A Psiquiatrização balizando o certo e o errado em nossas vidas

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As autoras Tania Mara Calli Fonseca e Regina Longaray Jaeger do presente artigo – A Psiquiatrização da vida: Arranjos da Loucura, hoje –  colocam em discussão a necessidade de um novo olhar quanto aos modos de gestão da vida, o controle normatizante das dispariedades e os novos arranjos da loucura.
O principal objetivo da Política de Humanização da Atenção e Gestão (PNH), é o de qualificar as práticas de gestão e a atenção em saúde, tendo em vista, o diferencial a que se propõe, ou seja, elaboração de plano transversalisando conceitos, funções, sensações, saberes, poderes, lincando gestão e produção de saúde, dando um novo olhar para a saúde/adoecimento mental.
Os modelos, ainda após a Reforma Psiquiátrica, persistem em tratar a saúde mental com naturalização e diagnósticos tradicionais às condutas pouco convencionais do ser humano. Mesmo a Reforma Psiquiátrica (RP), trazendo novas condutas e métodos de lidar com a doença mental, o conservacionismo  impõe-se, mantendo as velhas concepções frente à anormalidade psiquiátrica da vida do indivíduo. Ao reafirmar que a Política Nacional de Humanização (PNH), indaga-se: como o que se denomina saúde mental é tratada na rede HumanizaSuS?
O artigo escolhido abre então portas para discutir os novos modelos de gestão da vida, e o controle que normatiza as disparidades, bem como, os novos arranjos da loucura.
Ao iniciar a década de 70, o Brasil passava por um movimento de redemocratização no campo da saúde denominado, Reforma Psiquiátrica, juntamente ao movimento Sanitário. Os principais objetivos desses movimentos eram, a reformulação dos modelos de assistência e de gestão, a equidade na oferta de serviços, a participação dos trabalhadores e usuários, e principalmente, a defesa da saúde coletiva. Os movimentos conquistam instâncias as quais confere ao SUS o controle social da saúde. Entende-se como: “Controle social, no sistema de saúde brasileiro, quer dizer, direito e dever da sociedade de participar do debate e da decisão sobre a formulação, execução e avaliação da Política Nacional de Saúde”(CECCIM,R.; FEVERWERKER, 2004,P.43). A partir deste entendimento, a Reforma Psiquiátrica refere o rompimento da centralização do procedimento psiquiátrico, pois este separava e delimitava os doentes mentais , que para tanto, seriam incapazes de uma experiência no meio social. Os três movimentos, Reforma Psiquiátrica, Movimento Sanitário e o SUS, passam a empreender uma nova concepção no que tange à saúde mental, a fim de um novo modelo de gestão da população.: “Movimento que passa  a reivindicar transformações das relações entre cultura e loucura, até então demarcadas pela normatização” (LOBOSQUE, 2009,p.18). Graças ao comprometimento de usuários e trabalhadores estabelecendo ações políticas e institucionais com vistas a superar o velho modelo de saúde mental centrado no manicômio. A Política Nacional de Atenção e Gestão, passa  a implantar condições de produção de novas atitudes por parte dos trabalhadores, gestores do trabalho e da saúde. “ Amplia-se os vínculos de solidariedade e de responsabilidade, por meio da tríplice inclusão: nos espaços de gestão do cuidado , da formação de sujeitos e dos coletivos” (PASCHE; PASSOS, 2010, p.7). Entende-se que a PNH constrói planos de ações onde os mesmos sejam capazes de transversalizar conceitos, funções, sensações, saberes, poderes, unidos a  construção de saúde ao campo de gestão.
Por diretrizes da PNH, entende-se por orientações gerais que determinam o método de inclusão do usuário/trabalhador, no sentido ético e político do cuidado e gestão, através da clínica ampliada, co-gestão, acolhimento, valorização do trabalho e do trabalhador, defesa dos direitos do usuário, fomento das grupalidades, coletivos e redes.
As autoras do artigo, colocam  em discussão através de questionamentos, o posicionamento da PNH e a Psiquiatria, hoje, com as seguintes perguntas:”  Para quem são orientados estes cuidados? Quais são os usuários a quem direcionamos os cuidados de atenção e de gestão humanizada? Quais as condições e as circunstâncias que determinam ao usuário os lugares que passa a ocupar nas diferentes redes que constituem a atenção à saúde? Como as políticas públicas acompanham as necessidades da população? “
É pertinente lembrar que, embora a Reforma Psiquiátrica propõe  romper com a centralidade dos manicômios, novos conceitos e percepções de loucura, somada as concepções do SUS à transformação nos cuidados à saúde. É de aludir, uma naturalização dos diagnósticos e os modos tradicionais ao que tange a Saúde Mental. Referindo-se  aos Transtornos Mentais, a loucura , sendo esta, incorporada na vida comum, na versão de doença mental psiquiátrica. Assim os doentes mentais são subjetivados  a partir de classificações psiquiátricas, as quais são submetidos ou submissos às instituições que os tomam à seus cuidados.
Estudos realizados através da Organização Mundial da Saúde, declara que, a progressão epidêmica da doença mental, revelam que os transtornos depressivos unipolares encontram-se em terceiro lugar na classificação da carga global de adoecimentos (DEPRECION…,2012, p.1203). No Brasil houve uma diminuição no número de acidentes de trabalho, em contra partida, uma elevação na ocorrência de transtornos mentais, tendo em vista, a quantidade de concessões de auxílio-doença cedida pelo Governo Federal. Entre os transtornos mentais e comportamentais que mais afastaram os trabalhadores em 2011 foram, os Episódios Depressivos, outros Transtornos Ansiosos , Reações do Estresse Grave e Transtornos de Adaptação (MPS, 2012).
