as arenas onde todos precisam estar engajados e ter uma opinião, mas restringimos as formas de participação, cada vez mais simples e efêmeras.
Dessa forma, a máquina imagética não seria essa 'fornalha de TDAH' como diz Turcke se não estivéssemos em um tempo onde o tempo é elemento em eterna extinção. Se voltarmos nos alemães, o paralelo pode ser feito com Max Weber, n'A Ética Protestante e o Espírito Capitalista, quando fala sobre as afinidades eletivas. Talvez as máquinas imagéticas tiveram um casamento perfeito com o espírito de uma época que é a produção da imagem produtiva neoliberal. Ou seja, a culpa não são das máquinas, mas das formas como nos relacionamos com elas.
Turcke indica que o TDAH poderia ser resultado de anos de atenção indevida às crianças, como um trauma infantil resultado de anos de excesso de atenção 'desatenta' – quase que atenção não qualitativa -, para agrado da área psi presente no auditório e desagravo do antropólogo. É comum, em se tratando de saúde infantil e do adolescente, colocar-se no lugar do outro com o corpo do presente, dessa forma, Turcke se imagina 'traumatizável' ao se colocar no lugar de uma criança do séc. XXI cuja mãe o alimenta checando o smartphone, nessa analogia, se esquece que as concepções da maternidade, do cuidado infantil, são historicamente datadas e passam por diversos debates até o dia de hoje. Pior, acaba por reificar um tipo de maternidade possível, implicando que as outras, mediadas por máquinas, por homoparentalidade, por avós, como nefastas.
Se as crianças e adolescente com TDAH são a ponta do iceberg de um tempo, é preciso tomar o cuidado de não desenvolvermos um manifesto de volta à natureza, a teoria da kultur e todos os estudos da antropologia que foram feitos como ode à vida primitiva (do Naturvolker) se mostraram tendenciosos a colocar em um passado remoto ou em um aborígene exótico a solução para os problemas da contemporaneidade; foram necessários anos para lembrarmos que conceitos como natureza e natural são construções e que falam sobre o mundo social.
O TDAH ainda se apresenta, assim como tantas outras doenças mentais, como sintoma de uma sociedade onde classificar é elencar em uma escala moral.