GESTÃO, ADMINISTRAÇÃO E PROCESSOS DE TRABALHO: A RHS COMO SALA DE AULA DA UNB E ENCONTROS INCIDENTAIS ENTRE FLUXOS DE RHS-NAUTAS
Quem navega pelo oceano da RHS já deve ter percebido que, felizmente, ele vem sendo invadido por ondas heterogêneas de comunicação democrática que, num feliz incidente de fluxos diversos, convergem numa tecedura que eu nomearia: pensar a formação, a gestão e o trabalho para o SUS em seu aspecto de democratização das relações institucionais.
Feliz momento este para a RHS, nossa máquina expressiva do SUS, que mais que sentir, eu vejo sorrindo numa prazerosa convicção de que seus esforços não foram em vão, já que sua missão, ainda que em movimento de constituição permanente, vai se cumprindo.
São assuntos que, embora sem estarem diretamente interligados, como se uns fossem respostas aos outros, se acoplam numa forma de uníssono que vejo como um potente desejo de mudança de nossas insuficiências na Saúde, numa aclamação por abertura de diálogo que nos alimente no anseio de uma construção comum do SUS que dá certo.
Neste mosaico caleidoscópico de tanta coisa importante e potente circulando na Máquina Expressiva do SUS, destacaria 03 temas diversos que vejo convergirem no contexto que expus acima.
1º – A discussão sobre a PNH em mais um de seus controversos movimentos camaleônicos, que tem ganhado pôsteres aquecidos e alimentado debates bastante interessantes, tentando abrir conversa entre a Política de Governo e a Política Pública. Debate que, transbordando a RHS, também ganha reverberação em outras redes virtuais.
2º O potente projeto idealizado e posto em prática por Gustavo Nunes que faz da RHS um auditório acoplado à sala de aula da UNB e que tem colorido nossa rede com pôsteres de alunos do Curso de Gestão em Saúde Coletiva. Fantástica experimentação que nos põe a todos em sala de aula, transversalizando a comunicação, na medida em que somos todos discentes e docentes uns dos outros. Potentes alunos que, entendendo a proposta, dão vida a ela com suas sempre bem vindas manifestações. Experimentação que parece encarnar de forma viva que ensinar não é ensignar, ou seja, prover de signos hegemônicos, como palavra de ordem, no dizer de Deleuze, mas troca intensiva na qual os saberes se transitam e têm transito em polifonia de vozes e entendimentos diversos.
3º Recentemente, ampliando a conversa sobre comunicação democrática e sua experimentação em redes sociais a feliz postagem https://redehumanizasus.net/92008-conversa-imperdivel-para-quem-quer-saber-como-a-internet-pode-ampliar-a-participacao-social-na-construcao-de-politicas-pub.
Na expressão dos alunos da UNB, conceitos como os de administração, gestão, governança, processos de trabalho, vão se imbricando e tentando clareamento num campo de disputas nada fácil, mas que, ao final das contas, vão se encontrando com os outros dois temas, aqui apontados, na insistência com que apostam na abertura das comunicações, em seu aspecto democrático, participativo, como a forma de implementar a gestão em saúde coletiva e, por extensão, a saúde como gestão necessariamente coletiva.
Aterei-me aqui no nó que os alunos apontam entre Administração e Gestão, não no sentido estrito de um esforço acadêmico de definição, mas muito mais como contribuição provocatória inicial, de quem, como também aluno, procura pensar aprendendo na conversa com os alunos. Como Tom Zé, em sua música Tô, eu diria:
Tô bem de baixo, pra poder subir
Tô bem de cima pra poder cair
Tô dividindo pra poder sobrar
Desperdiçando pra poder faltar
Devagarinho pra poder caber
Bem de leve pra não perdoar
Tô estudando pra saber ignorar
Eu tô aqui comendo para vomitar
Eu tô te explicando pra te confundir,
Eu tô te confundindo pra te esclarecer,
Tô iluminado pra poder cegar,
Tô ficando cego pra poder guiar.
