QUANDO AS ESTRADAS SÃO PARA A MORTE
O belíssimo ensaio do Erasmo Ruiz aqui na rede (https://redehumanizasus.net/92150-quando-a-morte-abre-estradas) sobre a presença da morte e sua comoção, principalmente quando acontece a crianças, levou-me ao desejo de também ensaiar sobre outras mortes, atualmente frequentes, que muitas vezes esquecemos ou aceitamos sem nos indignar tanto, como se fossem naturalmente processos necessários à sanha civilizatória, humana demasiadamente humana, que desqualifica vidas e, no dizer de Agamben, as tornam marcadas como o Homo Sacer do direito romano: vidas matáveis, mas não sacrificáveis.
Assim, o pobre Aylan com seu pequeno corpo que jaz no beijo frio das águas da Turquia, como em uma última lágrima de esperança que, sem poder ser realizar, se transforma no oceano de todos os desventurados, reflete-se em nós como o olhar de um pai desolado, ante o peso de ver todo o futuro esmaecer e escorrer, como areia ao vento de um humanismo canhestro que salva a sua pele permitindo que a dos outros corpos, esfolados, aqueçam sua alma gélida cheia de humanismo cáustico.
Aylan, em sua alma de anjo, jaz morto em seu corpo talvez para nos lembrar de que o que precisamos não seja defender-nos contra os outros, não nos preocuparmos com eles, mas nos ocuparmos intensivamente para que suas vidas não se percam. Como o Homo Tantum de Deleuze, Aylan se transforma em uma vida, qualquer vida, a nossa vida e, incrédulos e acomodados, continuamos parados e resignados, até que a ceifa se abata sobre nossas cabeças. Quem jaz nas areias da Turquia somos todos nós.
Todos nós que marchamos com os índios Guarani Kaiowás no Mato Grosso do Sul, numa fuga da fuga, porque sabem que, sem luta, todas as estradas são para a morte. Homo Tantum que, minorias e desapercebidos, agradeceriam se nos tornássemos suas armas e gritássemos UM BASTA A TUDO ISTO.
Não basta todo o genocídio colonizador! A ganância e o lucro continuarão capitalizando nossas vidas como moedas de pouco valor, frente aos seus interesses assassinos? Não são os índios apenas os que morrem, somos todos nós que perdemos a vida, em cada bala perdida, em cada omissão de socorro em cada enregelante silêncio conveniente.
Também somos todos nós quem fugimos da Síria, para sermos abocanhados pelo oceano, como mais uma tragédia corriqueira, ou, ainda pior, vencendo o oceano, sermos abatidos na dureza humanista de fronteiras construídas numa abstração de vontade de propriedade de vidas em prol de suas próprias vidas.
Lucidamente, a escritora senegalesa Fatou Diome (https://www.facebook.com/CanalCurta/videos/vb.334259466672877/855607741204711/?type=2&theater) fala de imigração e racismo num debate na França: “… é preciso ver, há uma minoria que vem, há mortos de fato… Eu hoje quero expressar minha indignação pelo silêncio… Essa gente que morre nas praias, e eu estou medindo minhas palavras, se fossem brancos, o mundo estaria tremendo. São os negros e os árabes. Então, quando eles morrem, eles custam menos”. No Brasil, são os índios.
“Logo, se alguém quisesse salvar as pessoas…alguém o faria… Como se o “deixar morrer” fosse uma ferramenta de dissuasão…”, continua Fatou.
Mas como dissuadir alguém que foge da morte esperando encontrar vida? Como inibir o êxodo, aventurando-se na estrada, se atrás se está deixando a certeza da morte, sem saber, que a frente, apesar da esperança, corre-se para o seu abraço? Abraço que, enquanto estivermos silenciosos, seremos nós todos a ofertar.
Lúcida, Fatou adverte: “você não ficará sozinho como um peixinho dourado dentro da fortaleza europeia… Nós vivemos em uma sociedade globalizada onde um indiano ganha sua vida em Dakar, um cidadão de Dakar ganha sua vida em Nova York. Uma pessoa do Gabão ganha sua vida em Paris. Você gostando ou não, isso é irreversível. Portanto, vamos achar uma solução coletiva ou então mude-se da Europa porque eu tenho a intenção de permanecer aqui".
Eles, imigrantes e índios, podem estar sozinhos em sua luta real, mas é uma solidão que pouco a pouco nos pegará também em nossa solidão, pois em algum momento de nossas vidas, a qualquer momento, podemos também ser minorias matáveis e não sacrificáveis.
A morte, a velha ceifeira, anda solta e conta a sua história e, como no filme “A Menina que roubava livros”: “quando a morte conta sua história, você tem que parar para ouvi-la”. E, como diz a morte no filme: “Está aí uma coisa que nunca saberei nem compreenderei – do que os humanos são capazes”.
Assim, talvez, diante de Aylans, Sírios e Guaranis não baste tão somente a desolação compungida de uma impotência. Ainda no livro em questão, que fala da conversa de uma menina com a morte, há talvez um alerta: “Não ir embora: ato de confiança e amor, comumente decifrado pelas crianças”.
Portanto, fiquemos e lutemos contra este estado de coisas, gritemos de indignação a pleno pulmões um BASTA! Porque, afinal, todas as minorias estão em devir criança, principalmente quando, órfãs de oportunidades dignas, lançam-se nas estradas em busca do colo da mãe esperança.
Ora, ninguém espera aquilo que já encontrou, as estradas, portanto, não são escolhas de aventuras, mas necessidade de continuar vivo.
Que saibamos fazer delas, como pudermos, estradas para a vida, não estradas para a morte.
Se as guerras estúpidas engendram a morte por onde passam,
FRONTEIRAS FECHADAS AO AFÃ DA VIDA SÃO ASSASSINAS!
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
https://redehumanizasus.net/90269-nau-dos-imigrantes-reedita-a-stultifera-navis-da-idade-media#comment-32089