Política de saúde para álcool e outras drogas: tratamento ou salvação?
Por Rita Almeida
A questão da participação das Comunidades Terapêuticas como atores no tratamento das dependências de álcool e outras drogas tem sido um nó para nossa política de saúde mental. Longos e árduos anos de debates, trabalho e militância ativa de familiares, trabalhadores e usuários culminaram da desconstrução progressiva (e que ainda está em curso) de um modelo de tratamento que sempre priorizou e valorizou as longas internações e o isolamento social. Assim sendo, a noção de que as Comunidades Terapêuticas têm se configurado como um passo atrás naquilo que a Reforma Psiquiátrica Brasileira conquistou ao longo das últimas décadas precisa ser considerado, para que não cometamos os mesmo erros de outrora.
Mas além de reinaugurar o isolamento sócio familiar como método de intervenção, as Comunidades Terapêuticas, posto que a grande maioria delas é coordenada e mantida por instituições religiosas, criam uma delicada confusão entre tratamento e salvação. Por considerar que, para ocorrer o tratamento, a salvação espiritual e a crença ou aceitação de Deus/Jesus sejam fundamentais, grande parte dessas instituições se pautam em discursos morais e religiosos que não deveriam ser confundidos com o tratamento em si.
Dias atrás ministrei algumas aulas em uma pós-graduação em saúde mental e, dada a ementa proposta no módulo, o tema das Comunidades Terapêuticas foi inevitável. Na turma havia alunos que, inclusive, trabalhavam nessas instâncias, o que enriqueceu e acalorou bastante as discussões. A defesa pela presença das Comunidades Terapêuticas no cuidado de pessoas com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas se pautou basicamente na seguinte premissa: elas funcionam em muitos casos.
Meu percurso de 17 anos trabalhando e militando no campo da saúde mental do SUS tem mostrado que as vias possíveis de recuperação e tratamento dos casos de dependência de drogas são múltiplas e diversas. Conheço pessoas que se recuperaram tratando no CAPS ou em outro tipo de serviço ambulatorial. Conheço casos em que a participação em grupos de mutuo ajuda, do tipo AA e NA foram suficientes, sem nem mesmo a necessidade de um serviço de saúde de suporte. Também acompanhei casos em que uma internação em Hospital Geral, numa Comunidade Terapêutica ou mesmo em um Hospital Psiquiátrico, teve efeito terapêutico.
Mas também acompanhei casos onde a vinculação da pessoa a uma religião com códigos morais mais rígidos foi suficiente para uma mudança de comportamento, e casos onde uma eventual prisão ou intervenção judicial (muitas vezes por conseqüência dos efeitos ou do envolvimento com as drogas) também serviu como elemento transformador. Também não é incomum que o aparecimento de uma doença grave, que coloca o sujeito diante da morte, produza um efeito terapêutico que todas as tentativas anteriores não produziram. Quem não assistiu ao filme Clube de Compras Dallas, que assista! E vale lembrar, que a história de Ron, que faz uma virada em sua vida depois de contrair HIV, não é ficção, é real.
Também recomendo o Especial produzido pela HBO: Verdade Fora de Disputa, programa estrelado por Mike Tyson e dirigido por Spike Lee, onde Tyson conta sua trajetória de vida, incluindo seu problema relacionado com álcool e cocaína. No relato do pugilista sua prisão em 1992 foi a responsável pela conversão ao Islamismo e pela subsequente libertação das drogas. O depoimento de Tyson é fundamental para compreendermos a diversidade de discursos que podem figurar como “salvadoras” para o sujeito diante da dependência de drogas. Ou seja, assim como Jesus, Alá também pode salvar.
O fato é que ninguém pode menosprezar ou questionar o efeito terapêutico de nenhuma intervenção ou evento, especialmente quando o próprio sujeito significa tal evento como seu ponto de virada, como sua cura ou mesmo salvação. E quanto mais o adoecimento do sujeito é atravessado pelo campo da subjetividade, tanto mais essas significações são importantes no processo de tratamento e cura.
