Um Conto de Natal (Epitácio Macário)
Macário é um grande amigo e companheiro de lutas, professor universitário da Universidade Estadual do Ceará (UECE), um exímio estudioso de Lukacs e alguém com muita sensibilidade artística como mostra o texto a seguir. Belo e pungente, nos transporta para um Natal no sertão do Ceará que muito bem pode estar acontecendo agora. Pela beleza deste texto Macário recebeu de mim o título de "Charles Dickens do Sertão". Um grande abraço para tod@s da Rede HumanizaSUS e um Feliz Natal!
Um Conto de Natal
Enquanto fecho os olhos, revivo a cena de trinta e seis anos atrás. O lume hesitante da lamparina a querosene continua aceso na lembrança e ainda sinto o cheiro da neblina que acalmou a poeira do terreiro misturado com fumaça de pavio e alfazema queimada. Afora o grasnar da coruja de vôo rasante sobre o telhado e ecos de conversas vindas da estrada que ia dar na cidade, ouvia-se apenas a respiração ofegante, os silvos do ar inspirado a força, as frases reticentes, ditas pela metade…
A tarde tinha sido enevoada, de clima abafado e muitos carros na estrada, levantando poeira seca. O pai demorou a voltar da cacimba e quando apareceu trazia a cabaça vazia. Lembro de vê-lo por trás dos marmeleiros sentado numa pedra, como a fitar a copa das árvores, e atravessar a cancela do quintal em passos planejados. A filha mais velha tomou-lhe das mãos a cabaça, esticou a rede do lado da janela, na sala de jantar, colocou o travesseiro de bater algodão para formar um encosto, acomodou-o e começou a balançá-lo. O suor escorria pelo pescoço de pele curtida, tamanho era o esforço.
A noite se anunciava, cobrindo com manto negro os restos de raios a oeste, quando a mãe dobrou o canto da cerca, exalando o cheiro de assados e chouriço que preparara na cozinha da casa da fazenda. Foi direto a ele, fez-lhe uma carícia no rosto e enxugou-lhe o suor; acendeu o carvão no fogareiro, trouxe-o para perto da rede, lançou sobre o braseiro um punhado de folhas de alfazema e começou a abanar a fumaça para debaixo da rede. Serviu-lhe uma porção feita à base de entrecasca de jatobá, jenipapo, aroeira, angico e minúsculos pedaços de cabacinha. Nenhuma palavra, só um gesto, um olhar firme e um clima de ternura e cumplicidade. Lembro como fosse hoje do sorriso que ele esboçou e da serenidade que se fez no seu semblante. Adormeceu.
Um mexido de feijão com arroz, cuscuz e torresmos, acompanhado de carne de porco assada com sobremesa de coalhada adoçada com raspa de rapadura, ficou apenas na fantasia que fora sendo desfeita enquanto a noite avançava. Nada mais que uma panela de xerém ardia na fornalha e mesmo o café de boca de noite não exalava mais cheiro: ora, ele fora preparado com a borra do pó da manhã! Os ovos, duas cestas cheias, e dois capões cevados tinham sido levados para a cidade. O apurado deveria ser investido na compra de quatro pares de chinelos, um quarto de café, dois litros de querosene e pães da padaria.
Minha rede estendia-se bem no meio da porta do quarto contíguo a sala de jantar. De lá, acompanhei e compartilhei a aflição da nova crise por volta das vinte e três horas. Ele ergueu-se de supetão, agarrou-se aos portais da janela buscando a brisa que corria suave lá fora. Os pulmões contraíam-se forte em ritmo acelerado e seu rosto foi ganhando uma cor vermelha, depois roxa… “Senhor, tende piedade dele!” suplicou a mãe e, num misto de dor e ternura, continuou: “não se entregue, meu velho; eu estou aqui; seus filhos estão aqui!…”. Novamente o cheiro de alfazema, incensos e ervas diversas.
Na pequena mesa de pau d’arco, lavrada a enxó e formão, havia um velho rádio marca Semp que recepcionava sinal transmitido em ondas longas de alhures.. Impossível esquecer o vai e vem das ondas, os assobios e chiados das quedas de freqüência e o jingle repetido de dez em dez minutos: “Sociedade… Salvador Bahia”. Quando a missa começou, ouviu-se um concerto que misturava o dobrado dos sinos com as dezenas de vozes do coral e um sublime som de piano que pairava como uma cortina luminosa por trás de todos os ecos.
