Não é nenhuma novidade que a imagem da enfermeira seja repleta de idealizações. Historicamente, por se constituir hegemonicamente como uma profissão feminina, a enfermagem carrega em grande parte o imaginário que o machismo faz da mmulher como um todo. Esta moralidade machista tende a dicotomizar o "ser mulher" ora na idealização da "santa", ora na execração pública da imagem da "prostituta", daquela mulher que vivencia a sua sexualidade de forma "promíscua", "depravada" e/ou "descontrolada".
Parece que com a enfermagem não é diferente, com alguns aspectos que agudizam essa problemática. Além de ser uma profissão com a marca do feminino, o fato de ter que lidar com vulnerabilidades e a privacidade dos corpos parece atiçar um imaginário que reduz o comportamento profissional à vivência e reprodução de situações relacionadas a sexualidade. Se a internet é uma espécie de "radiografia" desse imaginário, ao procurarmos pela expressão "enfermeira" na busca de imagens do Google, nos depararemos com uma profusão de ícones de claro conteúdo erótico, o mesmo não acontecendo com outras profissões.
Já nos ensinou Walter Lippman que na vida cotidiana a maioria de nós é chamado a tomar decisões e/ou emitir opiniões sobre coisas onde temos pouca ou nenhuma informação. Ainda assim, na maioria das vezes, acabamos seguindo tendências onde lançamos mão de crenças e valores socialmente constituídos e assimilados de forma acrítica. Estamos assim no reino das estereotipias, esquemas mentais que grosseiramente recortam a realidade e nos sinalizam o que devemos ou não referendar a partir de nossas ações e pensamentos.
O problema básico é quando o estereótipo fica entrelaçado com outros oferecendo uma base para um sem número de reflexões e ações preconceituosas. Esta semana mais um tijolinho de preconceito reforçou a estereotipia da enfermagem associada a visão pejorativa da mulher. Na novela "Caras e Bocas" temos um personagem chamado Mercedes, uma vilã que presumivelmente é enfermeira. Até ai, nada demais, afinal, boas ou más, as pessoas fazem alguma coisa na vida, trabalham, enfim, tentam sobreviver. Nada mais natural que existam profissionais de enfermagem que sejam pessoas boas e/ou ruins.
Mas o complicador se encontra no comportamento da personagem ligado diretamente a sua profissão. Trabalhando numa clínica de reprodução humana ela intenta falsear os resultados da coleta de esperma do personagem chamado Gabriel, casado com Dafne que está grávida dele. O objetivo de Mercedes é fazer com que Gabriel acredite que ainda é esteril para instilar o conflito entre o casal. Para isto, ela irá sabotar o exame. Pelo andar da história isso já seria o suficiente para deixar as nossas colegas enfermeiras com muita raiva. Mas a coisa não termina por ai.
Quando Gabriel entra constrangido na sala para colher material, Mercedes lhe mostra onde estão as revistas eróticas e os novos filmes pornôs recentemente recebidos pela clínica. Não satisfeita, diz que pode também fazer um "striptease" para "facilitar" a tarefa de Gabriel. Bem, estou longe de ser uma pessoa moralista mas confesso que fiquei absolutamente chocado com a cena. Lá estava uma "profissional" de enfermagem vestida de branco tendo duas condutas antiéticas no espaço de poucos segundos. Fiquei imaginando as milhões de crianças e jovens assistindo aquela cena e se perguntando se, de fato, as enfermeiras trabalham daquela forma. Não seriam cenas como essas, veiculadas em meios de comunicação de massa, uma das formas como estruturamos nossas estereotipias sobre determinados indivíduos e grupos?
Recentemente no Seminário Nacional de Humanização brincava com um amigo durante o intervalo com a dificuldade que nossas companheiras tinham de acessar os banheiros femininos. Claro, pois das 1200 pessoas presentes no Seminário, mais de 1100 eram mulheres o que tornava o uso do banheiro absolutamente congestionado. Antes de ser uma constatação anedótica, servia como um indicador de que a saúde e o SUS são conduzidos diariamente por uma maioria esmagadora de mulheres, muitas delas profissionais de Enfermagem.