Suavemente pra poder rasgar
Com o olho fechado pra te ver melhor
Com alegria pra poder chorar
Desesperado pra ter paciência
Carinhoso pra poder ferir
Lentamente pra não atrasar
Atrás da vida pra poder morrer
Eu to me despedindo pra poder voltar
Eu tô te explicando pra te confundir,
Eu tô te confundindo pra te esclarecer,
Tô iluminado pra poder cegar,
Tô ficando cego pra poder guiar.
Assim, só para tocar no assunto de forma rápida, numa conversa com os alunos, direi que a Administração é uma disciplina acadêmica que tem suas formalizações e suas metodologias, baseada num conhecimento sistematizado, com pretensões científicas e que, a rigor, em termos sociais, Administrador é aquele que possui mandado social através de um diploma legitimamente reconhecido.
Mas, assim como de médico e louco, de administrador todo mundo tem um pouco, pelas necessidades da vida. No entanto, se pensarmos em gestão de saúde, a rigor, Administrador é aquele capacitado para tal através de uma formação não só legítima, mas importantemente reconhecida pela sociedade. Aliás, já ouvimos muitas vezes a asserção de que um dos problemas da gestão em saúde é o de colocar hegemonicamente médicos comandando o processo, quando estes não são administradores. Percebemos, então, um campo de disputas políticas entre formações diversas.
No entanto, para colocar lenha na fogueira, afirmo que nem sempre um bom administrador é um bom gestor e, ao afirma-lo, não tenho como deixar de fazer, resulta que administração e gestão não são a mesma coisa.
Até que ponto a gestão está subestimando os necessários conhecimentos da administração, numa espécie de desqualificação para adentrar um campo demarcado socialmente, de forma que vemos administradores muitas vezes afirmar que gestor é aquele que administra sem mandado social para isto, tornando-se um protagonista suspeito, é outro campo de disputas políticas.
Enfim, para ser bem rasteiro, diria que para além dos conhecimentos necessários do administrador, percebe-se uma dimensão do trabalho que exige um para além desta ciência, como, aliás, já percebemos que, na área de saúde pelo menos, o cuidado exige um para além dos conhecimentos da medicina e, ainda mais, um para além dos conhecimentos de todas as disciplinas envolvidas em separado. Exige algo que tentamos definir como uma transdisciplinarização, ou seja, um esforço conjunto de todos os aspectos envolvidos no cuidado e que nenhuma das disciplinas, por mais legítima e importante que seja, consegue dar conta.
Assim, por minha conta e risco, diria que a gestão, embora possua cursos de formação, também reconhecidos e legitimados, procura dar conta de algo que escapa de qualquer disciplina reconhecida. A gestão seria assim, um gesto, uma atitude, uma disposição de articular os conhecimentos e experiências disponíveis para dar conta de uma atividade real e de seus imprevistos; lacunas vivas resistentes a toda formalização de saberes.
Assim, gestão que vem da palavra gesto, se aproxima de uma outra palavra que faz ressonância: gestação. Gestão é então a atitude de gerir, gestar algo que, embora vivo, não se efetuou ainda no espaço e no tempo. Algo que navega em meio à escuridão, nas águas indeterminadas das disciplinas e que vai ganhando corpo, avolumando-se em meio ao corpo das disciplinas em conjunto e que temos, por necessidades reais, de trazer a luz e dar cuidado.
A partir desta analogia, podemos concluir, sempre com base nela, lembrando que é só uma analogia: a gestão é necessariamente cogestão, pois tenta preencher uma lacuna que nenhuma outra disciplina consegue dar conta sozinha e, por conseguinte, a gestão é sempre transdisciplinar.
A gestão não pode se fazer por ou para, ela terá necessariamente que se fazer com os outros e, portanto, embora necessitando das singularidades, a gestão é sempre uma multiplicidade; a gestão para ser gestão é coletiva, ou não é gestão.
