Diabetes e inovações tecnológicas: políticas públicas dependem de números (?)
A vida de uma pessoa com diabetes é repleta de números (hemoglobina glicada deve ser abaixo de 7,0%, em todas as refeições – sem exceção – é necessário fazer contagem de carboidratos, 4 dextros no mínimo por dia, faixa de normalidade glicêmica entre 70 e 180 mg/dl, 28 anos de diabetes e as consequências que o tempo da doença traz ao corpo, 37 anos de idade e os efeitos do envelhecimento sobre o diabetes, unidades de insulina por dia e por refeição, 5 refeições por dia, 1 hora de exercícios diários, 15 gramas de carboidratos para uma hipoglicemia, etc).
Mas não são esses os números que contam para a elaboração de uma política pública para tratamento da doença.
Em 1986, quando fui diagnosticada com diabetes, o SUS não existia, e o meu tratamento era feito através de custeio privado (meus pais compravam as insulinas e seringas). Com a criação do SUS pela Constituição Federal de 1988, regulamentado pela Lei nº 8.080/90, tive a oportunidade de receber os medicamentos e insumos através do sistema público de saúde.
Ainda no início do tratamento – e durante quase os 20 anos seguintes, utilizei as insulinas disponíveis hoje no SUS: NPH e Regular. Depois de 7 anos com diabetes e 6 anos de catarata como decorrência da doença (não porque não "aderia" ao tratamento, mas porque o tratamento não era adequado para a manutenção da minha saúde), tive que suspender meus estudos por ausência de visão (possuía apenas 30% da capacidade visual considerada normal).
Em 1996 comecei a fazer uso do análogo de insulina ultrarrápida antes das refeições, e verifiquei que as hipoglicemias que normalmente ocorriam 2 horas depois de me alimentar diminuíram bastante. Mas ainda era obrigada a me alimentar a cada 3 horas, sob pena da glicemia cair, em função dos picos de atuação da insulina NPH.
Em 2004 troquei a NPH pelo análogo de insulina de duração lenta, e mais uma vez o número de hipoglicemias caiu vertiginosamente, porque a lantus não tem picos. Sentia-me mais segura se não conseguia me alimentar porque estava no trânsito ou ocupada com alguma função de trabalho, pois sabia que um pequeno atraso de meia hora não arriscaria a minha estabilidade glicêmica e, consequentemente, também não prejudicaria o desenvolvimento normal das minhas atividades.
No início deste ano de 2014, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do SUS – CONITEC – elaborou estudo para o fornecimento dos análogos de insulina pelo sistema público de saúde. Mas a conclusão a que chegou, apesar dos relatos de pacientes e familiares sobre a melhoria da qualidade de vida com os análogos, é que faltam evidências para justificar o impacto orçamentário em 5 anos de 2,5 bilhões de reais (tipo 1) e de 13,5 bilhões de reais (tipo 2).
Ou seja, os números que abundam na vida pessoal dxs diabéticxs faltam enquanto justificativa para a revisão e atualização do protocolo do SUS em diabetes.
Durante o 2º Encontro de Blogueirxs e Ativistas em Saúde, eu e outras blogueiras de diabetes conversamos pessoalmente com Maria Inez Pordeus Gadelha e Aline Silveira Silva, integrantes da CONITEC. Elas nos contaram que o debate sobre a incorporação dos análogos foi um dos mais longos durante toda a existência da CONITEC, e que, apesar dos depoimentos dxs pacientes consistirem em um tipo de evidência, são considerados frágeis, e que as evidências mais consistentes, embora solicitadas às entidades e associações que intervieram no processo de estudo, não foram enviadas à comissão.
