Insurreição contra a existência.

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Existe uma contradição no âmago das motivações humanas: Através da religião, da moral e da ética formulamos discursos sobre a vida digna de ser vivida, sobre a beleza, sobre o bem e sobre a felicidade. De forma geral, esse é o discurso assumido pelo senso comum. Não há grandes divergências sobre o consenso geral de que a paz é melhor do que a guerra, de que a violência só pode ser tolerada se fundada em razões justas. Todos professam o desejo de uma vida segura e estável. O amor é a grande resposta para superar nossas divisões, ódios e intolerâncias…

E no entanto, nossos atitudes e discursos, na maior parte do tempo, seguem uma lógica diferente e bem mais diversificada. É normal expressarmos nosso ódio e nossos preconceitos nas conversas informais, no cotidiano, quando não esperamos uma escuta muito atenta. Nesses momentos estamos sendo, apenas nós, sem grandes preocupações com a coerência dos significados. Podemos ser amantíssimos e zelosos com os próximos e, simultaneamente odiosos contra os diferentes que ficam fora de nosso restrito círculo de afetos. Em casos mais incomuns, esse restrito círculo não vai além da própria pele.

A maior parte das pessoas, sejam egoístas ou solidárias, apreciam o espetáculo da ruína alheia. Gostamos de ver o circo pegando fogo. O olhar humano sempre foi capturado pela visão da tragédia e da desgraça. Desde que estejamos nos sentindo seguros, somos fascinados pela destruição e pelo caos.

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As imagens que mostram um homem solitário, observando o recuo do mar que precedeu a chegada das ondas do grande Tsunami da Ásia em 2004, retratam uma reação humana recorrente ao longo dos milênios. Ele fica hipnotizado com o recuo das águas da praia. Vai avançando mar a dentro enfeitiçado pelo canto da seria do extraordinário e fantástico espetáculo da natureza.

Aquele diminuto ser humano, observando a barragem gigantesca de água se aproximando, consegue abarcar o fantástico que lhe chega aos olhos e à consciência. Entretanto, não tem forças para conter as potências que observa. Quando já é tarde demais, ele serenamente fica aguardando o impacto da onda gigante.

Acolhe a morte resignadamente. Não era o que desejava conscientemente. Mas também não pôde resistir a sedução da destruição. Sequer ele apresenta o ímpeto de dar as costas e correr. É colhido em pé, encarando de frente a desgraça da qual é o protagonista solitário. Torna-se mais uma, entre as centenas de milhares de mortes que a onda seguirá ceifando continente a dentro.

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Foto: Goran Tomasevic/Reuters

Os atuais eventos violentos, bárbaros, que acontecem na Síria, em Israel e na Palestina têm sido filmados e jogados nas salas de TV das famílias de todo o mundo. É possível ver inúmeros rostos de pessoas com o olhar congelando, a espera de serem decapitas ou fuziladas. Penso em que escolhas, que acasos, virtudes e fortunas colocam essas pessoas diante de uma morte trágica e criminosa. Vítimas e algozes parecem estar levando a exaustão o desejo inconfessado de observar a destruição e o caos.

O horror é uma fascinação irresistível para os humanos. As racionalizações em torno da perpetração de crimes de tortura e homicídios em massa são muito elaboradas. Mas só os ingênuos podem acreditar que o furor violento é executado desapaixonadamente. Carrascos e torturadores tem uma relação sensual com os métodos que usam. É visível que vibram alegremente com o resultado de suas ações. E o olhar atento de uma platéia global é um afrodisíaco insuspeitado para esse tipo de protagonista. 

Negamos isso de diversas formas. Nossa condenação moral, nossa indignação de pilotos de sofá, mal disfarçam a predisposição latente que distante de nós, as vezes não muito, foi ativada. Nossas práticas, nossos micro-fascismos cotidianos denunciam essa vontade que vai acumulando sinergia e, ciclicamente, explode em convulsões coletivas de morticínios e crueldades.

Isso é pertinente, porque observamos no Brasil o efeito de um período incomum de estabilidade institucional e certa prosperidade econômica. Muitas pessoas estão radicalizando suas posições morais e religiosas. O certo e o errado têm sido tratados na perspectiva de eliminação dos oponentes. Ou, por que eles são o mal corporificado, ou porque não compartilham da visão sagrada da religião professada pelos crentes intolerantes.

É natural que ocorra uma oscilação no ciclo de desenvolvimento econômico. Somente crises ambientais e guerras têm realmente o poder, potencial, de arrasar com um sistema econômico e destruir a civilização baseada nele. O certo é que recessões e depressões econômicas são recorrentes e estão associadas a convulsões sociais.

Gostamos de pensar que o problema das crises sociais está relacionado a variação nos ciclos econômicos de prosperidade e empobrecimento. Mas há uma hipótese inversa. Podemos pensar que há na existência humana uma irritação original, como um ruído de fundo. Algo que faz com que desejemos o caos e a anarquia sempre que a vida fica monotonamente mais confortável e segura.

É como se um desconforto ontológico, uma reação contra a própria existência, tivesse que explodir periodicamente em surtos de loucura coletiva. Não há limitações de recursos materiais ou de conhecimento para vivermos em paz e relativa fartura. Mas insistimos em acrescentar tragédias maquinadas as que não podemos, nem fabricar, nem deter. Talvez porque não tenhamos controle real nem sobre as que pensamos estar causando. Somos inquietos e isso produz inquietações sem que possamos evitar.

Nossos deuses são criações humanas para dar um sentido humano ao fato que julgamos absurdo de não haver uma explicação para a existência. Nós somos seres dependentes de sentido, desde que nos tornamos autoconscientes. Talvez, num sentido mais profundo, tudo o que exista seja autoconsciente. O que não existe é uma explicação para a existência. Não uma que possamos conceber, pelo menos.

 Por essa hipótese, o Deus que não foi criado por nossa imaginação é o alvo de nosso ódio. Um ódio pela vida em última análise.