O gesto da gestão gesta ou procura gestar um espaço no qual se tenha tempo para aprender experimentando e, neste sentido, toda gestão é pragmática, é um conhecimento que pode e deve ter seus métodos, mas entendendo que eles devem necessariamente ser experimentados e modificados no calor da experiência viva, no suor do esforço coletivo de buscar os problemas, mas do que uma solução para eles.
E, assim, podemos entender que gestor todos o somos, mas não somos todos administradores. Portanto, a administração, seu cabedal teórico/metodológico é imprescindível também, mas junto com todos os outros que, sem serem administradores no sentido estrito, também administram com seus cabedais teórico/metodológicos os campos a que dedicam suas pesquisas.
Assim, por consequência, um gestor nunca está formado, ele está sempre em formação mas, no entanto, ele é também um formador, na medida em que procura ampliar a capacidade de análise para além de uma dada disciplina, para além de um modo de fazer único e dado de antemão.
E aí, vem aonde eu queria chegar. O que seria então necessário a um gestor. Que atitude esperaríamos de um gestor para reconhecê-lo como tal? Acho que, só para começar ou antes de começar a se dizer gestor, vejo que é imprescindível:
“Parece-me que o que se deve levar em consideração no intelectual não é, portanto, "o portador de valores universais"; ele é alguém que ocupa uma posição específica, mas cuja especificidade está ligada às funções gerais do dispositivo de verdade em nossas sociedades. Em outras palavras, o intelectual tem uma tripla especificidade: a especificidade de sua posição de classe (…); a especificidade de suas condições de vida e de trabalho, ligadas a sua condição de intelectual (…); finalmente, a especificidade da verdade nas sociedades contemporâneas. É então que sua posição pode adquirir uma significação geral, que seu combate local ou específico acarreta efeitos, tem implicações que não são somente profissionais ou setoriais. Ele funciona ou luta ao nível geral deste regime de verdade, que é tão essencial para as estruturas e para o funcionamento de nossa sociedade. Há um combate "pela verdade" ou, ao menos, "em torno da verdade"- entendendo-se, mais uma vez, que por verdade não quero dizer "o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar", mas o "conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder"; entendendo-se também que não se trata de um combate "em favor" da verdade, mas em torno do estatuto da verdade e do papel econômico-político que ela desempenha (FOUCAULT, 1979, p. 13)”.
Ora, o que Foucault denomina intelectual, pela argumentação que faço acima, eu diria que caberia bem como aquilo que deveria se esperar de um gestor. E este combate “em torno da verdade” eu diria que não se pode fazer sem uma outra atitude, contrária a uma escuta surda.
“Estamos chamando de escuta surda àquelas práticas que ouvem sem escutar. O que isto significa? Uma escuta surda se constitui quando no lugar de indagar as evidências que nos constituem como sujeitos, nos deixamos conduzir por estas, reificando-as. Produz-se aí uma medicina das evidências, uma psicologia das evidências, uma enfermagem das evidências que, tendo seus procedimentos dirigidos por naturalizações, pouco consegue captar as singularidades que permeiam o humano, a variabilidade e imprevisibilidade que constitui o vivo. Neste sentido, a escuta acaba sendo reduzida a um ato protocolar, a uma técnica de coleta de evidências, de sinais, ou ainda, a um jogo interpretativo. A escuta surda produz como efeito a tutela e a culpabilização dos sujeitos, uma vez que fala por, fala de, em nome de, no lugar de falar com o outro.
Essas questões nos levam a realçar um outro elemento em nossa discussão e que diz respeito ao especialismo, ao lugar do profissional de saúde no processo de escuta. O discurso competente é aquele que, permeado pela separação entre técnica e política, se outorga como portador de uma verdade sobre o sujeito, sobre o corpo, sobre a saúde. Detentor de um suposto saber (técnico e neutro), ao profissional caberia a análise e compreensão sobre o sujeito, captando suas dificuldades, problemas, necessidades. Ou ainda, permeado por intenções participativas e democratizadoras, caberiam aos profissionais “conscientizar” os sujeitos acerca dos processos que permeiam suas próprias vidas, indicando caminhos. Trata-se, ambas, de práticas que falam pelo sujeito, falam do sujeito, mas não falam com os sujeitos escutando e problematizando necessidades e projetos de vida. O especialismo produz uma escuta surda, por erigir o cuidado como tarefa exclusiva do profissional de saúde, deixando ao usuário o lugar de objeto de sua ação.
