UM ESCAMBO DE MUITA PAZ

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Cena do espetáculo Lâminas na abertura do XXV Escambo
 
  
Por Ray Lima

Um Escambo de paz
O Escambo de São Miguel do Gostoso foi isso. Um encontro de paz e relação amorosa entre os artistas e a cidade. Amor à primeira vista. Para se ter uma ideia estávamos tomando café numa padaria, depois de uma viagem cansativa de nove longas horas de Fortaleza para São Miguel, quando fomos abordados por uma garçonete nos perguntando se éramos do Escambo. Respondemos que sim. Ela então nos informou, apontando para uma senhora que também lanchava na padaria, que não precisávamos pagar nada porque aquela senhora bancava nossas despesas. Em seguida, D. Ieda, como se chama, pediu licença, sentou conosco e quis saber mais sobre o movimento. Após uma boa conversa confirmou a informação da garçonete, indo mais além: resolveu nos adotar arcando com o café da manhã para o grupo Pintou Melodia na Poesia, durante todo o evento. Uma demonstração de solidariedade e compromisso com a vida cultural da cidade. Coisa que a própria prefeitura não demonstrou. É claro que chegando à escola onde nos alojamos propusemos um revezamento entre os grupos presentes para compartilhar o saboroso café. Assim o Escambo se deu no mais puro convívio com a comunidade e sua população, sem incidentes, sem problemas.

Da força e do saber coletivo de repente se improvisa
Já diziam os grandes mestres que improvisa quem sabe, quem tem acúmulo e criatividade suficientes para agir sobre a orientação de um plano mínimo sem se perder nem vacilar. Ninguém consegue improvisar em cima do nada. Pois bem. O Movimento Escambo Popular Livre de Rua tem revelado essa capacidade. Em seus 20 anos de luta, resistência e poder criativo tem proporcionado aos escambistas e às pessoas dos lugares aonde vamos momentos de extrema riqueza artística e produção do comum que mobiliza e encanta. Quem não conhece o processo do Escambo pode imaginar um caos ou algo muito organizado, exaustivamente planejado e ensaiado para se chegar a tantos resultados com qualidade. A força da participação e da gestão coletivas faz desse movimento uma potência real com poder de realização impensável nas condições e conjunturas em que tem atuado.

A experiência de produção e gestão dos jovens
Não há dúvida de que a coordenação local do encontro tendo a frente Filippo Rodrigo e Patrícia Caetano, apoiados pelos componentes do Bando La Trupe, deu o mote da tranqüilidade, do ambiente de paz e democracia. Acho que eles inovaram ao não cobrar das comissões de organização do encontro e do próprio coletivo o cumprimento de suas tarefas. Os contratos, os acordos eram firmados e cada grupo que tratasse de dar conta, não havendo maiores cobranças nem pressão sobre quem quer que seja. A conseqüência é que desta forma acabava ficando mais claro quem estava blefando. Neste caso todos se beneficiando ou pagando altos preços de acordo com a postura e a atitude de cada comissão e ou do todo presente. Isso poderia ter levado ao caos como poderia gerar um processo de conscientização que, em parte trouxe reflexões importantes, puxando a responsabilização pela realização do evento para o coletivo e não apenas deixando-a pesar sobre os ombros, como de resto em alguns casos também ocorreu, do grupo que sediou o encontro. Contanto, foi um Escambo de bons espetáculos, de boas conversas, discussões e debates profundos; de escambares animados e participativos; de banho de mar, birita para alguns e luta serena e pesada (ainda) para outros. Talvez seja esse último um dos pontos que permanecem como desafio a ser superado pelos escambistas: a sobrecarga nos grupos anfitriões. Acreditamos que as coisas mudarão à medida que o Escambo for se tornando mais ESCAMBO, quando se enraizar em cada um de nós como prática e cultura coletiva.