Ali, na pequena casa de beira de estrada, a angústia resignada da mãe coragem contrastava com o desespero de duas das filhas que, no terreiro, soluçavam lágrimas de ressentimento: “Deus, por que nos desprezastes!”. Outros transitavam entre a sala e o quarto, em voz de pensamento, como que aguardando alguma coisa que já não sabiam o que era.
Fingi para mim mesmo que dormira, fechei os olhos, procurei subtrair-me da situação, divaguei em pensamentos… Os ruídos do instante foram se distanciando, enfraquecendo, até sumirem, como as ondas do rádio. Mesmo o primeiro cantar do galo desmanchou-se no ar antes que chegasse aos meus ouvidos. Foi então que vi o pai erguer-se revigorado, arrastar seus velhos chinelos de sola crua até a alcova, pegar o violão, chamar todos para o terreiro e, do lado de sua amada, cantarolar madrugada adentro…
O sol principiava a romper a placenta da noite, quando ouvi sussurros da conversa de todas as madrugadas, alguns sorrisos soltos, vindos do quarto da mãe. Os dois desenhavam em cochichos o futuro. O rádio, agora sintonizado na Globo do Rio de Janeiro, tocava uma canção de Jackson do Padeiro. Demorei a abrir os olhos para não perder a paz do momento, até que o avistei, ereto como sempre, indo ao terreiro pegar gravetos para a mãe acender o fogo e fazer o café trazido da cidade pelos irmãos mais velhos. A crise de asma havia passado e ele assobiava docemente: “noite feliz… noite feliz…”. Debaixo da rede havia um embrulho com pão da padaria e um par de chinelas japonesas.
Era natal de 1973, numa casinha de beira de estrada, na localidade de Riacho do Gado, no município de Tamboril/CE.
Por jacqueline abrantes gadelha
Querido amigo,
Quanta riqueza nesse conto! Epitácio nos transporta exatamente para o cenário que ele descreve. Ousei, nessa viagem, trazer um outro conto, também de natal.
Teclando com um amigo paulistano no bate-papo, falei que estava no sertão da Paraíba onde nasci e, por isso, a conexão estava difícil. Ele, sabiamente e profeticamente, alertou-me que o lugar era muito propício para outras conexões.
O velho açude com sua água escassa e barrenta já não sentia razão de existir. Transformara-se em pobres e teimosas poças de lama. Na sua margem, um menino de doze anos vestindo apenas um velho e surrado calção, chorava sob um sol forte e impiedoso que queimava-lhe a pele e ignorava a sede e a fome que maltratavam sua condição de ser vivente. Decidiu ir embora dali. Levando apenas uma muda de roupa, deixou para trás doze irmãos, o velho pai e o chão que acolhera o corpo de sua mãe, vítima de tuberculose.
Aqui, o tempo resolveu parar sob o calor escaldante do sol e o chão parece ferver. Nenhuma folha se move e o único sinal de vida que se vê na paisagem vem de um e outro passarinho que arriscam um vôo rasante em busca de um pouco d’água. Mas eis que à noite cai uma chuva forte com relâmpagos e trovões. Os adultos presentes ficam receosos acerca do "estado geral" da casa e alguém sugere fazer, como antigamente, a oração de São Benedito para afugentar a tempestade. A proposta provoca risos. Algumas crianças correm para o alpendre da casa, maravilhados com aquilo que seus olhos nunca viram: uma verdadeira festa de luzes no céu.
Enquanto uma senhora se encarrega de secar o chão impacientemente sem esperar que a chuva cesse, o velho homem, aquele que há pouco era apenas um garoto de doze anos, rememora sua história para os filhos e netos. Reafirma, vitorioso, diante de todos, a alegria de ter comprado o pedaço de chão à beira do velho açude onde chorou as dores da seca, da perda, do abandono e diz que é lá que quer ser enterrado. Lá onde lhe foi negada a terra, a companhia dos bichos, das árvores, do pai e dos irmãos.
Diz também que chuva em noite de natal é sinal de pouco inverno. Tomara que dessa vez ele esteja errado…
Erasmo e Ricardo,
Beijo no coração de vocês, obrigada pelas conexões.