Buia, seu corpo, sua história (Fátima Lima)
Compartilho mais um texto de autoria de Fátima Lima (psiquiatra do Hospital João Machado)
BUIA, SEU CORPO, SUA HISTÓRIA
“Essa terra em que estás
Em palmos medida
É a cota melhor
Que tirastes em vida”
João Cabral de Melo Neto
Ele não falava. Ouvia sim. Às vezes sorria com jeito de criança. Como quando a gente elogiava suas roupas, percebia que estava usando uma camisa diferente. Tinha suas vaidades.Andava pelos corredores do Hospício com passos a um tempo incertos e decididos.Sabia onde pisava porque era tão restrito o espaço que pisava há tanto tempo. O espaço que lhe era dado pra se mover.
Em São Paulo onde tinha recém chegado para passar uma semana, ainda sonolenta, num domingo inesquecível, ouço Fátima Couto de Natal, do Hospício, ao telefone. Sempre cuidadosa me fala da morte de um certo José de Tal .Era ele, o Buia. Nem tínhamos ainda laços estreitos: só há quatro meses sou a psiquiatra da enfermaria daqueles antes chamados “crônicos”, agora residentes. Além disso, a não fala de Buia dificultava mais ainda a abertura de janelas para a comunicação. Mas eu lhe conhecia o sorriso de pobres dentes. Sorriso quase pueril.
Eis que através da diligente técnica da nossa equipe, nos vemos, súbito, de cara com mais um aspecto da Política Manicomial, com as sutilezas, armadilhas e mil faces da herança que nos deixou: para os “pacientes”, técnicos, para a Sociedade: Buia não tinha documentos;como eu estava em trânsito a certificação de óbito deveria ser preenchido por outro médico . Para o SVO não se poderia levá-lo pela falta mesma dos documentos.
Mais um telefonema de Natal e desperto definitivamente. Alguém, no Hospital, com histórica boa vontade havia apresentado uma sugestão: doar o corpo de Buia para a Faculdade de Medicina. Talvez resolvesse tudo mais facilmente. Para a Instituição. Era a lógica do manicômio me batendo à porta mais uma vez. Ponho-me em alerta e busco em “lugar” muito pouco informado a informação entre aspas. Busco no meu coração.
Sim, concordo que o corpo é nada mais que o invólucro, a embalagem do espírito, da alma, O que seja. Que nós podíamos doar o corpo de Buia “a serviço da humanidade, do conhecimento científico” e pronto. Mas Buia não tinha autorizado isto. E sua família, percebo convictamente, éramos nós. E com certeza, nós, sua família circunstancial, não permitiríamos ou concordaríamos que o corpo de quaisquer outros de nossos familiares consangüíneos ou amigos tivessem o destino aventado para o corpo de Buia.
Fátima Couto sempre alerta para novas descobertas e Vilca Maria agindo corajosamente nos bastidores do hospício viajaram comigo nessa busca de solução para dúvidas que o coração respondeu. Sinto que está em nossas mãos um momento importante de uma História que, inaugurada por Basaglia na Itália, entre nós foi construída por palavra, atitudes e decisões de incansáveis brasileiros como Luiz Cerqueira, Domingos Sávio, Pedro Gabriel, Paulo Amarante, Ana Pitta e tantos outros.
O corpo de Buia não é o corpo de Buia. Emergem rápidos dos passados os dolorosamente inesquecíveis corpos/cadáveres do Hospício de Barbacena que foram tão “generosamente” cedidos para as mineiras faculdades de medicina. .Por que não um velório, um sepultamento dentro dos rituais destinados aos outros, aos que não morreram esquecidos no Hospício?
Lembro ainda magoada com a perda, de João Ferreira Filho, contemporâneo e companheiro de todos nós, morto há 15 dias no Rio de Janeiro. Faz-me falta não ter ido a seu velório. Ter partilhado com amigos e parentes o luto, a despedida.
Por que Buia e seus companheiros de enfermaria não têm esse direito? Não, Cerqueirinha, Mestre de todos nós (e companheiro de copos) não ia ficar quieto. João iria esbravejar. Invoco meus companheiros, “meus mestres” de tantos cantos desse país para que estejam presentes conosco nesse velório que à distância e com o coração ajudo a organizar para Buia e todos os Buias que não tiveram direito a seus “sete palmos de terra”.
Vem de um colega sanitarista (e acupunturista) o apoio para nossas angústias. Zé Carlos, ator silencioso das mudanças que tentamos implantar no Hospício se dispõe a atestar o óbito. Compactua com nosso ponto de vista. Ouve nosso grito. Entende que não seria Buia a ficar insepulto. Estaríamos não sepultando centenas de vítimas de uma desatenção e “descidadanização” que marcaram o jeito de tratar os loucos até depois de mortos. Na segunda-feira, paulistanamente volteando num xopin center recebo mensagem de Fátima Couto no telefone celular; tava lá : “Buia foi sepultado com direito a presença de amigos e cuidadores. Na coroa de flores colocamos trecho do poema que você enviou.Rezamos por ele e cantamos “A barca” e outras músicas. Desce à sepultura ao som de aplausos”. Sentei-me numa mesa da praça da alimentação e chorei aos soluços. Sem mais palavras.
Obrigada Buia. Morto, enfim definitivamente silenciado, você nos deu uma grande lição: vocês, os “loucos” têm direito também a uma morte cidadã. E o Hospício que descuidou ou cuidou de você(s) de maneira equivocada vai aprendendo a olhar de um jeito novo também vossos pobres corpos sem vida.
E sinceramente, mais uma vez, choro.
Fátima Lima
São Paulo/ Natal
Junho 2008
Por Luciane Régio
Corpo histérico, corpo desejante, talvez Buia o vivesse e expressasse isso no sorriso "pobre de dentes". Corpo dos afetos. Quando será que o corpo-sem-órgãos será de interesse "da humanidade, do conhecimento científico”?
Lindo relato de vivência, faz pensar…
Luciane