Presença do Amir
O fato de o Amir estar participando dos encontros do Movimento Escambo, além de acrescentar-lhe importância, traz-lhe também uma contribuição do ponto de vista estético, filosófico, político muito grande. O Amir Haddad tem a madureza, o acúmulo teórico e prático de quem fez opção pela rua quando poderia estar desfilando pelas coxias e palcos do teatrão. O Boal, seu velho amigo e grande mestre dos oprimidos, se foi, mas ele segue firme conosco a refletir e a nos cutucar com a língua pontuda de suas utopias. O Amir não é propriamente um intelectual da rua ou do teatro popular. Ele é um exímio pensador do nosso teatro, do Brasil, da contemporaneidade. Suas ideias e reflexões estão impregnadas de humanidade, de gosto pela vida, pela alegria de ser gente a partir do olhar artístico, estético. Noutras palavras nos engrandece, alimenta e nos honra. É verdade que, como ele mesmo diz, aprende com o movimento, mas sempre traz muitos ensinamentos. E obviamente não é daqueles que chega com tudo na maleta para despejar, não é de fazer conferência, pré-fabricar teses e empurrá-las a qualquer custo. Aliás, não anda com nada. Sequer carrega uma mochila, uma pasta, um caderno. Não usa data show nem exibe imagens prontas. Confia na memória e em sua potente tecnologia do pensar de improviso, de processar os olhares sobre o mundo, transformando-os e traduzindo-os simultaneamente para algo visível a olho nu, inteligíveis, ao alcance de qualquer mortal. Um homem sem apetrechos, leve. Um filósofo sem frescura nem pantim. Lembrando o João Cabral de Melo Neto, em “catar feijão,” o Amir é cuidadoso e preciso no que fala. Vai colhendo-lendo com maestria imagens e fatos do cotidiano, do que se passa ao seu redor como se debulhasse uma espiga de milho e processasse os grãos que vai selecionando rapidamente para nos ofertar, transformando aquilo que há pouco era um cereal cru, duro e quase sem gosto, um manjar-munguzá do saber gostoso, nutritivo, rico e novo. Porém, faz isso sem o medo de revelar como se dão os mecanismos de produção de conhecimento – sem apontar receitas ou fórmulas fáceis, mas ajudando-nos a aprender a gostar de pensar e repensar nosso fazer artístico – e de como fazer uso dos conhecimentos que produzimos para construir estratégias de existência digna, emancipadoras, de intervenção na história e nos contextos de injustiça e desigualdade social do Brasil e do mundo. No entanto, tenho observado desde Umarizal que alguns grupos não atentaram para o privilégio de contar esse mestre das artes de rua e da cultura popular em nossos encontros e de efetivamente tê-lo como escambista. Uma presença pedagógica, marcante e inovadora sempre porque produz suas reflexões a partir do que está vivendo.

Da produção à apropriação dos modos de produção
Do poder de capital não há o que esperar. Do poder político, preso às amarras dos financiamentos de campanhas eleitorais e à indústria das propinas; e, por outro lado, pressionado pela massa desesperada e oprimida pelos dois muito menos. Resta-nos apostar no poder popular advindo do âmago desses desesperados ainda não tragados pela onda do desespero.

“resta agora abdicar[1]
desse poder que fere e mata
e nos arrasta para uma arena desigual
onde o boi é o bandido
e a plateia o oprimido no varal”

Entre estes estamos nós artistas que podemos desempenhar um papel fundamental para a transformação desse quadro desbotado que parece nunca descobrir e assumir outras cores. Chegou a hora, cito o poema que diz muito sobre o Escambo e o desafio de ser artista popular no Brasil:

“ É PRECISO QUE SEJAMOS FILÓSOFOS
É preciso aprender a semear com a máquina do tempo[2]
É vital, mais que vital inventar
Vida e verdade, sonhos e realidade
Razão com alegria bailando
Sobre o espelho das águas perenes.”

Ainda esperamos coitados as chuvas do céu
Quando devemos fazer chover no chão de caos e ilusão
Umedecer as pedras, fazê-las verter poesia
Transformar em vida a energia do sol em desperdício
Que hoje nos flagela e definha

A fome indústria cega e daninha há de ser
O instrumento maior de transformação
Tinta e pincel
A reflexão, o painel sobre a eterna falta

Sobre a miséria a ação, o desenlace sem queda
A inteligência carcomida pela força da moeda
Será o túmulo dos canibais de consciências

É imprescindível e inevitável que sejamos filósofos
Filósofos de nós mesmos
Criadores e semeadores da nossa própria filosofia
Recriadores confessos do nosso rosto
Decoradores do espaço reservado à nossa causa
Defensores incessantes do grito de liberdade
Do motivo do nosso choro, da grife do nosso riso
Precisamos estar sempre dispostos a corrigir nossos costumes
Mergulhar no abissal dos nossos valores culturais
Para que venhamos festejar nossa vanguarda
Celebrar a estética do brilho estelar da nossa alma
A estiagem haverá de ser o nosso eterno objeto de estudo
A resistência nosso princípio nossa viagem”

