“Caras e Bocas”: A Erotização Vulgar da Imagem da Enfermeira

14 votos

Não é nenhuma novidade que a imagem da enfermeira seja repleta de idealizações. Historicamente, por se constituir hegemonicamente como uma profissão feminina, a enfermagem carrega em grande parte o imaginário que o machismo faz da mmulher como um todo. Esta moralidade machista tende a  dicotomizar o "ser mulher" ora na idealização da "santa",  ora na execração pública da imagem da "prostituta", daquela mulher que vivencia a sua sexualidade de forma "promíscua", "depravada" e/ou "descontrolada".

 

Parece que com a enfermagem não é diferente, com alguns aspectos que agudizam essa problemática. Além de ser uma profissão com a marca do feminino, o fato de ter que lidar com vulnerabilidades e a privacidade dos corpos parece atiçar um imaginário que reduz o comportamento profissional à vivência e reprodução de situações relacionadas a sexualidade. Se a internet é uma espécie de "radiografia" desse imaginário, ao procurarmos pela expressão "enfermeira" na busca de imagens do Google, nos depararemos com uma profusão de ícones de claro conteúdo erótico, o mesmo não acontecendo com outras profissões.

 

Já nos ensinou Walter Lippman que na vida cotidiana a maioria de nós é chamado a tomar decisões e/ou emitir opiniões sobre coisas onde temos pouca ou nenhuma informação. Ainda assim, na maioria das vezes, acabamos seguindo tendências onde lançamos mão de crenças e valores socialmente constituídos e assimilados de forma acrítica. Estamos assim no reino das estereotipias, esquemas mentais que grosseiramente recortam a realidade e nos sinalizam  o que devemos ou não referendar a partir de nossas ações e pensamentos.

 

O problema básico é quando o estereótipo fica entrelaçado com outros oferecendo uma base para um  sem número de reflexões e ações preconceituosas. Esta semana mais um tijolinho de preconceito reforçou a estereotipia da enfermagem associada a visão pejorativa da mulher. Na novela "Caras e Bocas" temos um personagem chamado Mercedes, uma vilã que presumivelmente é enfermeira. Até ai, nada demais, afinal, boas ou más, as pessoas fazem alguma coisa na vida, trabalham, enfim, tentam sobreviver. Nada mais natural que existam profissionais de enfermagem que sejam pessoas boas e/ou ruins.

Mas o complicador se encontra no comportamento da personagem ligado diretamente a sua profissão. Trabalhando numa clínica de reprodução humana ela intenta falsear os resultados da coleta de esperma do personagem chamado Gabriel, casado com Dafne que está grávida dele. O objetivo de Mercedes é fazer com que Gabriel acredite que ainda é esteril para instilar o conflito entre o casal. Para isto, ela irá sabotar o exame. Pelo andar da história isso já seria o suficiente para deixar as nossas colegas enfermeiras com muita raiva. Mas a coisa não termina por ai.

 

Quando Gabriel entra constrangido na sala para colher material, Mercedes lhe mostra onde estão as revistas eróticas e os novos filmes pornôs recentemente recebidos pela clínica. Não satisfeita, diz que pode também fazer um "striptease" para "facilitar" a tarefa de Gabriel. Bem, estou longe de ser uma pessoa moralista mas confesso que fiquei absolutamente chocado com a cena. Lá estava uma "profissional" de enfermagem vestida de branco tendo duas condutas antiéticas no espaço de poucos segundos. Fiquei imaginando as milhões de crianças e jovens assistindo aquela cena e se perguntando se, de fato, as enfermeiras trabalham daquela forma. Não seriam cenas como essas, veiculadas em meios de comunicação de massa, uma das formas como estruturamos nossas estereotipias sobre determinados indivíduos e grupos?

 

Recentemente no Seminário Nacional de Humanização brincava com  um amigo durante o intervalo com a dificuldade que nossas companheiras tinham de acessar os banheiros femininos. Claro, pois das 1200 pessoas presentes no Seminário, mais de 1100 eram mulheres o que tornava o uso do banheiro absolutamente congestionado. Antes de ser uma constatação anedótica, servia como um indicador de que a saúde e o SUS são conduzidos diariamente por uma maioria esmagadora de mulheres, muitas delas profissionais de Enfermagem. 

 

Depois da cena de ontem na novela não tennho mais dúvidas.  Não conseguiremos humanizar O SUS  sem discutir intensa e profundamente sua problemática de gênero, uma das responsáveis pelo que chamamos de precarização do trabalho, iniquidade e desumanização!