Depois da cena de ontem na novela não tennho mais dúvidas. Não conseguiremos humanizar O SUS sem discutir intensa e profundamente sua problemática de gênero, uma das responsáveis pelo que chamamos de precarização do trabalho, iniquidade e desumanização!
13 Comentários
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Erasmo, muitos são os preconceitos que sofrem os profissionais de Enfermagem. Por competência profissional e ética de uma maioria de profissionais da categoria, podemos manter a cabeça erguida perante nossos filhos, família, amigos e sociedade que conhecem outros atores que fazem a história da vida real. Então só posso deixar registrado meu desprezo ao autor desta "obra" anti-enfermagem.
Abraços,
Alessandra
Querido amigo,
Seu post é um convite à retomada/reinserção em um movimento. É muito gratificante ver um professor, trabalhador do SUS que, embora não sendo enfermeiro/a, traz esta reflexão para a rede.
O cientificismo e o tecnicismo buscados pela categoria certamente não darão conta de apagar essas imagens estereotipadas de “pecadoras” ou “sacralizadas” que permeiam historicamente a profissão. Precisamos, principalmente, entre outras coisas, fortalecer a autonomia nas relações, desmistificar os mitos de forma reflexiva, compreender os contextos tentando inserir a política nos espaços de atuação, pensar no cuidado como algo emancipador que impulsiona possibilidades libertárias e atua nas assimetrias do poder de forma a reagir aos processos de dominação. Alguns estudos na área já apontam para estes caminhos.
Sem negar os inúmeros avanços no campo das lutas em defesa dos direitos da mulher, pensar sob a perspectiva de gênero tão bem por você inserida no texto é fundamental para a categoria avançar nesses caminhos.
Há alguns anos, realizamos um trabalho na comunidade África (aqui em Natal) com um grupo de mulheres usuárias do PAISM onde procurávamos analisar os discursos acerca da sexualidade e saúde reprodutiva. Colhemos relatos que nos causavam dor, revolta, indignação. Meninas de 14 anos vendendo seus corpos para comprarem o famoso citotec e induzir abortos. Mulheres que se submetem ao sexo para não perderem os parceiros; mulheres que, mesmo sendo as provedoras da família, não conseguem sair do ciclo de violência.
Não são raras as situações de violência que presenciamos nas visitas domiciliares às puérperas; deparamo-nos com os novos pais “embriagados” vendo filmes pornográficos no vídeo enquanto a mulher tenta arrumar casa, cuidar dos filhos, fazer comida e ainda tendo que amamentar “exclusivamente” com suas mamas cheias de fissuras.
Também não é raro recebermos mulheres no pré-natal diagnosticadas com "depressão” por rejeitarem a gravidez. Há alguns dias, atendi uma grávida de gêmeos já na trigésima segunda semana e primeira consulta de pré-natal pedindo que lhe ensinasse a abortar. Havia vindo de São Paulo para morar aqui com a sogra, já que o parceiro estava preso e ela, com três filhos pequenos (agora, mais dois na barriga). Não é por acaso que alguns estudos já apontam para o maior uso de anti-depressivos entre as mulheres.
No que se refere mais diretamente à nossa categoria, sinto essa violência em múltiplas faces. Não é fácil ser mulher, mãe e filha em uma sociedade onde é a mulher, em geral, a responsável pelo cuidado dos filhos e dos idosos. E se essa mulher for enfermeira, então…Acredito que se déssemos a voz a algumas poucas colegas por aqui, teríamos relatos que confirmam esta afirmação.
Violências no cotidiano do trabalho também não são raras. Basta lembrar algumas consultas de planejamento familiar, ocasião em que alguns homens acham oportuno enfatizar sua “virilidade” de forma vulgar colocando as mulheres (parceiras e enfermeiras) em situações constrangedoras.
