Guandu: Água até o ano 2000
As chuvas tem caido, mas não podemos deixar de vigiar!
Este foi o slogan utilizado pelo então governador Carlos Lacerda na época da construção da Estação de Tratamento de Água do Guandu, em 1955. O que não se imaginava era a chegada do último ano do século XX, uma vez que as previsões apostavam no fim do mundo em 1999. Hoje, quase duas décadas depois, o Rio de Janeiro vive nova crise hídrica. Agora, porém, ela é causada pela falta de gestão e planejamento municipal, já que a conjectura sugeria baixa provisão de chuvas no atual período. A afirmação foi feita pelo coordenador do Laboratório de Hidrologia e Estudos do Meio Ambiente da Coppe/UFRJ, Paulo Canedo Magalhães, durante mais uma atividade do DSSA Debate, intitulada Cadê a água do Rio?. Ele falou ainda sobre a urgente necessidade de fortalecer o controle social na área do saneamento. "Temos que lutar por um serviço de abastecimento minimamente decente. O que nos oferecem é um sistema semelhantes ao de países muito inferiores ao nosso. Além de injusto, isso é nocivo à saúde pública. E nós somos os culpados, pois seguimos aceitando essa situação", assegurou.
Paulo Canedo, que é especialista na área e assessor do Banco Mundial para o tema, lembrou que a estação de tratamento do Guandu é a maior do mundo feita até hoje, pois tem um sistema enxuto, altamente focado e muito eficaz. A estação capta e trata 45 metros cúbicos de água por segundo e distribui 460 litros de água por dia (por pessoa) na cidade do Rio. A Organização Mundial de Saúde (OMS), pro sua vez, recomenda o uso de 110 litro por habitante.
“Além de ser humanamente impossível gastar essa quantidade, a Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae) autodeclara uma perda de 30% no sistema. Contudo sabemos que esse extravio poder estar na casa dos 50%. É impossível para o Brasil ter perda de 0%, mas ela poderia ser muito menor”, assegurou. A cidade de Tóquio, por exemplo, apresenta um percentual de 2% de perda no sistema, exemplificou Canedo lembrando que o Brasil utiliza a mesma tecnologia do país asiático. A diferença, explicou, é que o mais antigo cano instalado na capital japonesa tem data de 1996, enquanto aqui ainda existem tubulações da época do Império.
Mesmo produzindo tanto, o governo pensa em ampliar a Estação Guandu, o que não é uma necessidade imediata. “O Rio precisa, sim, da realização de obras de redundâncias no sistema, pois ele possuiu um ponto único de recebimento e de distribuição da água, o que representa um risco e deixa o abastecimento da cidade vulnerável no caso da ocorrência de algum acidente. Não precisamos que a Cedae produza mais água, essa obra se faz necessária apenas para lidarmos com menos riscos”, explicou.
Canedo lembrou que em 2003 houve uma grande crise de abastecimento e o primeiro grande exercício de gestão de recursos hídricos do país, baseado na nova Lei nº9.433/1997, também conhecida como ‘Lei das Águas’. “Eu participei do trabalho. Fazíamos diariamente as contas com a previsão de entrada e de saída. Trabalhávamos baseados em cenários, pois lidávamos com eventos naturais. Mesmo assim, conseguimos controlar o uso e ser conservadores com a saída dos reservatórios. Para nossa sorte, 2003 foi um ano atípico e houve grande período de chuva fora da sua temporada normal. Assim, o país se reestabeleceu”, relembrou.
A nova crise
Uma década depois, o Brasil está vivendo nova crise. Para Canedo, muitas ações poderiam ter sido diferentes, em especial o envolvimento da população para lidar com o problema. “Em 2013, se iniciou novamente um período de seca. No Rio de Janeiro, em seis meses o sistema passou pelo alerta 1 e 2 e, em janeiro de 2014, o sistema entrou em alerta 3. Apesar da indicação de necessidade da racionalização do uso da água desde o primeiro período de alerta, em 2013, a cidade diminuiu o consumo e a população e as indústrias não foram orientadas a nenhum tipo de atitude ou sofreram penalidade pelo mau uso da água”.
O pesquisador disse preocupado com a ausência de um "Plano B" para o abastecimento da população. Portanto, é de responsabilidade das autoridades ter noção do tamanho da crise; e da população a necessidade de contenção. “A amostragem para 2015 já apresentava tendência de um ano desconfortável”, disse Canedo, mostrando ainda que já ultrapassamos o gasto do volume mínimo de segurança dos reservatórios, que é de 10% do seu total. “A classe acadêmica deve aprimorar os seus modelos, comparar os períodos de chuva e preparar o que podemos fazer nos anos seguintes. Já o governo, deve olhar estes resultados e criar regras, tomar as atitudes necessárias e traçar metas de curto prazo para indústrias e população. O aperto será em função do nível dos reservatórios. A ciência que pouco ajuda é mais a ciência política do que a ciência física, da hidrologia ou seja lá o que for”, admitiu.
Sobre a questão das perdas do sistema e do desperdício, o especialista alertou que a população deve assumir seu papel e sair da confortável posição de somente reclamar e apontar os erros dos gestores. “O que eu tenho que fazer? Depois que eu conseguir fazer o que me cabe, aí sim devemos falar com os gestores e pressionar em todas as instâncias. O controle social precisa ser mais amplo no setor saneamento. Não é admissível que o município tenha perda de água de cerca de 50%. Mesmo que não estejamos em crise nenhuma, o custo poderia ser um terço menor. Perda zero não existe, mas uma perda de 15% é completamente alcançável. A média de 30% é inaceitável”, criticou.
Para o especialista, existem coisas no Brasil que são absolutamente anacrônicas como, por exemplo, as caixas d’água. Aqui é o único lugar do mundo em que se faz uso de reservatórios domiciliares. Todo mundo tem caixa d’água e trata esse assunto com naturalidade. Ele comparou o abastecimento de água com o fornecimento da eletricidade: “Quem tem uma caixa produtora de energia elétrica em casa? A luz sai do fio direto para a sua casa. Como é o gás encanado? É obvio que com a água deveria ser a mesma coisa. Não temos que ter caixa d’água. No mundo inteiro a caixa d’água é abominável e no Brasil ela é cultivável!”.
Ele disse ainda que se os reservatórios forem extinguidos o país morre de sede, porque a Cedae só fornece água no dia que quer. “Quando a Ligth deixa de fornecer energia todo mundo sabe e vira capa de jornal no dia seguinte. Já com a Cedae não. Há anos ela não satisfaz a demanda e ninguém faz nada. Essa complacência é culpa nossa. Porque não fazemos greve? Queremos uma empresa que forneça direto do cano para as torneiras. As nossas empresas todas são muito ruins. Por isso acredito que boa parte da falha é nossa. Se todos controlarem, o serviço deixará de ser a vergonha que é”, concluiu Canedo.