Instrumento de Deus

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Ah, esse momento é propício para se falar em religião, mesmo que ela tenha se tornado um negócio mais lucrativo que vender fast food, aliás, digamos que os empresários da fé aprenderam muito com a engenharia do Big Mac, afinal, hoje as pessoas pagam primeiro pelas bençãos para depois consumi-las. Mas confesso que o peso de tamanho criticismo me fez afundar na heresia e, como a poucos minutos tive uma visão, me arrependi e compus o poema a seguir:

 

Instrumento de Deus

Eu sou o instrumento de Deus
Serei sua régua?
Serei seu compasso?
Ou tenho melhor jeito
para um preciso astrolábio?

Não importa
Sou o instrumento de Deus
Um farol iluminando
As trevas daqueles que me combatem.
Quero roubar-lhes a triste sorte
de submergirem no inferno
Quero soprar o amor
No coração dos ímpios

Se Deus por mim fala
Meus gestos são puros
Se Deus por mim age
Sou o escudo da virtude
Que repele toda a maldade
Qualquer gesto será então
Amparado em seus divinos ensinamentos
Não importa o que pensem, o que falem
Pois Deus está do meu lado
Ajuda a escolher meu sorvete
Oferece indício precisos
De qual automóvel devo comprar
Faz meu coração palpitar
Quando visto a camisa do avesso
Fala-me com todas as letras
Se devo colocar
Mostarda ou maionese
No cachorro-quente
Perfuma minha voz com mirra
E afia minha língua com sua ira
Quando digo impropérios
Por sua vontade divina

Quando me olho no espelho
Santos olhos  me sorriem
Vejo  o instrumento de Deus…
Eu sou o instrumento de Deus!
De Deus sou o Instrumento!
Eu sou…eu sou?
Eu sou o meu pastor
Nada me faço faltar
Em verdes pastagens repouso
Conduzo-me até as fontes tranquilas
E reanimo minha vida
Guio-me pelas veredas da justiça
Por causa do meu nome
Eu sou o instrumento de Deus
Eu sou o instrumento de Mim
Eu sou Deus?

    Na confusão dos impropérios, dos gestos de maledicência, nas insinuações do dito pelo não dito, podemos nos esconder atrás das prédicas de nossa religião ou princípios de vida,  doutrinas políticas, princípios filosóficos etc. Quando a ocasião assim necessita, lançamos mão de frases de efeito, versículos soltos no tempo e no espaço, trechos de livros sagrados e profanos, tudo isso e mais para justificar uma moralidade que afirma tão somente a construção ostensiva do desejo pessoal frente ao projeto alheio. Essa dificuldade de compartilhar uma moralidade pessoal com a coletiva pode muitas vezes assumir a proporçao catastrófica da destruição do outro. O que não podemos incluir corre o sério risco de ser destruido, física e/ou psicologicamente. Os bodes expiatórios vão mudando com o passar das eras: negros, índios, mulheres, crianças, gays…
    Tivemos exemplos recentes na história do que ocorre quando, paradoxalmente,  a psicopatia torna-se coletiva. Vamos então, serenamente, buscar nas palavras de Deus todos os argumentos para trucidar, massacrar e eliminar aquilo que nos ameaça, em suma, os portadores das "diferenças" ou daquilo que rotulamos como "diferença". Essa vontade férrea de poder e destruir esconde-se muitas vezes em expressões "brandas" como "controle populacional", "eugenia", "leis de imigração". Outras vezes assume a complacência coletiva, a tolerância torpe de ficarmos indiferentes ao grupos de extermínio, ao assassinatos de gays, a violência física e psicológica do racismo. Por fim, pode se disfarçar no amor pietista que apenas faz com que o oprimido continue chafurdando na lama que o sufoca.
    Talvez só consigamos superar nossa barbárie latente no dia em que reconhecermos a intimidade que existe entre "Deus" e o "Diabo"  presente, por exemplo, no livro de Jó onde Deus e seu dileto filho aparecem num bate-papo informal, quase uma conversa de botequim.  Assim,  perceberemos que "Deus" e o "Diabo" vivem latentes em cada um de nós e, o mais surpreendente, que eles são uma expressão disforme da argamassa de racionalidade e barbárie que habita o psiquismo de cada indivíduo.

 

A pressuposição de uma "bondade natural" tem sido um dos pilares de nossa civilização. O outro? A pressuposição de uma "maldade intrínseca", uma tendência indelével a corrupção. O desafio? Começar a entender que os gestos rotulados como "bons"e "maus" habitam as mesmas subjetividades e que o real armagedon acontece todos os dias dentro de nós.