Por tudo isso, situações como essas colocadas na TV não podem passar “em brancas nuvens”. Penso que essa é uma questão que atinge não somente as enfermeiras, mas a sociedade como um todo. Aqui, leia-se, claro, também os homens, que, inclusive, frequentemente, se vêem empurrados para um lugar que não é confortável ocupar.
Falar de “respeito ao outro como legítimo outro”, “incluir sujeitos,” “humanizar.” Necessariamente passa pela discussão das questões que você traz.
Chico Buarque para encerrar com sua canção que contempla a alma feminina, já que hoje é sábado:
Façam muitas manhãs
Que se o mundo acabar
Eu ainda não fui feliz
Atrapalhem os pés
Dos exércitos, dos pelotões
Eu não fui feliz
Desmantelem no cais
Os navios de guerra
Eu ainda não fui feliz
Paralisem no céu
Todos os aviões
É urgente, eu não fui feliz
Por Erasmo Ruiz
Minha Caríssima Jacqueline!
Teu cometnário merece o destaque d eum post. E mais uma vez você traz argumentos embasados na sua experiência de vida e vivida! Forte as imagens, forte a poética de Buarque. Fique me lembrando da prisão que muitas mulheres são subbmetidas, algo que psicologicamente já foi mostrado em jóias como "São Bernardo". Ainda insisto naquela idéia. Vale a pena a gente pensar em escrever um livro que pode se chamar "O SUS QUE VOCÊ VIVE E "NINGUEM" CONHECE", só com relatos do cotidiano! Adoro existir com você!
Jaldisia Cavalcante
Olá Erasmo. Depois de um longo tempo sem poder acessar a rede para comentários (tive um problema com senhas e tempo) volto após ler seu post. Fiquei pensando o quanto já está sem graça, chato e irritante o tratamento que as emissoras de TV dão a personificação da enfermeira nos seus programas, novelas, etc.
Penso aqui comigo que essa discussão tem que estar nos fóruns de direito, nos órgãos e conselhos da classe também. Que suas assessorias jurídicas deveriam ao menos incomodar essas emissoras manifestando que estão atentas a violações da liberdade mais bonita e de maior grandeza a ser exercidada em sociedade, que é a liberdade com ética, estética e respeito. Nisto também se encontra a liberdade de expressão. Se ela não servir para acrescentar algo de bom a tudo aquilo que a enfermagem faz para a sociedade enquanto profissão, há que se questionar essa liberdade, entendendo-se aqui, que questionar não significa controlar ou recrudescer a proibições e cerceamentos. Penso que, sendo mulheres e homens, ainda que a maioria mulheres, empregando a vida e envelhecendo no trabalho do cuidar em saúde, e fazendo algo que é de suma importância para a sociedade, ter-mos a imagem da enfermeira vinculada falsamente a estereótipos eróticos é tornar mesquinho o que há de fundamentalmente humano nessa profissão.
Abraços
Por Ricardo Teixeira
Caro Erasmo,
Nada a acrescentar ao seu comentário, se olharmos a coisa somente sob o ângulo da "incorreção política" que a novelinha da Globo parece conter. Como estamos convencidos de que o "horário nobre" é o maior "educador moral e cívico" do povo brasileiro, ficamos indignados sempre que uma nova "vulgaridade" é apresentada nesse espaço.
Tenho lá minhas dúvidas a esse respeito, já que percebo este fenômeno mais como um caso de "endogamia social", isto é, de casamento perfeito entre o imaginário do autor da novela e de sua audiência. O "acidente moral" que você percebeu na cena não costuma abalar a imensa maioria dos telespectadores…
E é aí que começa a questão que prefereria examinar, por mais polêmica que seja, eu sei, inclusive neste nosso ambiente de conversa (a RHS), que supomos ser culturalmente diferenciado em relação à audiência da Globo.