Poderíamos dizer que essa escuta permaneceria no campo de uma escuta moral, prescritora de modos de vida, julgadora de práticas, deixando-se conduzir por valores instituídos sem a correspondente indagação destes mesmos valores. Mantém-se, portanto, capturada no plano das formas constituídas. A escuta surda seria, então, aquela que reduz o sujeito a uma suposta identidade, não percebendo que a subjetividade não se reduz a um “eu”, não porta uma essência, pois quando nos conduzimos por essas noções tomamos os desvios, as variações, o que difere, como erros e perturbações a serem corrigidos e controlados, como desequilíbrio a ser contido…
Assim, a formação, o ensinar, dissociados dos processos de intervenção, entendidos como ato de transmissão de conhecimentos, como técnicas a serem aplicadas, produzem sujeitos e modos de existência; produzem escutas surdas. Formatam o escutar como técnica a ser transmitida por meio de um ato pedagógico em que se têm como efeito a repetição do mesmo (HECKERT, 2007, p.6-7)”.
Bem, acho que Foucault e Heckert me ajudam bem a contribuir para minha digressão sobre a gestão, como um alerta para aqueles que entram numa formação em algum tipo de Gestão e que, ao meu ver, Tom Zé dá o tom de que tipo de formação seria esta. Acho que a gestão não pode se tornar uma outra disciplina, um outro especialismo e, portanto, ela não deve competir com a administração, mas toma-la como um entre outros necessários aliados. Não tenhamos, portanto, escutas surdas.
Quanto aos outros dois temas citados, cujos pôsteres encontram-se na RHS, não me alongarei, basta ir até eles e concluir por si mesmo o que eles têm a ver com o tema da gestão e da democratização das relações institucionais e como ganhariam em substância se, como estão fazendo os alunos da UNB, fomentassem a roda de discussão aqui na RHS com todos os protagonistas do SUS participando.
Parabéns alunos, parabéns a todos nós que fazemos da RHS o que ela é.
QUE VENHA CADA VEZ MAIS TODA A POLIFONIA DAS VOZES DO SUS!
FOUCAULT, Michael. Microfísica do poder. (R. Machado, Org. e Trad.) Rio de Janeiro: Graal, 1979.
HECKERT, Ana Lucia C. Escuta como cuidado: o que se passa nos processos de formação e de escuta? In: PINHEIRO, Roseny; MATTOS, Ruben Araújo de. (Org.). Razões públicas para a integralidade em saúde: o cuidado como valor. 1 ed. Rio de Janeiro: ABRASCO/CEPESC, v. 1, p. 199-212, 2007.
Por Pablo Dias Fortes
Belíssima reflexão sobre o entrecruzar de fluxos que singulariza olhares. E de como essa "Máquina Expressiva do SUS" (adorei a expressão!) pode – como de fato tem feito – favorecer esse processo.
Acho que, nesse sentido, os incidentes já são "parte do planejamento" (rs), a trama contingente (e, por definição, aberta) de um agenciamento que, para ficarmos ainda no "vocabulário deleuziano", aposta radicalmente no seu próprio plano de imanência.
Lembrei-me imediatamente também de algumas formulações do Ricardo sobre as redes de afetos/conversações, e de como a disponibilidade de reconhecimento do outro como um legítimo outro acaba por significar, mais que um "dever", um pragmático "poder" em comum.
Enfim: parabéns pelas pinçadas e pinceladas que compuseram esse belo painel de pura alegria!
Abração