medicar para controlar
Entrevista do Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade na revista Fórum Semanal em 12/12/2014:
“Fórum Sobre Medicalização da Educação e Sociedade” exalta a importância de questionamentos e discussões sobre os diagnósticos precoces e massivos dentro das escolas e propõe a valorização da diversidade humana
por Carolina Rovai
“Venha brincar e desmedicalizar a vida. Se eu não posso brincar essa não é a minha luta!”. Este é o lema do “Fórum Sobre Medicalização da Educação e Sociedade”. Criado em 2010, mas com raízes em 2007 quando um grupo de docentes e profissionais da saúde, preocupados com a redução dos problemas de escolarização a problemas de ordem orgânica, como distúrbios e transtornos, começou a empreender uma luta contra um Projeto de Lei, que propunha a contratação por parte de Prefeitura de São Paulo de equipes terceirizadas compostas por especialistas em diagnóstico e tratamentos de transtornos. Ou seja, que culminaria em uma disseminação do diagnóstico massivo de dislexia nas escolas do município.
Aos poucos, somaram-se a luta diversas pessoas e entidades das áreas da saúde, educação, direitos humanos e direitos da criança e do adolescente, o que levou a sua ampliação para além do referido projeto – e de outros que se seguiram com ele. Assim, foi criado o Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre Medicalização, que teve como um de seus desdobramentos justamente a promoção do I Seminário Internacional “A Educação Medicalizada: Dislexia, TDAH e outros supostos transtornos”, ocorrido em São Paulo, entre os dias 11 e 13 de novembro de 2010.
Neste seminário, que contou com aproximadamente mil participantes, foi lançado o Manifesto do “Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade”. Atualmente, o Fórum realiza seminários anuais, com participação internacional de profissionais que estudam sobre o assunto e propõem ações não medicalizantes. O principal objetivo é que a população comece a participar desse diálogo para melhor se apropriar do movimento de valorização e respeito à diversidade humana. Em entrevista à Fórum, a psicóloga Jaqueline Kalmus e as fonoaudiólogas Lucia Masini e Vera Teixeira, membros do Núcleo Metropolitano de São Paulo, esclarecem e explicam possíveis questionamentos sobre a execução e o objetivo do Fórum.
Fórum – Com quais objetivos nasce o Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade?
Kalmus, Masini e Teixeira – O Fórum é um movimento social que articula entidades, grupos, representantes de outros movimentos e pessoas com os seguintes objetivos: levar a cabo a crítica e enfrentamento dos processos de patologização da vida e da política; acolher as pessoas que sofrem e vivenciam esses processos; construir formas de atuação não-medicalizantes. Nossas lutas ocorrem em vários campos: no acadêmico-científico, no legislativo, no das políticas públicas, junto aos profissionais da saúde e da educação e à população em geral. Também nos articulamos com movimentos contra a medicalização de outros países, em especial na América Latina.
Fórum – Foucault já trabalhava com os termos: patologização e medicalização como formas modernas de dominação sobre seres. Até que ponto o Fórum acredita que problemas sociais são transferidos para o individual e tratados como doença?