Não tenho a menor idéia do que seja e do que trata o folhetim global em questão, mas, pelo que você conta, a personagem é "uma enfermeira que presumivelmente é vilã". Creio que isso, por si só, já poderia criar um contexto para uma releitura de seu comportamento antiético. Supondo um mínimo traço de inteligência da audiência, poderíamos achar que os telespectadores NÃO concluirão que "as enfermeiras trabalham daquela forma", mas apenas as "malvadas". E, nesse sentido, sempre que uma cena de novela retratar uma enfermeira "santa" (o que, em geral, passa desapercebido e não costuma levantar nenhuma reação indignada), não estaríamos menos no terreno das "estereotipias" de Lippman, que você evoca. Num caso ou no outro, estamos sempre num terreno tranqüilo, conservador e estabilizado, onde nada perturba, nada está fora do lugar, nada convoca a olhar o mundo de outra forma.
Esta é a principal "vulgaridade" que percebo em tudo isso…
Para mim, confesso que a coisa só começaria a ter interesse quando a enfermeira que fizesse o striptease fosse a "heroína" da história. Suspeito que, nesse caso, aí sim, assistiríamos a uma revolta da turba, à la UNI(TALI)BAN…
Resolvi compartilhar esses comentários, em primeiro lugar, pra desafinar um pouco um certo "coro do consenso" que percebo se configurar em torno de seu post (meu lado "bad-doctor"), mas também porque ele me fez lembrar de algumas outras "enfermeiras" criadas no cinema e na televisão, que não são nem um pouco "chatas e sem graça" e cuja força disruptiva nos revela outros aspectos "humanos" (não "santos", nem "piedosos") desta profissão.
Lembrei-me de duas.
Há um filme do Hal Hartley (diretor americano independente e, por isso, pouco conhecido e cuja obra, apesar de disponível em vídeo, não costuma ser fácil de achar), chamado "Confiança" (Trust). Não sei se alguém conhece… Mas é imperdível! Um dia ainda vou fazer um post só sobre este filme, por aqui. Considero que deveria fazer parte da "filmografia" obrigatória da PNH. A enfermeira deste filme não é a personagem principal, mas é uma "bad nurse" inesquecível. Trabalha numa clínica de aborto e protagoniza uma cena de atendimento de Maria, a personagem principal, que é uma obra-prima do "acolhimento"… Dá pra ver o filme todo (em partes) no YouTube. A cena a que me refiro está na segunda parte, que incorporei abaixo, e começa logo nos 30 primeiros segundos. Talvez já dê para ter uma idéia do que estou falando, mesmo sem ver o filme todo, mesmo sem entender inglês. As imagens já falam demais…
Outra "enfermeira" que conheci recentemente, por indicação de nossa amiga Dani Matielo, é a "Nurse Jackie" (há outras enfermeiras Jacqueline arrebentando por aí…). Trata-se de um seriado de TV, dentro do gênero "seriado médico", que tem feito contraponto ao campeão de audiência "House". Trata-se de uma enfermeira junkie, que toma altas doses de opiáceos, em função de sofrer de fortes dores nas costas, cujas receitas ela consegue transando com um médico do trabalho. O negócio é que ela é claramente uma "robin hood" do hospital em que trabalha e sua atuação desmascara o tempo todo o narcisismo estúpido dos médicos. Personagem muito mais fascinante que o psicopata sedutor do House… Pra quem quiser saber mais, achei três links rápidos na web: na Folha on line, em português; o seu site oficial, em inglês, e um site em que dá pra assistir alguns episódios (também em inglês).
Ainda não foi lançado na TV brasileira. Espero que não demore! Aí sim, poderemos ver alguma coisa na telinha que não reproduza infinitamente as banalidades sobre esta ou qualquer profissão…
Por ora, é só. Só pra produzir um pouquinho de saudável desvio nessa conversa…
Abraços,
Ricardo
Por Erasmo Ruiz
Caro Ricardo!
Desde o momento que vi seu comentário fiquei aqui com o dedo coçando pra responder mas isso exigia um tempo que eu não tinha e continuo não tendo. Mas, às favas com o tempo. Abaixo reproduzo tezxtualmente seu comtentário e vou "virtualmente" dialogando contigo.
