De dentro do hospício
O texto que compartilho a seguir é de autoria de Fátima Lima, médica do Hospital João Machado e foi enviado para o grupo virtual tecendo redes da PNH no RN.
DE DENTRO DO HOSPÍCIO
Maria de Fátima Lima de Morais
Voltar a trabalhar em um Hospital Psiquiátrico com a missão de tentar emagrecê-lo, diminuindo número de leitos e trabalhando para devolver, de forma responsável e cuidadosa, algumas pessoas às famílias perdidas, tem sido uma experiência e tanto. O hospício é um lugar de grandes e pequenas tragédias. Acompanhá-las é uma viagem plena de emoções e aprendizado.
Comecei a conviver com os deserdados da loucura no terceiro ano da faculdade ainda na Colônia Juliano Moreira de João Pessoa, mas nem mesmo os 33 anos que já se passaram calejaram minha alma diante dos dramas que se desenvolvem entre as paredes de instituições asilares por mais modernizadas e humanizadas que sejam. A história de Maria de Fátima Esteves é um desses dramas cujo final até pode ser feliz.
Há mais de 30 anos perdida da família, Maria de Fátima como era conhecida no hospital João Machado era tida como procedente da região de Ceará Mirim pois dizia ser de um lugar chamado Lagoa Grande existente naquela região. Nesses anos todos teve quase vinte internações no hospital e, quando de alta, sempre era encaminhada prá Ceará Mirim onde ficava ora na casa de alguma família que lhe acolhia ora na rodoviária ou em qualquer lugar. Maria de Fátima Esteves era uma sem teto.
Recentemente num esforço concentrado em tentar reencontrar as famílias de pacientes como ela e de garantir que, saídos de alta, os pacientes fossem acompanhados pelas equipes do Programa de Saúde da Família da região com definição clara de uma agente de saúde responsável pelo acompanhamento do caso, o serviço social do HJM através da assistente social Maria de Fátima dos Anjos resolveu escutar melhor o que dizia sua xará de sobrenome Esteves ou Estevan – não se sabia ao certo. Surpresa, Fatima dos anjos ouviu a Esteves lhe dizer que " a Lagoa Grande de onde vinha era na Paraíba" . E mais : que naquele lugar perdido na memória, lhe chamavam de Lucia Batista. E adiantou os sobrenomes dos pais.-: Batista dos Santos.
Num contato com a delegacia de Alagoa Grande na Paraíba foi encontrado um funcionário que conhecia a família com tal sobrenome. Residia numa localidade que talvez tenha sido um quilombo do século XIX. Através da rádio local, do empenho da delegacia e daquele funcionário, foi encontrada a mãe de Lúcia Batista dos Santos dada como desaparecida há 30 anos. Já viúva a senhora tinha 4 filhos vivendo no Rio de Janeiro, o mais novo de nome Pedro que, comunicado do fato, ligou para o hospital. Conferidas as informações do prontuário e as informações de repente deslumbradas da sofrida memória de Maria de Fátima Esteves se confirmou que ela era mesmo Lucia Batista dos Santos. Pedro pediu prá conversar com a provável irmã no telefone e nesse momento se desenrolou um diálogo inimitável pela mais lacrimosa novela das seis da rede Globo. Fátima/ Lucia estranhou que Pedro estivesse falando tão grosso, como um homem. Ora, ele era o mais novo, um menininho, quando ela saiu de casa. E queria saber do pai: se ele ainda criava porcos prá vender no Rio de Janeiro, se ainda brigava muito com mãe e ( o que mais me comoveu ) queria noticias de uma cabrinha branca que era sua, que ela tinha ganhado e criava. Eu, Fatima Lima , não sei a resposta que veio do outro lado da linha telefônica. Sei que nós todas chorávamos. Cada qual por um motivo. Eu, pela cabrinha branca. Achei o detalhe tão emblemático. Fátima/Lúcia além de uma família, de um passado e de suas lembranças tinha algo mais: era proprietária de uma cabrinha branca.