Maria Inez nos relatou que a CONITEC, a título de comparação, buscou exemplos de tratamento do diabetes fora do Brasil, e descobriu que na Noruega (país com maior IDH do mundo), os análogos não foram incorporados. Todavia, no Haiti (país com pior IDH das Américas) os análogos também não foram incorporados. No Brasil, o diabetes mata mais de 124.000 pessoas por ano (segundo o atlas de 2013 da Federação Internacional de Diabetes – IDF, nosso país é o campeão de mortes pela doença). Portanto, o tratamento pode até funcionar para as pessoas com diabetes na Noruega, mas não se mostra adequado para xs diabéticxs brasileirxs.
Desta forma, cada país tem suas especificidades que recomendam – ou não – a incorporação dos análogos de insulina, não sendo possível aplicar o mesmo modelo da Noruega ao Brasil – assim como de países como Inglaterra, Portugal e Estados Unidos, em que o tratamento de diabetes tipo 1 com NPH já foi abolido há décadas – porque as realidades desses países também não é a mesma.
Pacientes, como eu, em regra temos apenas nossos números pessoais (e durante um único dia convivemos com muitos deles para implementar o autocuidado). Os números técnicos e científicos, são as empresas farmacêuticas, institutos de pesquisa e associações médicas que detém. Assim, devemos cobrar deles que forneçam esses dados para que o serviço público de saúde possa implementar uma política mais adequada ao tratamento do diabetes. E se não dispõem (porque há empresas que investem mais em propaganda do que em pesquisas), devemos cobrar essas entidades para que busquem os números necessários à incorporação dos análogos de insulina ao protocolo do SUS.
Por outro lado, os depoimentos dxs pacientes não deveriam ser considerados como algo tão frágil assim, ou como a repetição de palavras incutidas em nossa mente pela indústria farmacêutica. Acreditar nx paciente enquanto pessoa dotada de capacidade de comparar os efeitos de cada tratamento, e de saber diferir o que é bom e ruim para a sua saúde, não retira a seriedade e credibilidade dos gestores – e pelas palestras proferidas durante o encontro de blogueiros, Maria Inez e Aline são profissionais sérias e preocupadas com o bem-estar da população brasileira, e com todas as consequências que uma decisão sem o embasamento necessário pode provocar à saúde dxs brasileirxs e aos cofres públicos.
As evidências científicas não oferecem todas as respostas necessárias à qualidade de vida das pessoas. E os testemunhos das pessoas nas consultas públicas da CONITEC sobre revisão do protocolo de diabetes, e também na página do facebook criada para colher esses depoimentos – somos 12 milhões de motivos para a incorporação dos análogos de insulina – reforçam como, na prática diária, os números do diabetes se mostram mais favoráveis com os medicamentos não incorporados (ainda) ao SUS.
Neste ano, o meu dia mundial do diabetes – 14 de novembro – ficará marcado como um dia de luta por melhores condições de vida através do sistema público de saúde: pelo diálogo com a CONITEC, para que os depoimentos das pessoas com diabetes sejam considerados autênticos testemunhos de melhoria de vida, e pelo diálogo com as empresas farmacêuticas, institutos de pesquisa e associações médicas, para que as evidências científicas necessárias à incorporação dos análogos de insulina sejam fornecidas e, se não existentes, sejam buscadas com mais investimentos em pesquisas.
Por Raphael
Políticas Públicas dependem de indicadores que neste caso são os de saúde. O SUS também possui uma série de Sistemas de Informação, capazes de traçar com bastante acerto o perfil epidemiológico e socioeconômico de uma população onde pretenda fazer uma intervenção. Mas concordo que laboratórios e as associações médicas detêm informações preciosas que poderiam auxiliar na formulação de novas estratégias para o tratamento do Diabetes e de muitas outras patologias. Acredito que a ANS têm um papel fundamental enquanto órgão fiscalizador de muitos aparelhos e dispositivos da saúde suplementar, que também integram o SUS (embora a maioria das pessoas ignore esse fato).
Débora te parabenizo sempre pela militância aguerrida que você desenvolve em defesa dos direitos das pessoas que sofrem com o Diabetes, em prol da Democracia e do SUS como um todo.
AtenciosaMente,
Raphael