Caro Erasmo,
RICARDO: Nada a acrescentar ao seu comentário, se olharmos a coisa somente sob o ângulo da "incorreção política" que a novelinha da Globo parece conter. Como estamos convencidos de que o "horário nobre" é o maior "educador moral e cívico" do povo brasileiro, ficamos indignados sempre que uma nova "vulgaridade" é apresentada nesse espaço.
Tenho lá minhas dúvidas a esse respeito, já que percebo este fenômeno mais como um caso de "endogamia social", isto é, de casamento perfeito entre o imaginário do autor da novela e de sua audiência. O "acidente moral" que você percebeu na cena não costuma abalar a imensa maioria dos telespectadores…
ERASMO: Aproveitando-me da sua metáfora do "casamento", como qualquer relação, ela expressa os resultados da interação. Neste sentido, sua fala pare transparecer que isso é uma relação de mera justaposição, "a fome com vontade de comer". Ora, se o autor reflete uma certa impressão do público e vice-versa, há que s epensar nas virtuais consequências dessa retroalimentação. Penso que elas não sejam inócuas e/ou superficiais. Além disso, ao que parece, o horário nobre, se nâo for esse "educador moral", cumpriria um papel relevante na formação de atitudes e representações sociais, ou não?
RICARDO: E é aí que começa a questão que prefereria examinar, por mais polêmica que seja, eu sei, inclusive neste nosso ambiente de conversa (a RHS), que supomos ser culturalmente diferenciado em relação à audiência da Globo.
ERASMO: Também tenho a mesma impressão que você quanto a "nossa audiência" embora, no limite, essa e outras questões sejam sempre empíricas, carecem de investigação mais objetiva.
RICARDO: Não tenho a menor idéia do que seja e do que trata o folhetim global em questão, mas, pelo que você conta, a personagem é "uma enfermeira que presumivelmente é vilã". Creio que isso, por si só, já poderia criar um contexto para uma releitura de seu comportamento antiético. Supondo um mínimo traço de inteligência da audiência, poderíamos achar que os telespectadores NÃO concluirão que "as enfermeiras trabalham daquela forma", mas apenas as "malvadas". E, nesse sentido, sempre que uma cena de novela retratar uma enfermeira "santa" (o que, em geral, passa desapercebido e não costuma levantar nenhuma reação indignada), não estaríamos menos no terreno das "estereotipias" de Lippman, que você evoca. Num caso ou no outro, estamos sempre num terreno tranqüilo, conservador e estabilizado, onde nada perturba, nada está fora do lugar, nada convoca a olhar o mundo de outra forma.
ERASMO: O que digo Ricardo é que ela é vilã e presumivelmente enfermeira. O que você julga como "traço mínimo de inteligência" é algo muito relativo pois pesquisas já mostraram que a uma certa expectativa do que chamaríamos de público médio em estar susceptível a uma certa credibilidade ao conteúdo do enredo mesmo que no campo da racipnalidade se "saiba" que o mesmo é fantasioso. Ou seja, há uma reatividade no campo dos afetos que qualifica o que chamaríamos de cognição. Esses mundos (cognição/afeto) são dicotomizados e estanques apenas para efeitos didáticos de apreensão teórica de processos comportamentais. Na "vida real", eles se interdeterminam, forma totalidade complexa e heterogênea. Neste sentido, não é apenas uma mera questão de inteligência que está em jogo. Concordo contigo que nos dois extremos estamos num campo "conservador", no entanto, há que se levar em conta o que um "consevadorismo" sinaliza algo diferente do outro.
RICARDO: Esta é a principal "vulgaridade" que percebo em tudo isso…
ERASMO: O que eu percebo como vulgaridade são processos psicossociais que ajudam a estigmatizar a prática profissional de uma determinada categoria, no caso, das enfermeiras. O de "santa" também não ajuda em nada, mas, por força das determinações históricas e culturais, a erotização vulgar parece, a princípio, mais corrosiva e prejudicial.
