Sob o Signo da Insatisfação – Por Gláucia Leal

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Tudo bem? Não se apresse em responder. Está realmente tudo bem? Você de fato se sente satisfeito nos vários setores de sua vida, com as experiências que teve e com as possibilidades para o futuro? Se a resposta for sim, considere-se privilegiado. Claro que desejar expandir os próprios potenciais não é um problema em si – pelo contrário, é até saudável. O que acontece, com frequência, porém, é que as pessoas vivem em profundo estado de insatisfação – consigo mesmas, com os outros e com o mundo. Se, por um lado, paira sobre adultos, adolescentes e até crianças a expectativa silenciosa de que estamos “prontos”, de que temos “repertório” – e por isso a exigência é alta -, por outro lado, numa espécie de formação reativa (defesa descrita por Freud, na qual o que vem à tona é o contrário do que se sente ou deseja), parece haver certa condescendência, refletida no hedonismo, tão presente na contemporaneidade.

Nos consultórios de psicólogos e psicanalistas, cada vez mais pacientes se queixam da sensação de que é impossível dar conta de tantas demandas, mesmo que pareçam, num primeiro momento, bastante promissoras – como manter contato com pessoas interessantes, aprimorar-se profissionalmente, assistir aos filmes indicados ao Oscar, ler os livros “indispensáveis”, fazer as viagens ou ir às festas imperdíveis, experimentar os pratos dos restaurantes da moda, acompanhar notícias e atualizações do Facebook, responder à lista de e-mails o mais rápido possível. Essas atividades podem ser úteis e prazerosas, mas como quase tudo que se refere ao universo psíquico, a questão não é o que, mas o quanto.

GENTE QUE VIRA COISA

Nesses tempos sombrios, o contato com a vida se banaliza. Não raro, fotografar e postar nas redes sociais a imagem de uma paisagem parece mais urgente que simplesmente apreciar a beleza do lugar e conectar-se com o que essa vivência inspira. Tentamos ser onipresentes. O tempo todo acompanhamos notícias e veiculamos mensagens, imagens e vídeos. E isso só evidencia a impossibilidade de dar conta de tudo o tempo todo: inevitavelmente, algo escapa. E aí vem a ansiedade – parece que estamos sempre perdendo alguma coisa, não temos sequer clareza do que seja.
“Numa sociedade marcadamente voltada para o consumo, na qual vale mais o ter que o ser, as PESSOAS ADQUIREM STATUS DE COISA e, nesse processo de reificação, passam a ser tratadas (e a ver a si mesmas) como ‘produtos’ que, para serem escolhidos, merecedores de um lugar, precisam ser perfeitos, seja no trabalho, nos grupos em geral e até nas relações amorosas”, diz a psicanalista Erane Paladino, mestre em psicologia clínica e professora do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo.

(…)O nivelamento e a massificação defragram a falta de perspectiva de transformação com pouco espaço para o singular. Drogas (mesmo as farmacológicas), misticismo e culto ao corpo perfeito levam à idealização de uma felicidade inatingível – daí vivermos numa sociedade tão depressiva. Além disso, a constante necessidade de fazer escolhas diante de enorme gama de possibilidades dá origem à sensação de insatisfação – afinal, por mais que tenhamos alcançado, ganho, visto ou vivido, prevalece a impressão de incompletude e a certeza de que muito não se pode alcançar. Em meio a tantos estímulos, a busca de bem-estar imediato dificulta o contato com as verdadeiras necessidades, não se desenvolve o espaço necessário para a constituição da subjetividade.

A ARTE DE “FAZER CABER”

Curiosamente, a ausência de sentidos não vem do vazio, mas do excesso – é justamente a abundância de estímulos que deflagra o esvaziamento. O sociólogo polonês Zigmunt Bauman (livro Modernidade líquida), (cita) o filósofo francês Paul Valéry, escrito no início do século passado: “Pode a mente humana dominar o que a mente humana cria?”.

A vida parece ao alcance dos dedos, a internet trouxe o mundo para a tela dos computadores, celulares, Ipad e, salvo exceções, não precisamos ir pessoalmente ao banco ou ao mercado. Um ponto a ser olhado com atenção, porém, é que a noção de tempo mudou – e não necessariamente para melhor. Enfrentamos diariamente o desafio de “fazer caber” tarefa nas horas do dia e nos sentimos quase sempre atrasados, aquém daquilo que nos é oferecido. A sensação de não sermos bons o suficiente, também se aplica às habilidades cognitivas e à imagem corporal.

(…)De fato, a insatisfação com a própria imagem costuma ser desenvolvida ainda nos primeiros anos quando a criança não se sente suficientemente querida e respeitada em sua individualidade. As dificuldades podem ser agravadas pelas demandas da moda, da mídia e das crenças. Mas quem filtra esses valores são os adultos afetivamente próximos da criança. É muito provável, porém, que adultos descontentes, projetivamente, vejam nos pequenos os defeitos que enxergam em si mesmos ou, tão prejudicial quanto, se relacionem com as crianças de maneira idealizada.

DA INFORMAÇÃO AO SABER

É compreensível, portanto, que se propague tanto a idolatria às celebridades. (…)A antropóloga Paula Sibilia, doutora em saúde coletiva escreveu: “Ser visto e ser famoso equivale, cada vez mais, a ser alguém. Mesmo que não exista motivo algum para estar à vista de todos, e embora essa celebridade não tenha nenhum sentido exterior a ela própria.” (…) Paula ressalta que, em virtude dessas transmutações, a espetacularização da vida privada mais banal tem se tornado habitual – e desejável. “Já não é mais necessário ter feito algo extraordinário para ter acesso ao cobiçado pódio da fama, nem sequer dispor de alguma qualidade peculiar ou algum conhecimento valioso; hoje, praticamente todos temos à nossa disposição um artesanal de técnicas para estilizar a personalidade e as experiências”. Mas isso não basta.
(…)quando não temos opções externas do que ver, sentir, ouvir, tocar, provar, tendemos as nos sentir entediados, vazios.
(…)Um dos efeitos colaterais de acesso fácil demais à informação é a preguiça de pensar – até porque informação, pura e simples, não é suficiente. O mais importante é saber como contextualizar e usar dados. O que faz diferença é o “conhecimento tácito” – não basta ter a receita do doce, é necessário saber fazê-lo de forma que fique saboroso.

Há um tipo de conhecimento que só se dá por meio de reflexão, concentração, da experiência pessoal, algo que requer investimento de energia – e tempo. Para isso, entretanto, é preciso espaço psíquico e a possibilidade de exercitar a habilidade de descobrir os próprios tempos. Em vez de correr para não perder nada, o mais indicado talvez seja trocar a quantidade pela qualidade – consumir menos informação e se deter com atenção naquilo que recebemos, pensar a respeito, fazer conexões internas que propiciem a construção e a apropriação do saber. E isso sim nos diferencia, nos faz únicos e talvez menos angustiados e insatisfeitos.
Não por acaso tanta gente tem buscado formas mais autênticas de viver. Seja por meio do tratamento psicanalítico, da meditação ou do estudo das filosofias orientais milenares, por exemplo. Todas essas experiências têm em comum: propõem que as pessoas revejam seus próprios tempos, aprendam a reconhecer as repetições automáticas que promovem tanto sofrimento e as retiram do lugar de protagonistas de sua própria vida. Possivelmente, o que há de mais precioso para saber é como se manter por inteiro no momento presente.

*Extraído de “Sob o Signo da Insatisfação”, escrito por Gláucia Leal na “Mente e Cérebro” (maio/2013) – na íntegra.

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