Kalmus, Masini e Teixeira – Esse é o cerne da questão da medicalização: a redução do social e político ao individual. Essa é uma prática recorrente, que resulta na responsabilização dos indivíduos pelas mazelas a que estão submetidos.No campo da educação isso é muito claro: embora tenhamos uma escola que não garante uma boa formação dos alunos continua-se a dizer que essa má formação seria causada por uma série de transtornos de ordem bióloga ou psicológica. Na sociedade atual e, principalmente, em nosso cotidiano profissional, em diferentes especialidades, observa-se uma tendência em normatizar e padronizar os corpos. Na infância a normatização recai sobretudo no tempo das aquisições: do andar, do falar, do ler, do escrever, do compreender e obedecer regras. E a análise disso sobre cada criança tem deixado de lado seu contexto sócio histórico. É importante ressaltar que não estamos falando necessariamente de problemas sociais e sim de características sociais. Problemas sociais estão sendo individualizados, entendidos como transtornos e características sociais estão sendo tomadas como problemas. E tudo recai no indivíduo. Esse processo ganha uma dimensão ainda maior quando a criança passa a frequentar a escola. Se ela não tem bons resultados, ao invés de olharmos para seu contexto educacional (que seria, por exemplo, um problema social) investigamos sob um olhar medicalizante. Quando olhamos para sua família (dinâmica, estrutura, características enfim) a tomamos como problema. E tudo recai sobre a criança que, de aprendiz passa a portador de diferentes transtornos. Com adolescente, adulto e idoso, o raciocínio é o mesmo: há padronização em cada ciclo de vida. Na fase adulta, por exemplo, tudo gira em torno da produtividade dentro do sistema capitalista: se o sujeito não dá conta de todas as exigências de produção impostas a ele e fracassa ou sucumbe, a explicação hegemônica é sempre individualizante: ele sofre de “transtorno de ansiedade generalizada”, “burn out” etc. Ou seja, não se questiona o processo que produz esse fracasso nem se acolhe diferentes formas de estar no mundo. Ou seja, estamos longe de ver a diversidade humana ser de fato e de direito reconhecida.
Fórum – Atualmente, que tipos de diagnósticos são mais comuns entre crianças e jovens? E quais são seus principais riscos?
Kalmus, Masini e Teixeira – Os diagnósticos mais comuns são aqueles dados a crianças que apresentam problemas de escolarização – seja da ordem do aprendizado, seja da ordem do comportamento. A elas são atribuídos toda uma série de transtornos: os transtornos de atenção com e sem hiperatividade (TDA/TDAH), os transtornos de linguagem, os problemas de processamento auditivo central (PAC), transtornos de obediência (TOD=transtorno opositor desafiante), entre tantos outros. É bom que se diga que não estamos sendo negligentes com a existência de dificuldades de fato de algumas crianças e adolescentes em seus processos de vida. Só não admitimos que essas dificuldades sejam analisadas exclusivamente na ótica individual. Os avanços da biotecnologia têm levado a isso: um olhar ultra focado no corpo e cada vez mais específico – estamos na era da medicina molecular – tem nos afastado das análises contextuais e que são importantes para o entendimento do que acontece em cada caso. Além disso, vemos que o diagnóstico está se estendendo para crianças cada vez mais pequenas. Ora, parece no mínimo estranho – além de perigoso – atribuir hiperatividade e medicar uma criança de 3 anos.
Fórum – Como o Fórum avalia diagnósticos como dislexia e TDAH?
Kalmus, Masini e Teixeira – Esse tipo de procedimento diagnóstico cria um rótulo – marcado no corpo – que determina a pessoa em todos os contextos em que vive. Além disso, a comunidade científica vem discutindo o próprio TDAH, enquanto transtorno, e a validade desses diagnósticos. Temos conhecimento de uma pesquisa realizada no Canadá que aborda a revisão sistemática da produção acadêmica sobre tratamento de TDAH, num período de três décadas, na qual apenas 12 (doze) dos 10 000 (dez mil) trabalhos publicados preenchem critérios mínimos de cientificidade. É um dado que deve ser considerado. Outro aspecto a ser ressaltado é a avaliação realizada precocemente e que sugere sinais de risco tanto para a dislexia como para o TDAH. Essa conduta pode gerar uma expectativa de uma futura “doença” nos pais, na escola e na própria criança, extremamente nociva, de tal forma, que poderá comprometer a vida dessa criança. Ao invés de sugerir sinais de risco, devemos pensar que há diferentes modos de aprender e de estar no mundo que devem ser compreendidos e respeitados.
Fórum – Quais são os principais remédios utilizados para estes casos? E quais danos estes podem causar? Expliquem, por favor, os males que medicamentos como o Metilfenidato podem trazer para as crianças.