RICARDO: Para mim, confesso que a coisa só começaria a ter interesse quando a enfermeira que fizesse o striptease fosse a "heroína" da história. Suspeito que, nesse caso, aí sim, assistiríamos a uma revolta da turba, à la UNI(TALI)BAN…
ERASMO: Eu adoraria uma estória com este conteúdo, no limite nos colocaria nas esferas mais próxinmas do real onde, não havendo necessariamente os strips, enfermeiras e qualquer ser humano são indivíduos carregados de ambiguidades que se expressam contextualmente como nos lembra o Mestre Goffmann.
RICARDO: Resolvi compartilhar esses comentários, em primeiro lugar, pra desafinar um pouco um certo "coro do consenso" que percebo se configurar em torno de seu post (meu lado "bad-doctor"), mas também porque ele me fez lembrar de algumas outras "enfermeiras" criadas no cinema e na televisão, que não são nem um pouco "chatas e sem graça" e cuja força disruptiva nos revela outros aspectos "humanos" (não "santos", nem "piedosos") desta profissão.
ERASMO: Meu caro Mr Hide (risos), digo, Dr Ricardo. É ótimo ouvir sua "desafinação".
Lembrei-me de duas.
Há um filme do Hal Hartley (diretor americano independente e, por isso, pouco conhecido e cuja obra, apesar de disponível em vídeo, não costuma ser fácil de achar), chamado "Confiança" (Trust). Não sei se alguém conhece… Mas é imperdível! Um dia ainda vou fazer um post só sobre este filme, por aqui. Considero que deveria fazer parte da "filmografia" obrigatória da PNH. A enfermeira deste filme não é a personagem principal, mas é uma "bad nurse" inesquecível. Trabalha numa clínica de aborto e protagoniza uma cena de atendimento de Maria, a personagem principal, que é uma obra-prima do "acolhimento"… Dá pra ver o filme todo (em partes) no YouTube. A cena a que me refiro está na segunda parte, que incorporei abaixo, e começa logo nos 30 primeiros segundos. Talvez já dê para ter uma idéia do que estou falando, mesmo sem ver o filme todo, mesmo sem entender inglês. As imagens já falam demais…
Outra "enfermeira" que conheci recentemente, por indicação de nossa amiga Dani Matielo, é a "Nurse Jackie" (há outras enfermeiras Jacqueline arrebentando por aí…). Trata-se de um seriado de TV, dentro do gênero "seriado médico", que tem feito contraponto ao campeão de audiência "House". Trata-se de uma enfermeira junkie, que toma altas doses de opiáceos, em função de sofrer de fortes dores nas costas, cujas receitas ela consegue transando com um médico do trabalho. O negócio é que ela é claramente uma "robin hood" do hospital em que trabalha e sua atuação desmascara o tempo todo o narcisismo estúpido dos médicos. Personagem muito mais fascinante que o psicopata sedutor do House… Pra quem quiser saber mais, achei três links rápidos na web: na Folha on line, em português; o seu site oficial, em inglês, e um site em que dá pra assistir alguns episódios (também em inglês).
Ainda não foi lançado na TV brasileira. Espero que não demore! Aí sim, poderemos ver alguma coisa na telinha que não reproduza infinitamente as banalidades sobre esta ou qualquer profissão…
Por ora, é só. Só pra produzir um pouquinho de saudável desvio nessa conversa…
Abraços,
Ricardo
ERASMO: Tomo a liberdade de colocar um outro personagem na sua lista, a enfermeira Ratched de "Um Estranho no Ninho", tão zelosa de seu poder no comando das rotinas do hospital psiquiátrico que faz de tudo para manipular os pacientes, incluso destilar seu sadismo latente (o que leva um dos personagens quase no final do filme a cometer suicídio) Ela está longe do ícone de Santa ou da "depravada", encarna sim o zelo obsessivo e fascista pela manutenção das regras e rotinas (outro estereótipo da enfermagem, não é verdade, o da enfermeira "militar"). É tão horrosa que quuando o Jack Nicolson pula no pescoço dela no final do filme, um lado da gente quer estar junto para ajudar a estrangular a "doce" figura. Perfeito o raciocínio que você faz. Inegável a riqueza subjetiva desses personagens quando os comparamos com a superficialidade dos personagens das novelas. Mas, insisto. A maioria esmagadora do grande público não tem acesso a estas "enfermeiras". O que o grande público vê todos os dias é a Mercedes (a novela hoje tem "modestos" 67% de audiência em seu horário). Se é verdade que adultos poderiam pensar de uma forma mais crítica aquilo que o personagem faz e "descolar" de sua prática profissional ou perceber aquilo como um gesto das "enfermeiras malvadas" (tai um bom objeto de estudo para os psicólogos sociais que estudam imagem profissional), fico me perguntando sobre as consequências desse tipo de "bombardeio" diário nas crianças e jovens. Não se trata de achar que crianças e adolescentes não tenham inteligência para perceber as "diferenças" de contexto mas, fundametalmente, de especular se essa faixa da audiência está a "cata" de parâmetros que delimitam a formação de identidade individual de maneira mais marcante. Acredito que sim. Mercedes e sua "enfermeira" ajudaria assim a sedmentar aspectos estereotipados da enfermagem.