Dois dias depois prá nossa surpresa apareceu no hospital, com ares de quem tinha feito uma viagem inter continentes, a mãe de Fátima que se chamava Lúcia. A filha reconheceu a mãe de cara. E passou a conversar com ela como se a tivesse visto no dia anterior. A mãe me disse que não a reconheceria. Tinha saído de casa com 15 anos por causa de uma briga com o irmão mais velho e tinha ido trabalhar na casa de uma familia " num lugar muito distante que existe lá na Paraíba, um lugar chamado Patos". Desse quase outro país é que havia desaparecido. E era dada como morta pela família. E agora todos festejavam sua ressurreição!!
À mãe que estava perplexa e quase desorientada, fui fazer algumas perguntas de praxe para os fins burocráticos e encaminhamento para o INSS. Confesso que eu também estava um tanto perplexa e tão ou mais emocionada que ela. Desorientada, só fiquei quando ao confirmar o nome para preenchimento do boletim de alta a mãe me falou que Maria de Fátima na verdade, se chamava Josefa Batista dos Santos de apelido Lúcia. Essa foi, nesses anos todos, a mais estranha receita e o mais prolixo boletim de alta que assinei . Para efeitos burocráticos eu tive que dar alta a Maria de Fátima; para efeitos legais eu estava me despedindo de Josefa Batista. Mas no coração da mãe que estava ali na minha frente era sua Lucia que voltava para casa.
Nunca na minha vida tive tanta vontade de acompanhar um paciente até sua casa. Queria estar junto dela no não encontro com seu pai já falecido e no possível encontro com algum cabritinho descendente da cabrinha branca moradora da memória de Fátima/Lúcia/Josefa.
Fico feliz. O hospício perdeu mais uma parada. Mesmo que volte a se internar Josefa será Josefa ou Lúcia se preferir, terá uma história e uma família. E quem sabe, um cabritinho branco.
P.S. A equipe do João Machado fez uma “ vaquinha” e enviou o dinheiro com a finalidade de que fosse comprada uma cabrinha ( lá chamam bodinha) para Fátima/Lúcia/Josefa); só que compraram uma bodinha de cor cinza. Disseram não ter achado uma branquinha. Mas tudo bem…..
Por Luciane Régio
Se a rede de televisão "x" descobre esta história, não seria novela das seis, mas renderia um filme tipo "O Auto da Compadecida", histórias típicas do nosso Brasil, mas ainda assim contadas como entretenimento… Desencontros de famílias, reencontros! Uma mãe que registra a filha com um nome, e a chama de outro – o que é curioso e ocorre frequentemente! Todos aqueles que não se ajustam, ou que se "desviam", não falam "coisa-com-coisa"?? Recebem rótulo: louco. Pensando, arriscaria dizer que os "hospícios" foram rotulados também. Fui ver o que quer dizer a palavra (ou queria-se), … o nome dado "hospício"! Encontrei a definição semelhante ao que hoje chamamos de "casas de passagem", "abrigos" (não correríamos o risco de novo, claro!??), local onde se hospeda andarilhos (viajantes, é o que diz a definição), pessoas desencontradas (abandonadas, migrantes das famílias…). Vieram os hospitais psiquiátricos, as patologias? Ou as patologias primeiro? E entendemos que o "meio em que se vive" é um fator importante para… Bem, o que ainda quero dizer, é que meu trabalho leva-me aos encontros com tantas pessoas que não dizem "coisa-com-coisa", contam histórias pela metade, que são pessoas-em-"partes". No entanto, reconheço esses usuários, a comunicação é ampla! Eles são cidadãos. Fico assustada ao olhar pra trás e ver o que foi feito de muitos! Não compreendidos, pararam em hospícios (por um bom motivo? dar-lhes abrigo?) e virou "no que virou" hoje: uma luta pela inclusão! Se tirássemos o "tapete da história", ficaríamos de "cabelos em pé"?? Melhor chamar de Reforma Psiquiátrica? Então… vamos inventando nomes, rótutos, apodos… divertido, não? Se fosse só isso!!! Mergulhando, o que se observa é o ranço apolítico da nossa história tão brasileirinha! Uma história de exclusão completa! Quem eram/são os protagonistas? Em suspenso, e finalizando, arrepia termos tantas outras pessoas do nosso povo ainda "sem certidão de nascimento", sem registros… A Maria de Fátima/Josefa/Lúcia até teve sorte, tem 3 nomes e levou uma "bodinha" de soliedariedade – afinal, nosso povo tem isso de sobra!?
Um beijo, Jacque, adorei a história!!!
Áh, e o título ficou perfeito!!!
Luciane