Para tanto, temos que solucionar alguns probleminhas aparentemente bestas, mas que refletem o quanto precisamos avançar para sermos autogestores, autônomos, livres, emancipados. O poeta Reginaldo, numa pequena roda de diálogo, daquelas espontâneas, falava sobre a questão da alimentação e do transporte que são nós críticos ou estrangulamentos carecedores de saídas mais sustentáveis, precisando ser discutidos e levados à prática pelos grupos. O poeta defende que esses dois itens devam ser uma responsabilidade de cada grupo como era, em parte, no início do movimento. Cada um produz suas condições para chegar e estar em cada encontro. Parece castigo para quem não dispõe de políticas culturais e sociais consistentes nos municípios ou radicalismo por parte do poeta, mas entendemos que proposições como essas podem servir para refletirmos sobre a construção de autonomia e não dependência dos grupos em relação não só aos encontros do Escambo, mas ao seu fazer artístico onde vivem. Por que não pensarmos numa economia do Movimento Escambo? Como nos sustentamos hoje e o que precisamos para garantir nossa longevidade com decência? Não sei como seria, não sou economista. Mas se pensarmos que a pessoa, a família mais pobre do mundo consegue inventar maneiras para viver, sustentar-se vivo, por que nós artistas populares não aprofundamos o tema e investigamos sobre a invenção de nossa própria economia, fora da lógica de mercado, a partir da experiência do existir de vinte anos? Quais nossas reais potências? Que tecnologias e estratégias de sustentabilidade estão produzindo nossos grupos em seus lugares? Qual o potencial de troca que possuímos? Como desenvolver uma economia, uma produção cultural inspirada nas próprias tecnologias acumuladas pelo Escambo? Na cultura popular há vários exemplos de modos de existir, resistir. Onde estão e como mapear tais experiências? Quantas famílias antigamente passavam o ano produzindo para se manter e guardar algum trocado para ir às festas da padroeira da cidade. Era uma verdadeira produção: plantar, regar e colher para no dia da festa está de roupa nova, sapato novo e alguns trocados para brincar e espraiar sua alegria de interagir com o outro e compor com brilho a humanidade da festa. A lógica era: se preciso ir à festa, gosto e necessito de brincar tenho que criar as condições, trabalhar com afinco para garantir minha presença participante na festa. Como beber nessas fontes? Nós artistas temos o poder da expressão que vale por muitos mercados. A expressão, como diz Amir Haddad, “é uma conquista e não uma dádiva divina. A expressão é uma necessidade absoluta do ser humano e por isso não pode estar submetida a dogmas ou ideologias.” Não seria aí que residiria nosso poder de fogo, nossa potência para tornarmos o mundo e a vida na terra mais leves, sustentáveis e prazerosos. Se somos capazes de recriar o mundo por meio da arte o seremos para inventar uma economia que seja mais favorável às nossas práticas vitais. Portanto, se o escambo é troca e todo mundo quer trocar, mãos à obra que outros escambos estão para acontecer. Entretanto, não basta querer ir aos encontros, é vital que nos façamos significativamente presentes pelo papel que desempenhamos em nossos grupos e pela ação que praticamos para o fortalecimento desse coletivo revolucionário e em pleno voo.

Fortalecendo a ideia de ocupação dos espaços públicos, principalmente as ruas.
Muito embora sem cercear outras possibilidades, não temos como abdicar das ruas como espaço primordial de nossas práticas culturais. Ocupar as ruas é, como diz Amir Haddad, dar-lhe mais humanidade, mais alegria, paz. É torná-la mais pública, menos privatizada e mais democrática. Não podemos aceitar que privatizem as praças, os logradouros públicos. Eles existem para serem lugares de gente feliz, de convívio social.

Deixando o ser artista mais forte
Aqui nos utilizamos das palavras do Ricardo, de Fortaleza, para ilustrar o que o Escambo representa para nós, seja para está chegando pela primeira vez, seja para quem tem anos de estrada:

“OI GENTE LINDA.
Pois é . . . mais um ESCAMBO em nossas vidas.
Muita Arte em toda parte.

Deixa EU contar uma coisa pra VCs.
Esse ESCAMBO com toda sua dificuldade pra mim foi de muita superação.
E é esse o sentido de ESCAMBAR de TROCAR, vc entende realmente o sentido do Movimento. Vc se encontra nele, vc contribui com o que pode.

Esse de Gostoso (São Miguel do Gostoso-RN) mexeu muito com as pessoas que estavam indo pela primeira vez. E mexeu mais ainda naquelas que já estão no movimento há mais tempo.

Uma coisa é certa cada ESCAMBO com suas diferenças, suas semelhanças e suas Historias.

Volto mais fortalecido, pois o ESCAMBO nos faz isso.
Fortalece mais e mais os grupos que dele participam.

E a ideia é sempre continuar ESCAMBANDO pelo meio do mundo, levar esse movimento além do horizonte.

Um Grande abraço pra todos e todas que tornaram possível esse XXV ESCAMBO.
Ricardo Furão – escambista, pastor da chama real e loirim

Paramos por aqui. Ando ainda entre o furor da alegria escambista e a anestesia da tristeza pela perda de um irmão querido.

“Hoje eu ouvi um bem-te-vi[3]
Cantar cantar
Também ouvi o juriti
Dizer que a vida é feito um canto
Quem canta encanta
Então é feliz
É tão bom cantar
Cantar cantar cantar
Tomara que essa gente
Seja assim feliz
Pois sou feliz cantanto”

[1] Lima, Ray. Lâminas. Expressão Gráfica. Fortaleza 2009.
[2] Lima, Ray. Tudo é Poesia Vol. I Queima Bucha 2 ed. Mossoró-RN 2005
[3] Musica de Jadiel Guerra