Ensaio pós-humano III
Como pensar o pós-humano?
Desde eras muito antigas que a humanidade vê seus modos de vida revolucionarem a cada giro na roda das novas tecnologias. Isso reflete o fato de que somos o que podemos. Caçamos mais eficientemente em grupos, melhor com armas e com mais sucesso se dividimos tarefas. Cada nova ferramenta, conceitual e/ou material encerra um modo de vida tradicional.
E cada vez que uma nova tecnologia é introduzida, uma tradição menos antiga é destruída. A agricultura sepultou milhões de anos de exclusividade do modo de vida dos caçadores coletores. O Facebook e os Smartphones, mudaram modos de viver para bilhões de pessoas em todo o planeta. O inusitado é que fez isso com um estilo de vida que havia se instaurado poucos anos antes, com a disseminação do uso da internet.
Estamos começando a nos depararmos com modulações do estar no mundo que transformam-se tão velozmente que conceitos e paradigmas milenares estão perdendo seu sentido prático. Essas mudanças afetam a noção de liberdade, identidade, autonomia e, fundamentalmente, a noção de separação entre a subjetividade humana e os seus objetos.
Foi preciso desenvolvermos uma forma de consciência da morte para termos produzido estratégias mais complexas de busca da sobrevivência. Saber que iríamos morrer em um dado momento, exigiu que fizéssemos escolhas estratégicas. Esse saber sobre a morte, atualmente, opera de forma a privilegiar, excessivamente, estratégias de sucesso pessoal. Consciente e inconsciente potencializam a ideia de morte pessoal de forma exagerada. A morte é uma realidade. Já, a noção de morte pessoal é uma criação humana, do mesmo modo que a noção de pessoa ou de indivíduo são conceitos que inventamos para significar a realidade.
O resultado é uma espécie de desvantagem em relação as demais espécies vivas. Elas estão submetidas aos acasos que assolam o ambiente, como mudanças climáticas e desastres cósmicos. No entanto, estão integradas ao bioma e, tem um papel relativamente menor e suave nas mudanças do meio em que vivem.
A teoria dos jogos demonstra, de outro lado, que a racionalidade convencional opera como maximizadora de estratégias pessoais frente ao interesse coletivo e das gerações futuras. A lógica da teoria fundamenta-se na premissa de que somos indivíduos e que vamos morrer. O fim do universo, da vida na terra e a morte pessoal se equivalem. Não há vantagem em sacrificar-se pelo bem da espécie. O que chamamos de altruísmo só tem sentido fora do império do interesse individual.
Nesse sentido, o amor que sentimos por nossos pais e filhos não tem base racional. E ele pode ser replicado em relação aos nossos irmãos. Mesmo a noção de parceria se estende para o amor romântico e, em menor medida, em relação aos vizinhos, amigos e colegas de trabalho. Essa solidariedade existencial, gradativa, vai indo até a noção de nacionalidade e por fim, chega ao amor a humanidade.
O amor, desse modo, também não é humano. Ele está entranhado nas relações que a vida estabelece ao integrar no espaço-tempo, as coisas e os seus arranjos efêmeros. Podemos conceber o conceito de vida como um arranjo fortuito de elementos intemporais.
O pós-humano, nessa perspectiva, é tanto um retorno ao inumano do amor e, ao mesmo tempo, um avanço para o pós-homem de Nietzsche. Assim, é preciso integrar o amor fati, do mesmo Nietzsche, à capacidade de instaurar outros valores. Ir além do "bem e do mal" na perspectiva pobre de um indivíduo mortal e egoísta.
Há muitos autores pensando isso na filosofia, na ciência e na arte. Observamos uma sinergia entre a produção artística, filosófica e científica que corrói a moral tradicional no centro de nossa cultura ocidental. Pensaremos sobre isso em outros textos.
Nos próximos posts, vamos considerar o fenômeno da mudança nos modos de ser e viver, no âmbito do sistema capitalista.