Um grande abraço do ERASMO
Por Ricardo Teixeira
Lasquei-me!
Também estou fritado de tanto trabalho… Mas mandando às favas a falta de tempo para mergulhar na polêmica, você me encosta na parede e fico obrigado a dar um retorno, mesmo que muito rápido. Logo mais, a gente vai mais fundo nessa conversa, ok?
Vou fazer apenas algumas considerações muito resumidas, valendo-me do amplo repertório de leituras e conhecimentos no campo das ciências humanas que sei que você tem.
De um modo geral, vejo com reservas as visões "manipulatórias" da mídia. Aprendi muito com as escolas de comunicação latino-americanas, principalmente as chamadas "teorias da recepção" e, muito especialmente, com autores como Canclini e Martin-Barbero. Acredito que você conheça estes autores. Se não, tenho certeza que vai gostar muito, especialmente o Martin-Barbero (De los medios a las mediaciones), que trabalha muito com um referencial que eu sei que te apaixona: Gramsci. E também muito com um cara que realmente fez minha cabeça como pensador da cultura e da modernidade: Walter Benjamin.
Estes pensadores latino-americanos da comunicação não concebem a "recepção" como passiva e não acham que a "indústria cultural" seja a disseminação do mal no espaço da cultura. Como Walter Benjamin, percebo "exigências democráticas" em tudo isso, como Canclini acho que a mídia audio-visual contribuiu para que se constituisse uma "esfera pública plebéia", como minha avó acho que Chacrinha foi um gênio!
Desculpe-me a correria! Como disse, depois a gente pode aprofundar mais e melhor tudo isso. A profusão de referências é só para dar um conjunto rápido de "endereços" para as idéias que subjazem às mal traçadas colocações que fiz a partir do seu post. Mas também poderia evocar referências menos "acadêmicas" e dizer que apredi muito com a antropofagia oswaldiana e com o tropicalismo. Considero que certas visões "manipulatórias" da mídia acabam sendo muito "aristocráticas"; no fundo, desprezam o "popular" e negam o outro (a recepção) como um legítimo outro, capaz de ressignificar, canibalizar e carnavalizar o que é difundido. Não estou dizendo que essa seja a sua visão, mas acho sempre bom exconjurar…
Isso também não que dizer que não caiba crítica aos conteúdos. Acho que provavelmente a novela a que você se refere deve ser, de fato, desprezível. Como disse, tenho pouco interesse estético-político pela maior parte do que tenho a oportunidade de testemunhar nos meios de radiodifusão. Sugeri, inclusive, que tipo de conteúdo realmente me motivaria a gastar alguns kilowatts a mais por mês aqui em casa. Mas, sinceramente, não acho que estou sozinho na capacidade crítica, nem que esteja acompanhado nessa tarefa apenas por "intelectuais" e "guardiões da boa cultura". Longe de mim essa gente e seus critérios!