Kalmus, Masini e Teixeira – Em primeiro lugar, nunca é demais lembrar que medicalizar não implica necessariamente em medicamentalizar (uso abusivo de medicamentos) ainda que este seja um importante processo de medicalização. Nos casos diagnosticados e tratados como transtornos de TDAH é utilizado o Metilfenidato, um tipo de anfetamina, com nomes comerciais de Ritalina e Concerta. Este último também é receitado em casos diagnosticados como dislexia. Também temos conhecimento de uma nova medicação o dimesilato de lisdexanfetamina, cujo nome comercial é Venvanse utilizado nesses casos. As anfetaminas têm o efeito de estimular o sistema nervoso central e podem causar dependência. Há relatos de casos de crianças que ficam muito mais agitadas e outros em que o efeito é de torná-las apáticas e sonolentas. Será que este efeito é propiciador de atenção e aprendizagem? Um aspecto curioso é que as orientações médicas quanto ao uso do metilfenidato indicam que o remédio poderá ser retirado no período de férias.
Fórum – Hoje o Fórum conta com quantos núcleos? Como nasceram, e como funcionam?
Kalmus, Masini e Teixeira – Atualmente há dezenove (19) núcleos constituídos e situados em todas as regiões do Brasil: Pará, Rondônia e Acre, Bahia, Natal, Pernambuco, Curitiba, Irati e região, Baixada Santista, Campinas, Sorocaba, Metropolitano de São Paulo, Assis, Laranjal Paulista, Belo Horizonte e região metropolitana, Triângulo Mineiro, Poços de Caldas, Rio de Janeiro, Leste de Minas Gerais e Brasília. Esse número tende a crescer porque há outros em constituição, como em São José do Rio Preto (SP) e Uberlândia (MG). A criação de núcleos sempre foi incentivada pelo Fórum na perspectiva de ampliação do movimento, levando em consideração o crescente aumento da medicalização e da patologização das situações do cotidiano em nosso país. Mas, principalmente, para que as realidades e necessidades locais pudessem ser contempladas e que as pessoas se organizassem na direção da discussão e divulgação de nossas ideias e também para a criação de dispositivos para o enfrentamento da medicalização em seus contextos específicos.
Fórum – Em sua visão, quais são as consequências da medicalização da vida, sobretudo na infância? As pessoas passam a enxergar os medicamentos como seus “salvadores”?
Kalmus, Masini e Teixeira – Bom, parece-nos que o marketing da indústria farmacêutica está empenhado em fazer com que as pessoas assim os enxergue. Mas temos contato com muitas crianças e pais que sofrem processos de medicalização e o fazem com muita dor. Porque ele vem acompanhado da produção de um rótulo do qual é muito difícil desvencilhar-se; a criança se torna “a doente” – quando não, “a doença”. Nesse sentido, tanto a criança como seus pais se sentem responsáveis pelos seus problemas escolares, por exemplo. Algumas crianças passam inclusive a agir tal como se espera que elas o façam. Além do quê, o rótulo pode deixar marcas perenes. Nesse sentido, evidentemente elas precisam de ajuda. Precisam de acolhimento e de ajuda para que seja rompido esse ciclo.
Fórum – Qual a alternativa que propõem à medicalização?
Kalmus, Masini e Teixeira – Propomos uma outra lógica. Atualmente, o movimento medicalizante tem se esforçado para explicar que alguém não aprende ou não produz o suficiente porque é disléxico, autista, ou tem TDAH, ou TOD, ou problemas de PAC, ou TAG e tantos outros novos transtornos que surgem. Nossa alternativa parte da seguinte premissa: todos são capazes de aprender e produzir se considerados seus diferentes modos de ser, agir e aprender. Ao invés de criarmos leis ou capacitarmos profissionais da educação para a identificação precoce de patologias e propor a avaliação e o tratamento pelos profissionais da saúde na escola, nosso esforço se dá no sentido de exigir que as políticas públicas sejam implementadas de fato na direção da construção coletiva de uma escola de qualidade em que a diversidade humana seja contemplada. Investimos nossos esforços para que profissionais da educação e também da saúde possam olhar para seus alunos e pacientes buscando compreendê-los como sujeitos, com suas histórias de vida para encontrar alternativas em que a responsabilidade por seu sucesso seja coletivizada.