Mulher é vítima e cúmplice na violência conjugal. Mas não culpada.
Telmo Kiguel
Médico psiquiatra
Psicoterapeuta
“Vítima ou Cúmplice? Caraterização da mulher vítima de violência conjugal na região de Lisboa e Vale do Tejo”
Esse é o título da tese de mestrado do psicólogo forense Mauro Paulino pela Universidade Nova de Lisboa.
Foi realizado através de entrevistas com 76 mulheres e análise de 458 processos de violência doméstica do Instituto Nacional de Medicina Legal.
“Em média, as vítimas demoram 13 anos até conseguirem terminar uma relação agressiva “, disse M. Paulino em entrevista à Agência Lusa de Notícias.
“As crenças religiosas tem uma forte influência na forma como as vítimas percebem e vivem a relação”.
“Isto determina um maior tempo de permanência de uma mulher na relação”.
“As mulheres católicas facilitam, banalizam mais a violência dos que as restantes, aceitando o seu papel na relação agressora, como se o facto de serem católicas fizesse com que banalizassem a violência, atribuindo a culpa dessa violência a elas próprias”, apontou.
No entanto, para o investigador, a importância da crença diminui tanto mais quanto maior for o nível de escolaridade.
“A escolaridade influencia no sentido de haver menos tolerância a qualquer tipo de violência, não aceitando algumas desculpas que as vítimas com menos escolaridade tendem a aceitar”, explicou.
Em 81,6% dos casos, as mulheres admitiram que os filhos assistiram aos atos de violência de que foram alvo, sendo que os comportamentos mais frequentes dos filhos foram chorar (72%), apoiar e dar razão à vítima (48%) e incentivar a separação (37%).
Aliás, 26 mulheres (34,2%) revelaram que os filhos foram a razão para manter a relação conjugal, vindo em segundo lugar (18,4%) o facto de ainda gostarem do agressor.
Na maior parte dos casos que o investigador estudou, a violência começou no namoro e o casamento não revelou ser fator de mudança, muito pelo contrário, já que “as agressões continuaram a acontecer e tenderam a agravar”.
Sobre o grau de sofrimento provocado pelas agressões, apontou que são as psicológicas aquelas a que “as vítimas atribuem um maior nível de sofrimento”.
Em sua opinião, esta constatação deita por terra a “crença de que só aquilo que deixa marca física é que é uma lesão ou uma agressão grave”.
O investigador chegou também à conclusão de que as vítimas demoram muito tempo a pedir ajuda e que, num número significativo de casos, pedem ajuda à família, mas esta nem sempre apoia.
Em relação às 76 mulheres entrevistadas, a maioria (85%) era de nacionalidade portuguesa, com estudos ao nível do 3.º ciclo (35,5%), casadas ou em união de facto (40,8%), desempregadas (32,9%), com idades entre os 18 e 82 anos.
Mostraram dificuldade em tomar decisões sozinhas (57,9%), em iniciar projetos ou fazer coisas por sua conta e quase metade (48,7%) revelou não saber lidar com o facto de estar sozinha.
Em 93,4% dos casos foram agredidas repetidamente, entre agressões físicas (80,26%), agressões psicológicas (89,47%) e agressões sexuais (32,89%).
Foram 34 as mulheres agredidas fisicamente durante a gravidez e cinco acabaram abortando.
Em declarações à agência Lusa, Mauro Paulino defendeu que a mulher que é agredida tanto é vítima como cúmplice, mas fez questão de clarificar que isso não significa que esteja a defender que a mulher é de alguma forma culpada.
“Enquanto técnicos e profissionais temos de honrar a ciência e a ciência é fria ao ler os dados. Então, temos de responsabilizar uma mulher que fica 13 anos numa relação violenta”, disse.
“É claro que compreendemos o contexto violento, ameaças de morte, essas questões todas, mas ainda assim temos de mostrar a estas senhoras que existe um apoio social, técnicas de intervenção que lhes permitem sair daquela situação”, acrescentou.
Defendeu, assim, a necessidade de se ir além de uma intervenção do ponto de vista social, partindo para uma intervenção mais profunda, ao nível da parte psicológica.
“A investigação mostra-nos que todos temos determinados padrões de relacionamento que se não forem alterados, faz com que esta vítima saia de uma relação e muito provavelmente vá procurar um outro companheiro com as mesmas características”, explicou.
Essa intervenção passa por explicar à vítima que “o entendimento que ela tem de si e da situação potencializa a relação violenta e determina que volte a entrar numa outra relação violenta”.
“Aquilo que acontece num processo psicoterapêutico não é mudar o mundo, é transformar a forma como a pessoa entende a si, aos outros e aos eventos da sua vida. Quando isto se consegue alterar, vai mudar o tal padrão de relacionamento”, referiu.
Com base nos dados do estudo, Mauro Paulino concluiu que o que está a ser feito em matéria de intervenção “é pouco” e defendeu mais ação ao nível da prevenção, sustentando que a violência doméstica é um problema de Saúde Pública.
“Está comprovado que as vítimas vão mais vezes aos hospitais, estão mais tempo internadas, são pessoas que produzem menos e isto tem também uma vertente económica”.
No entender do investigador, há também um completo desfasamento entre os horários de funcionamento dos gabinetes e linhas de apoio, apontando que muitos funcionam das “nove à uma e das duas às cinco”, quando a maior parte das agressões acontecem ao fim-de-semana e à noite, principalmente entre as 19:00 e as 24:00.
Questionou igualmente a formação dos agentes públicos, dando como exemplo o caso de uma mulher que pede ajuda às autoridades, vai para uma casa abrigo e depois volta para o marido.
“Quando voltou a pedir ajuda, os polícias, à frente dela, fizeram apostas para ver quanto tempo é que ela permaneceria na casa abrigo”, contou.
Mauro Paulino defende, também, uma intervenção nas escolas porque o estudo permitiu constatar que muitas mulheres não se reconhecem como vítimas quando sofrem a primeira agressão, o que faz com que desvalorizem a situação e não solicitem ajuda.
* Matéria reproduzida, adaptada e “traduzida” parcialmente de vários jornais portugueses.
Este texto foi publicado em 19/5/14 no Blog Saúde Publica(da) ou não em
https://saudepublicada.sul21.com.br/category/discriminacao/
Por Emilia Alves de Sousa
Caro Telmo,
Muito importante o tema da pesquisa do psicólogo Mauro Paulino.
A violência contra a mulher é um caso de saúde pública, e segundo estudo publicado recentemente pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a agressão cometida por parceiro íntimo é o tipo mais comum de violência contra as mulheres em todo o mundo, afetando 30% do total. É um dado alarmante, preocupante, e exige políticas públicas na direção de mudança de tão vergonhoso cenário.
Obrigada pelo compartilhamento desses estudos publicados na tese!
Emília