As autoras nos convidam à  reflexão para uma melhor compreensão de seu trabalho, a respeito de escolhas, critérios, mecanismos de orientações institucionais, questionando assim, quais são as condições de entrada e saída do usuário na rede de atenção e saúde? Dessa forma propõe examinar possibilidades de um não assujeitamento ao “jeito bom de ser”; trazendo a ideia de rompimento do binarismo e critérios de corte, e viver a vida a partir da diferença, agregando os processos transversais que constituem os arranjos heterogêneos dos quais nossa existência é forjada.  As autoras  argumentam que: os avanços  da  Reforma Psiquiátrica são inequívocos, porém o crescente aumento de distúrbios mentais, somos tentados a reforçar políticas relacionadas às classificações diagnósticas, relacionando condutas a estados de anormalidades que não podem ser corrigidas. Assim elas, as autoras, propõem a pensar como melhorar a vida das pessoas através do processo de ampliação dos saberes e poderes na atenção a saúde, juntamente com medidas escolhidas pelo Estado.
Ao falar sobre o arquivo da loucura, descrito por (FOUCAULT, 2004, p.95), sendo um jogo das regras que numa cultura determinam o aparecimento e o desaparecimento dos enunciados, sua permanência e seu apagamento, sua existência paradoxal de acontecimentos e coisas, a partir de Michel Foucault, Guille Deleuze e Félix Guattari, autores que concebem arranjos coletivos e maquínicos que rompem com formações discursivas subjacentes, organizadas em torno do conceito de sujeito (humano, falante, trabalhador, consumidor).
O modo de como o sofrimento mental, físico, social e econômico vem tomando porte e ganhando novos arranjos ao poder psiquiátrico em nome da vigilância e das  seguranças estatais, Foucault nos indica importantes questionamentos levando-nos ao entendimento da psiquiatrização do ser humano.
Na modernidade, o homem da razão delega ao médico a relação com a universalidade abstrata da doença do louco, este por sua vez, comunicar-se á com o médico por meio da intermediação de uma razão abstrata, “ que é ordem, coação física e moral, pressão anônima do grupo, exigência de conformidade” (FOUCAULT, 1999, P. 141). Diante da história silenciosa dos loucos, muito antes da própria psiquiatrização da loucura: é “ a percepção que o homem ocidental tem de seu tempo e de seu espaço que deixa aparecer uma estrutura de recusa, a partir da qual denunciamos uma falha como não sendo linguagem, um gesto como não sendo obra, uma figura como não tendo direito a tomar lugar na história “(FOUCAULT, 1999; P.144).
O poder da Psiquiatria vai discriminando-se em diferentes campos como: escolar, militar, familiar, laboral, determinando um modo correto de ser ou anomalias, assim passa a psiquiatrizar a conduta da criança e do adulto, a partir do balizamento do que é certo ou errado em termos de comportamento, determinando elementos patológicos ou não. A Psiquiatria passa a ser um produtos e regulador das condutas humanas, tomando como funções, o controle social.
As autoras argumentam que de uma mesma maneira, quando utilizamos expressões como: controle social, sofrimento psíquico, humanização dos tratamentos, incapacidades laborais, saúde mental, desestigmatização da doença de forma generalizada, estaremos nos inserindo no maquinismo estatal, na normatização disciplinar e segurança e do controle. E ainda, que através de uma rede de cuidados estatais, teremos controle e poder em decidir sobre a vida das pessoas.
Para Foucault, (2001, p.402) a Psiquiatria se torna a ciência da proteção científica da sociedade, também como ciência da proteção biológica da espécie, quando em nome da garantia de proteção social, pretende “ ser a  instância geral de defesa da sociedade contra os perigos que minam do interior” ((FOUCAULT, 2001, p. 403).
Ao concluir seu artigo, as autoras reafirmam que a “Psiquiatria alongada no social, passa ser incorporada por intermédio de arranjos heterogêneos e multifacetados. O usuário que passa a fazer parte de uma rede humanizada da saúde, ao exercer seus direitos de cidadania, recebe a dupla inscrição, conforme nos indica Agabem. De um lado, os direitos de acesso à saúde finalmente adquiridos a partir de lutas e de rupturas com os poderes estatais, de outro prepararam, “ uma tácita, porém crescente inscrição de suas vidas na ordem estatal, oferecendo assim uma nova e mais temível instância do poder soberano do qual desejaria libertar-se” (AGABEM, 2010, p.127).
Mesmo com o advento da Reforma Psiquiátrica que rompeu com os espaços asilares e manicomiais, criaram-se novos arranjos para a loucura. Lembrando-nos das demandas da vida na atualidade, onde o estresse , os transtornos unipolares fazem parte de um ser humano normal em sua experiência de adoecimento, encontra assim um novo” lugar melhor”, para serem novamente institucionalizados. Excluídos socialmente por suas diferenças e por seus diagnósticos normatizadores da Psiquiatrização da vida do ser humano.
Quando assim se impõe um sistema , onde há uma abundância de informações , a qual não se captura para ser  transformada em conhecimento, a sociedade continuará carente de um empoderamento,  a fim de  discutir e decidir sobre seu próprio destino. Podemos ainda falar sobre as influências de alienação impostas pela mídia e o poder  que controla o próprio pensamento e o desejo de um livre viver.