ACOLHIMENTO – a placa, a sala…
O ACOLHIMENTO E A PLACA
Certo dia, enquanto caminhava distraído pelos corredores do hospital, deparei com uma placa colocada sobre a porta de uma sala onde estava escrita a palavra Acolhimento.
Que interessante, eu pensei. Uma sala criada especialmente para oferecer acolhimento à clientela. Bons ventos soprando por estas paragens.
Olhei rapidamente para dentro da sala e pude identificar elementos convidativos e muito diferentes do restante do hospital: uma decoração leve, gravuras na parede, um clima ameno e um ambiente calmo. Que bom!
Quando iniciei minha vida médica há quase trinta anos, jamais imaginaria que nesse início de terceiro milênio da era cristã o acolhimento estivesse assim tão valorizado que acabasse por se tornar um setor especifico da instituição hospitalar. Que se tornasse uma placa. Mas se tornou.
A existência de uma sala especialmente criada para o acolhimento num hospital geral significava para mim uma grande novidade, até então desconhecida, e uma constatação: o acolhimento por algum motivo foi parar na placa.
Geralmente as palavras que vão parar em placas precisam ser reinventadas, e necessitam ser ressignificadas, porque perdem seu sentido original.
Foi assim, por exemplo, com a palavra hospital. Originalmente chamado assim por fazer referencia a um ambiente hospitaleiro, generoso em hospitalidade, bastou ser aprisionado numa placa e viu seu significado mudar. E mudar tanto e de forma tão grave, que incapaz de oferecer hospitalidade ou ser reconhecido pelos seus usuários como um lugar hospitaleiro, o hospital precisou pedir socorro outra palavra, livre ainda das placas, chamada acolhimento. Esse pedido de ajuda era o que o hospital precisava para permanecer respirando e com vida.
A palavra hospitalidade, quando em gozo de sua liberdade plena, traz em seu seio o mesmo sentido da palavra acolhimento. Tornar-se placa fez com que ela desidratasse e desnutrisse, afastando-a de suas características originais e de sua vocação natural.
Era finalmente chegada a vez de o acolhimento tornar-se placa.
Imagino a palavra acolhimento nos seus dias de liberdade.
Livre das placas e dos manuais, longe de tornar-se objeto de cursos de capacitação, respirava uma vida quase pletórica, farta e envolvente.
Acolhimento, livre e universal.
Nasceu no coração do homem como filho tímido do amor.
Irmão da simpatia e da boa vontade, cresceu e se espalhou por todos os labirintos da vida na terra.
Acolher foi se revelando um diferencial na medida em que a sociedade tornava-se industrial e incompassiva.
Àqueles que não se adaptavam ou os que se cansavam dessa modernidade sem afeto e com impessoalidade, buscavam no acolhimento proteção e refazimento para prosseguir suportando o peso das relações resfriadas da vida.
O acolhimento, no início da sua história, era assim: sem regras nem limites. Entrega sem obstáculos. Criava vínculos sem culpas. Amenizava dores sem qualquer estratégia estabelecida além daquela ligada ao querer bem.
Acolhimento livre era assim: sorriso farto, largo, pão sobre a mesa, divisão do cobertor ainda que curto e da água restante, ainda que pouca.
Passaram-se séculos até que a palavra hospital corresse em seu socorro por sentir-se desgastada e sem forças. Foi quando trouxeram acolhimento para a placa.
E porque palavras quando vem para placas chegam acompanhadas de manuais de utilização, o acolhimento não fugiu à regra: assim que foi encarcerado em placas a serem distribuídas por aí, seus algozes estabeleceram parâmetros muito estranhos para aquela que vivia livre no coração dos homens de boa vontade: quem acolheria, como acolheria, com que regras, depois de que cursos, usando que evidências, objetivando que resultados?
Acolhimento foi se transformando numa palavra achatada e tornando-se propriedade de capacitados. Parou de sorrir seu sorriso alto e escancarado e perdeu, encarcerada, aquela sua mania de dar um abraço forte, quase de urso. Deixou de andar descalça e de servir resto de café frio. Reduziu o repertório e a qualidade das suas piadas. Calças curtas? Nem pensar. Da placa em diante, tornou-se didática e normatizada, bem comportada e politicamente correta, adequada e universalmente compatível com a frieza da sociedade industrial.
O homem moderno, habituado ao uso de algemas sociais e comportamentais, foi se acostumando com a prática de aprisionar tudo à sua volta: aprisionou pensamentos, ideias, pessoas, convenções, normas, comportamentos, nomes e palavras.
A palavra, qualquer palavra, quando aprisionada perde sabor e cor, perde textura e força, embora como se fosse um suco de fruta industrialmente engarrafado, ganhe a possibilidade de ser distribuída em massa com alcance maior e mais efeitos…
Vida que segue.
Neste dia, enquanto caminhava pelos corredores do hospital, entendi que a palavra costurada na placa já não me causava tanta estranheza assim, nem admiração nenhuma.
Percebo-a palavra sem temperatura e muito menos viva do que o que seria esperado e necessário.
Sigo pelo corredor do hospital, já longe da placa que deixei pra trás.
Percorro agora os olhares e os gestos dos profissionais com quem cruzo pelo caminho.
Tento identificar em seus olhos e mãos os sentidos que elas deixaram escapar, danificando seus comportamentos e empobrecendo suas rotinas e regras e protocolos descuidados.
Por alguns instantes viajo para um tempo futuro onde a verdade libertadora será capaz de devolver às palavras seu significado até o limite em que elas possam finalmente ser capazes de escapulir das placas que as asfixiam e voltarem a viver livres e alimentadoras de vida no coração do homem, berço esplendido onde nasceram e de onde jamais deveriam ter se afastado e se perdido em sua história.
Que assim seja.
Dr. Luis Alberto Mussa Tavares, Campos dos Goytacazes, RJ.
Publicado no www.aleitamento.com em 10/3/2015
Prof. Marcus Renato de Carvalho
Por patrinutri
Estamos neste movimento disputando novos sentidos na saúde, apostando novos modos de fazer e de agir.
Olhar o acolhimento de um modo mais amplo, achar a placa, mas olhar também o processo para construção de espaço onde outras regras possam ser aplicadas.
Novos modos de gestão e atenção na saúde.
Digo novos sobre o que o texto nos aponta como antigos modos de fazer mais natural, mais perto das pessoas. Uso novos para promover um novo olhar para além da técnica, para além da doença. Algo que se construa na força ampliada da saúde, nas diferenças e singularidades das pessoas.
Muito bom podermos seguir criando espaços que dão vez ao que nos faz humanizar os processos de atenção e gestão em oposição ao que nos automatiza, nos torna homogêneos, nos faz perder a autonomia e protagonismo dos sujeitos envolvidos neste processo.
Que venham todos os modos de acolhimento!
https://redehumanizasus.net/sites/default/files/10_0378_final_acolhimento_e_classificacao_de_risco_ue.pdf
Seja muito bem vindo Marcus Renato! Tenho certeza que você poderá contribuir em muito neste debate em favor da humanização no SUS.
Bjs Patrícia