Num dos CAPS em que atuo, acompanhamos por anos o caso de M., uma dependente grave (álcool, cocaína e crack) para a qual já tínhamos tentado todas as intervenções possíveis, inclusive as de internação. Seu problema com as drogas a levou a cometer pequenos delitos e a se envolver com o tráfico para sustentar o próprio vicio, motivo pelo qual ficou detida por duas vezes. M. teve dois filhos que foram praticamente criados pela avó (mãe de M.). Uma de suas filhas R., que vimos crescer durante o processo de tratamento, mostrou-se tão madura que, quando adolescente, acabou por assumir funções de cuidar da mãe, ao invés de ser cuidada por ela. O tratamento de M. seguia entre pequenas melhoras e grandes e nocivas recaídas até que R. (filha de M.) engravidou e deu a luz a uma criança com problemas graves de saúde. R. que se mostrava tão madura e responsável não reagiu bem à situação e caiu em depressão. Quando achávamos que M. sucumbiria diante do novo desenho familiar, eis que ela simplesmente renasce, ressignifica completamente sua posição diante das drogas e não só se afasta delas, como passa a ser aquela que vai cuidar do neto e da filha. Na construção de sentido de M., seu neto nasceu com problemas exatamente para que ela se libertasse das drogas.
Podemos nos reportar ou construir uma dezena de teorias “psi” para explicar como se deu a entrada deste bebê na dinâmica de M. e sua família, e de como isso fez com que a droga deixasse de ocupar o centro da vida de M., entretanto, não podemos de forma nenhuma menosprezar a construção feita por ela: que a doença do neto foi sua porta de saída das drogas. Quem sou eu, ou quem somos nós para questionar e desprezar a construção de M.? Quem somos nós para questionar o sentido que Tyson deu para a sua prisão e conversão ao Islamismo? Quem somos nós para menosprezar quando alguém nos diz que Deus ou Jesus lhe “tirou das drogas”? Quem somos nós para questionar alguém que se diz grato por ter contraído uma doença terminal ou ter sido preso, já que foi esse seu ponto de virada para o tratamento?
Não. Ninguém tem o direito de descontruir a construção de ninguém, especialmente quando ela é produto da dor, do sofrimento, do desespero ou do desejo de se curar. Sendo assim, não podemos negar que o discurso da salvação, explorado por grande parte das Comunidades Terapêuticas, tenha seu efeito de construção significante para algumas pessoas. No entanto, uma coisa é dizer que o discurso da salvação pode ser uma das portas de saída para o problema das drogas, outra coisa é assumir o discurso da salvação como norte dentro da política pública sobre álcool e outras drogas. Ou seja, o discurso da salvação ou da crença pode ter efeito terapêutico para algumas pessoas (e é obvio que tem), mas isso não quer dizer que possamos sustentar dentro da política de saúde mental, terapêuticas baseadas nesses tipos de discurso.
O discurso da salvação ou da crença podem atravessar as pessoas que fazem uso do SUS, mas não podem nortear políticas do SUS. Da mesma maneira, posso considerar que o nascimento do neto de M. com uma doença grave tenha tido efeito terapêutico em sua luta contra a dependência, mas não posso propor que “ter um neto com doença” seja diretriz política para tratamento de drogas. Assim como não podemos propor como política de drogas, a prisão, infecção por HIV e a conversão ao Cristianismo ou ao Islamismo.
Por isso, advogar que as Comunidades Terapêuticas devam participar da política de álcool e outras drogas porque sua estratégia de salvação e de conversão funciona para muitos casos, é um argumento muito frágil. Para participar do SUS é preciso muito mais do que isso, é preciso se submeter aos seus princípios e respeitar suas instâncias. Que alguns desejem e até conquistem a salvação, tudo bem! Mas que isso não seja feito em nome do SUS, já que a missão do SUS é o tratamento e seus desdobramentos: a prevenção e a reabilitação ou reinserção psicossocial.