Crônica “Espinha de Peixe” e Reflexão

12 votos

 

 

engasguei-espinha-de-peixe-engasgo.jpg

 

Sempre que um paciente me procura com alguma queixa bucal procuro ouvi-lo com atenção, ainda que o problema não tenha causa aparente.

Já houve situações em que  presenciei o paciente  idoso ou doente mental, fazendo menção de uma dor supostamente sem definição e não era ouvido ou considerado pelos profissionais a sua volta. E o problema vinha à tona tempos depois…

Foi assim com Dona "Josefa" que queixava-se de incomodo quando lhe colocamos uma prótese total e afirmava que tinha um resto de raiz no seu rebordo. Fizemos radiografias e examinamos de todas as formas. Nada constatamos. Resultou que seis anos depois -e eu estava por perto para atestar- a raiz resolveu aparecer e finalmente a removi. Um caso que remeteu-me a crônica de Fernando Sabino: Espinha de Peixe . Vi em Dona "Josefa" uma Dona Carolina. 

Fica a reflexão para que fiquemos mais atentos às queixas dos pacientes e consideremos mais as suas falas.

A Crônica:

                       Espinha de peixe

"De repente Dona Carolina deixou cair o garfo e soltou um  grunhido .Todos se precipitaram para ela, abandonando seus lugares à mesa: a filha, o genro, os netos:

– Que foi, mamãe?

– Dona Carolina, a senhora está sentindo alguma coisa?

– Fala conosco, vovó.

A velha, porém, só fazia arranhar a garganta com sons  estrangulados, a boca aberta, os olhos revirados para cima.

– Uma espinha – deixou escapar afinal, com esforço:  

-Estou com uma espinha de peixe atravessada aqui.

E apontava o gogó com o dedinho seco.

– Come miolo de pão.

– Respira fundo, vovó.

– Com licença – e o marido de uma das netas, que era médico recém-formado, abriu caminho:

– Deixa ver. Abre bem a boca , Dona Carolina.

Dona Carolina reclinou a cabeça para trás, abriu bem a boca, e a dentadura superior se despregou. Constrangido, o moço retirou-a com dedos delicados, deixou-a sorrindo pela toalha da mesa:

– Assim. Agora vira aqui para a luz. Não estou vendo nada… A espinha já saiu, não tem nada aí. A garganta ficou um pouco irritada, é por isso…Bebe um pouco d'água, Dona Carolina, que tudo já passou.

Todos respiraram aliviados, voltando aos seus lugares.

Dona Carolina, porém, fuzilou o rapaz com um olhar que parecia dizer:

'Passou uma ova!' e continuava a gemer. Como ninguém se dispusesse mais a socorrê-la, acabou se retirando para o quarto, depois de amaldiçoar toda a família. Uma das netas, solícita, foi levar-lhe a dentadura, esquecida sobre a mesa.

– Estou com uma espinha na garganta – queixava-se ela, a voz cada vez mais fraca.

– Já saiu, mamãe. É assim mesmo, a gente fica com a impressão que ainda tem, deve ter ferido a garganta…

– Impressão nada! Ela está aqui dentro, me sufocando…

Chame um médico para mim, minha filha.

Veio de novo o rapaz que era médico, mas a velha o rejeitou com um gesto:

– Esse não! Eu quero um médico de verdade!

A família, de novo reunida, se alvoroçava, e Dona Carolina, arquejante, dizendo que morria sufocada. Uma das filhas corria a buscar um copo d'água, outra abanava a velha com um jornal. O dono da casa foi bater à porta do vizinho de apartamento, Dr. Fontoura, que, pelo nome, devia ser médico:

– O senhor desculpe incomodar, mas minha sogra cismou, uma espinha de peixe, não tem mais nada, cismou que tem, porque tem…

Dr. Fontoura, que na realidade era dentista, acorreu com uns ferrinhos, uma pinça.

– Abre bem a boca, minha senhora – ordenou, gravemente, e contendo a língua da velha com o cabo de uma colher, meteu o nariz pela boca adentro:

– Assim. Hum-hum… Não vejo nada. Alguém tem uma lanterna elétrica?

Um dos rapazes trouxe a lanterna elétrica, e o dentista iluminou a goela de sua nova cliente, sob a expectativa geral.

– É isso mesmo… Está um pouquinho irritada ali, perto da epiglote. Não tem mais nada, a espinha já saiu. O que ela está precisando, na minha opinião, é de uma dentadura nova.

A velha engasgou e, em represália, por pouco não lhe mordeu a mão. Todos respiravam, aliviados.

– Eu não dizia? – exclamava o dono da casa, conduzindo o vizinho até a porta. E protestava agradecimentos:

– A velha está nervosa à toa, o senhor desculpe o incômodo… Dona Carolina pôs-se a amaldiçoar toda a sua descendência, a voz cada vez mais rouca:

– Cambada de imprestáveis! Eu aqui morrendo engasgada e eles a dizerem que não tem mais nada! Resolveram fazê-la tomar um calmante e dar o caso por encerrado.

Mas o caso não se encerrou. A velha não pregou olho durante a noite e passou todo o dia seguinte na cama, gemendo com um fio de voz:

– Ai, ai, ai, meu Santo Deus! Estou morrendo e ninguém liga!

A filha torcia as mãos, exasperada:

– Não quis almoçar, agora não quer jantar. Assim acaba morrendo mesmo.

– Minha sogra é uma histérica – explicava o dono da casa a um velho amigo que viera visitá-lo ao terceiro dia.

 – Está assim desde Quarta-feira, já nem fala mais com ninguém…

O velho amigo resolveu espiá-la de perto. Assim que o viu, Dona Carolina agarrou-lhe a mão, soprando-lhe no rosto uma voz roufenha, quase inaudível, mais para lá do que para cá:

– Pelo amor de Deus, me salve! Você é o único que ainda acredita em mim.

Impressionado, o velho amigo da casa resolveu levá-la consigo até o pronto-socorro.

– Quanto mais não seja, terá efeito psicológico – explicou aos demais. Embrulharam a velha num sobretudo, e lá se foi ela, de carro, para o pronto-socorro. Foi só chegar e a esconderam numa mesa, anestesiaram-na, e o médico de plantão, com uma pinça, retirou de sua garganta – não um espinha, mas um osso de peixe, uma imensa vértebra cheia de espinhas para todo lado, como um ouriço.

– Estava morrendo sufocada – advertiu. – Não passaria desta noite.

Hoje, Dona Carolina, quando quer fazer o resto da família ouvir sua opinião sobre qualquer assunto, exibe antes sua famosa vértebra de peixe, que carrega consigo, como um troféu."

                                                                                                           

                                                                                                                         Fernando Sabino