(lembrei-me, outra vez, do debate, aqui nesta Rede, sobre o Michael Jackson… Minha avó também achava ele um gênio! )
Bem, foi por aí que quis levantar um primeiro conjunto de provocações…
O segundo conjunto dizia respeito à própria imagem da enfermeira e seu estereótipos. Não penso que se quebre estereótipos transitando apenas no eixo estendido entre a "boa" e a "má" imagem, mas embaralhando estas referências simplistas. E se percebêssemos algo de terrivelmente maligno em certas expressões da bondade? E se descobríssimos que um bem sublime pode, por vezes, reluzir na crueldade?
Esse segundo ponto é o que mais me interessaria discutir, pois aposto que esta discussão traria perspectivas fundamentais para o campo problemático que nos une nesta comunidade virtual. Mas é também o mais difícil de abordar rápida e superficialmente.
Por outro lado, sem ansiedades! Pois, certamente, este será um tema que não faltarão oportunidades de tratar nesta Rede…
A gente continua essa conversa, aqui ou acolá!
É sempre um grande prazer dialogar contigo, Erasmo. É sempre um prazer dialogar com um interlocutor brilhante, arguto, elegante, respeitoso e leal.
Grande abraço,
Ricardo
Por Erasmo Ruiz
Eu raramente vejo a Globo, ,talvez porque tenha a capaciade de consumir os exorbitantas pacotes de TV por assinatura. Ainda assim, imagens esereotipadas não é algo que ocorra apenas na Globo, é inerante a essa forma de comunicação. Cabe a todos nós não só profissionais de enfermagem, questinarmos a imagem da mulher e a sociedade que lhe dá sustentação.
Abraço do ERASMO
Mocinhos desta discussão:
Tentei acompanhar, mas algo me levou diretamente para as imagens do filme M.A.S.H., não o seriado, mas o filme com Donald Sutherland como um médico e com uma atriz da qual não me lembro o nome. Ela é a enfermeira. Bem, os personagens são puro escracho dos estereótipos. A gente morre de rir.
Ultimamente, para mim, rir é a única saída da mediocridade geral! Acho que não sou uma moça séria!!!
Por Luciane Régio
Acompanhar? Agora eu entendo plenamente!! E faço coro (cúmplice) nas tuas últimas duas frases!
Bjs, Lu : ))
Para quem não conhece, é um filme do Robert Altmann. O elenco é maravilhoso: Elliot Gould, Robert Duvall e Donald Sutherland, entre outros.
Durante a guerra da Coréia, soldados americanos de um hospital de campanha fazem as mais absurdas e engraçadas coisas como escape para os horrores cotidianos. Não percam!!!
Olá
Adorei seu post, é totalmente verdade, a imprensa como um todo tende a ligar crimes, e fantansias sexuas á enfermeira.
Semana passada saiu uma reportagem na revista ISTOÈ onde uma "Téc. de Enfermagem" no RS, era suspeita de ter tentando matar 11 bebes, a reportagem de capa era " A enfermeira que tentou matar 11 bebes" ao ler a matéria ,a cidadã em questão era "técnica" de enfermagem, e na minha opiniao a sociedade em si nao sabe diferenciar as funções e acho que um veiculo nacional nao poderia ter errado, mas sim o fez de modo proposital e usou o titulo de ENFERMEIRA pra chamar atenção para a matéria e vender revista, a custo de degrinição da imagem da profissão.
Ursula Paiva
Enfermeira
Natal – RN
Por Sonia Mara de Fatima Ferreira
Que bela reflexão Erasmo, concordo plenamente contigo e como pertenço a classe fico da mesma forma indignada, infelizmente ou felizmente não assisto a globo em casa raramente o fantástico então não acompanhei as cenas. Mas sofremos muito com este preconceito em relação a nossa profissão talvez pela história onde realmente quem prestava o cuidado eram as prostitutas mas séc. se passou claro que avançamos somos uma das profissões mais antigas a nós cabiam todos os cuidados nutrição, fisio,psic, assit. social enfim acredito que sempre desempenhamos muito bem o papel.
Ridiculo esta novela pelo que relatou.