Narcisismo, perversão e discriminação na política brasileira.

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Faça amor, não faça guerra

Marcia Tiburi é filósofa.

Desejo de Democracia

O desejo de democracia constitui intimamente a própria democracia. O clima autoritário de nosso tempo mostra que este desejo está sendo reprimido. A democracia permanecerá enquanto o desejo por ela – desejo em si mesmo democrático, ou seja, amoroso e generoso – não tiver sido aniquilado.

O afeto que anima a democracia é político, no seu sentido mais simples: produz elos, uniões, coletivos, transformações. Fica fácil entender se pensarmos que a democracia é bonita como é bonita uma festa em que pessoas se alegram com o que tem em termos de lugar, bebida e comida, danças e cerimônias. O principal da festa é a alegria. Com ela qualquer festa é possível. Mas uma festa precisa ser minimamente produzida. Alguém tem que achar o lugar, a música, algo para comer. Penso na beleza das festas mais simples em que tudo se move em nome do simples fato de que confraternizar, de estar juntos alegremente, é possível. Bom lembrar que a festa não está pronta se, de mau humor, não nos propormos a ela.

A democracia é um regime de governo, mas é também um ritual diário – como estar em festa no mundo com o que há de mais simples – que precisamos praticar em família e no trabalho, na casa, na rua, no mundo virtual. Não há democracia sem respeito à singularidade e aos direitos fundamentais que o Estado, cada instituição e cada cidadão deve ao outro com quem compartilha a vida, pública e privada.

A democracia é, portanto, uma forma política cuja característica é a alegria. A democracia é sempre alegre. A alegria é a força revolucionária interna à democracia. Mas ela precisa ser defendida para poder perdurar. Por que a democracia é delicada. Por que a democracia é sempre criança. A imagem de uma criança que precisa de amor, de atenção, de cuidados para poder se tornar um adulto forte e preparado para a vida é sua expressão mais simples. Quem luta contra essa criança é perverso, ou autoritário. Por isso é que podemos nos perguntar se o clima da cultura política brasileira não é, neste momento, de perversão. Em relação à política, podemos dizer que muitos de nós estão sendo altamente pedófilos. Tratam a criança-democracia como um objeto sexual em que os anseios mais pervertidos se realizam sem limites.

É que o pedófilo não conseguiu deixar de ser criança. Ele fixou-se na infância e se identifica com ela, ao mesmo tempo que, abusando dela, abusa de si mesmo.

Hoje, quando vemos tantas pessoas – políticos profissionais ou cidadãos comuns – falando e agindo em nome de um afeto como o ódio, expressando-se por meio de jargões e clichês antipolíticos, podemos nos perguntar como chegamos a este estado de coisas. Perguntar é preciso e quem está dentro desse estado de coisas não para para se perguntar. Que o ódio, afeto antipolítico, tenha tomado o lugar do amor não se justifica.

O exemplo do “panelaço” contra a presidenta da República foi um ataque bizarro à democracia. Tão bizarro que parece inacreditável que possa ter sido pensado. Certamente quem teve a ideia a considera uma ideia brilhante. Constantemente vemos cidadãos infantilizados pelos meios de comunicação e por suas condições de classe, raça e gênero, produzindo estes acontecimentos de alto teor de analfabetismo político. Ao mesmo tempo, podemos nos colocar a questão acerca de tais cidadãos que como adultos mimados parecem crianças. Crianças que não gostam do jogo democrático por que não foram educadas para isso. Nossa cultura – sobretudo a cultura industrializada servida às massas – e nossa educação (des-educação) favorecem este cenário. Há manifestações em que as pessoas parecem crianças que, abusadas, e transformadas elas mesmas em abusadoras, já não querem mais brincar. O astro da pedofilia política tem um jeito de brincar bizarro.

Do mesmo modo, aqueles que hoje promovem a abstrata ideia do “impeachment” – neste Brasil de 2015 (!) – não sentem vergonha por sua atitude porque em sua base acreditam que tiveram uma grande ideia e que seus pensamentos, palavras e atos são os mais verdadeiros e corretos. São meninos mimados que pensam que são os melhores do mundo.

Ora, a personalidade autoritária não reconhece nada fora dela mesma. Nada pode ser contra seu modo de pensar, de sentir e de ver o mundo. O que o eu mimado e autoritário quer é impor-se como centro do mundo. As outras pessoas, perspectivas, classes sociais, gêneros, raças, são todos apagados em nome de uma verdade absoluta que nasce no núcleo paranoico – em que o mundo está pronto e explicado – que orienta suas ações.

O desejo de democracia que constitui a pessoa que respeita as leis e acordos sociais – o cidadão adulto – dá lugar em nossos dias ao desejo autoritário do sujeito infantil político que ainda não chegou à idade escolar. O desejo autoritário é sempre delirante. Quem estudou a história do nazismo lembra das performances políticas bizarras de Hitler e seus apoiadores. Hitler parecia uma criança que, tendo crescido, continuava abusada e mimada como todo paranoico. No nazismo, todos deliravam esteticamente e politicamente. Qualquer vídeo, documentário, ou filme do período mostra o caráter bizarro do que era vivido e fomentado pela propaganda da época. Nossa propaganda (incluso o jornalismo de hoje) continua fascista e destrói a democracia. O fascista está para a democracia, como o pedófilo está para a criança.

Não é possível entender por que esse ódio expresso das formas as mais bizarras, tem tanto espaço ainda hoje quando devíamos ter aprendido com exemplos históricos, inclusive o exemplo brasileiro da ditadura militar que durou vinte e um anos e que ainda não estancou seus efeitos entre nós. Por que os afetos negativos tomam conta das pessoas, dos indivíduos, das populações? É pergunta que sempre podemos nos fazer.

Podemos também continuar perguntando: qual é a diferença entre o desejo constituinte da democracia e o desejo constituinte do autoritarismo? Como esse desejo, que é sempre desejo do outro, no sentido de ser formado junto com os outros, se estabelece? Ora, a democracia é uma forma de governo, mas é também uma perspectiva afetiva no sentido de ser efeito e de causar efeitos. O sentimento de amor, de respeito, ou de ódio não são naturais nas pessoas, são ensinados, são criados, são produzidos. Por que as pessoas estão preferindo o ódio ao amor, é outra boa questão. Só quem prefere o ódio é quem vive do capital, seu grande gerador.

Dia desses dentro do metrô em São Paulo, uma mulher falava para as outras “faça um sexo gostoso”. Eu lembrei que a mulher de Goebells queixava-se que eles nunca faziam sexo… Pensei no Brasil, país feito de mitos: a sexualidade livre, a cordialidade, a alegria carnavalesca, o país tropical abençoado por Deus…

Sei que o clima não é para a ironia, e que posso ser mal compreendida, porque o clima é de ódio a tudo o que implica o amor – e o sexo – ou a simples percepção de que há algo de infinitamente mais podre nas manifestações das comunidades bizarras que pedem sangue contra partidos, esquerdas, jovens ativistas, mulheres, homossexuais.

Atualmente as hordas de zumbis antipolíticos desejam sangue. Ele terá de vir do mesmo lugar de sempre. Das classes menos favorecidas e de todos os que, em algum momento, tentarem defendê-las.

Contra isso, sugiro o de sempre: faça amor, não faça guerra. Mas quem poderá aceitar essa sugestão?

Fonte:https://saudepublicada.sul21.com.br/
Data: 25/03/15