Uma clínica do impossível é possível?

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Fernando Diniz, sem titulo, 1953. Óleo sobre tela. Acervo Museu Imagens do Inconsciente. 

"A multidão, concebida como um corpo biopolítico coletivo, nos seus poderes de constituir para si comunidades múltiplas, desenha assim novas possibilidades de relação com a alteridade. Para dizê-lo em termos mais filosóficos: não mais pensar segundo a dialética do mesmo e do Outro, da Identidade e da Diferença, mas resgatar a lógica da Multiplicidade" Peter Pal Pelbart, Vida Capital, p. 126.

A sociedade contemporânea moderna (ou talvez, pós-moderna, líquido-moderna, globalizada ou como cada um bem entender) vêm caminhando para novos fluxos de desejos e intensidades que colocam os sujeitos em diferentes contextos de produção de sua própria vida. Por exemplo, este pensamento que será construído daqui em diante, é um pensamento que surge antes de surgir (?!!!) mas, apresenta uma singular conexão entre mim e Bia que também escreve esta síntese.

A história começa quando me deparo com o livro Clínica Peripatética do Antonio Lancetti a caminho de apresentar o meu projeto de pesquisa sobre identidade do sanitarista no Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva em Goiânia onde fui construindo um novo pensamento sobre identidade a partir das páginas que havia lido. Ainda, começa com uma conversa sobre pós graduação via whatsapp com Bia e algumas intencionalidades (minhas) e outras de cunho particular de ir para Índia. Aí, Bia mostra em uma foto que está lendo o livro A Gata de Dalai Lama dizendo que vai para lá perto também.

Disse ainda que ela já tinha um tema para o mestrado dela: o machismo na Índia e as implicações para a concepção da saúde das mulheres no século XXI, uma análise comparativa com o machismo no Brasil. Rapidamente defendi que este trabalho é a melhor dissertação de pós graduação do mundo e que eu estava bastante entusiasmado em continuar minhas leituras sobre a clínica peripatética. Bia disse que é uma leitura apaixonante, mas, desafiadora. E que ela não consegue imaginar a possibilidade dessa prática clínica nos dias de hoje.

Das poucas dez páginas que li tive o mesmo sentimento que Bia. E que essa clínica é uma “clínica do impossível”, mas a relação que Lancetti tinha com seus pacientes, foi possível criar uma “clínica de vínculos”, esta, ainda é possível. Contudo, para chegarmos nessa “clínica do impossível” precisamos acabar com o modelo biomédico. Bia vai dizendo pelo whatsapp que é mais do que uma clínica de vínculos, é uma clínica territorial, completamente pautada na produção constante de ressignificações e de subjetividadeS.  

É desta história que decidimos escrever sobre o cuidado em saúde…

Passear, ir e vir conversando

“Seja pela escuta do paciente e de seus familiares, ou somente do paciente em seus lugares próprios, sem descaracterizá-lo nem diminuí-lo. Esta clínica está muito mais preocupada com a preservação da singularidade do indivíduo”. (Lancetti, 2006).

Na nossa citação lá em cima sobre Vida Capital, Peter diz que precisamos resgatar a lógica da multiplicidade, mas como resgatar? E que multiplicidade é essa? Quando colocamos em discussão a prática clínica dos profissionais de saúde no cotidiano do seu trabalho, onde cabe a multiplicidade do outro, da identidade e da diferença?

A saúde é um processo inerente à vida, é, também, um dos pilares mais importantes de sobrevivência e de proteção à vida. E conforme vamos vivendo, experimentando, vivenciando as diversas experiências sobre a nossa saúde, vamos criando ideias, conceitos e teorias sobre nós mesmos. Não é um processo a parte da produção de saúde, os/as trabalhadores/as possuem um olhar mais técnico do processo saúde-doença-cuidado, os/as gestores/as olhar mais político e as pessoas olhar mais vivido sobre si, além de todos/as possuir um olhar através da sua aprendizagem vivenciada.

Complexando ainda mais, estes olhares se misturam entre trabalhador/gestor, trabalhador/trabalhador, trabalhador/pessoa, gestor/trabalhador, gestor/gestor, gestor/pessoa, pessoa/trabalhador, pessoa/gestor, pessoa/pessoa. O modo como cada um vivencia a experiência é diferente do outro, ou seja, cada um possui uma identidade, cada um se coloca no mundo de determinado jeito, pensa diferente, possui um tipo de religião, age de um jeito e de outro, etc…

E nesse sentido, o modelo biomédico, médico-centrado, biologicista vêm atuando de outra forma que não permite a multiplicidade dos encontros e trocas entre os diferentes atores que fabricam o SUS no cotidiano. Na prática, vamos nos deparar com profissionais de saúde quando buscamos ajuda para algum enfrentamento de determinada situação (ou situação de saúde), trabalhadores que não olham nem na nossa cara, nos atendem de cara feia… Enfim, todo mundo já passou por uma experiência ruim quando foi buscar qualquer tipo de cuidado, seja no público ou no privado.

O modo como é conduzido estas relações não é “culpa” dos profissionais de saúde. O buraco é muito mais embaixo. É o modelo biomédico que vêm se fortalecendo desde o século XIX com foco na cura e na doença ao invés da promoção da saúde, bem como prevenção e proteção e a discussão dos determinantes sociais da saúde. E este modelo faz com que temos baixa orientação para o SUS na formação e a pouca relação com o outro no atendimento. 

A formação em saúde está muito longe daquilo que acreditamos quando pensamos em um conjunto de habilidades e competências que reconheça a pessoa para além de um corpo fisiopatológico. O papel das universidades está bastante longe das diretrizes norteadoras do SUS. A universidade está formando empreendedores da área da saúde. Os alunos estão interessados em abrir sua clínica particular, fazer intercâmbio para outro país, produzir pesquisa cientifica – que no contexto do SUS – não faz nenhum sentido.

Também, não é culpa do aluno. Mas, são problemas estruturais que impedem uma formação comprometida com as necessidades sociais em saúde. Este modo de fabricar profissionais de saúde nas universidades obedece a uma lógica de subjetividade capitalística. Esta subjetividade, para Guattari e Rolnik (2005) funciona no coração dos indivíduos, em suas formas de pensar, de perceber o mundo e de se relacionar com uma sociedade suporte das forças produtivas. Hoje em dia, as forças que administram o capitalismo, entenderam que é mais importante produzir subjetividade do que qualquer outra produção.

Nesse sentido, a precarização das relações de trabalho atravessam os profissionais de saúde no cotidiano de suas vidas como o aumento das situações de risco no trabalho, do número de acidentes e adoecimento destes/as trabalhadores/as e da rotatividade destes profissionais que comprometem a qualidade da atenção em virtude da vinculação e das condições de trabalho. 

Queremos dizer que não é culpa do profissional de saúde e do aluno de graduação da área da saúde, mas, há de entender que existem disputas societárias maiores no que concerne o cuidado em saúde. E que o modelo biomédico, ainda, possui uma lógica de forma(ta)ção muito longe das pessoas. Contudo, estamos vendo por aí iniciativas que dão certo. Por mais que sejamos anti-hegemônico, o hegemônico nos engole. Mesmo assim, não barra a nossa potência de pensar e refletir um trabalho em saúde integral e resolutivo.

Portanto, a clínica do impossível é possível quando podemos “parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar (…) abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço” (BONDIA, 2001).

São essas as questões que nos atravessam ao pensar sobre o modelo biomédico, a clínica e o cuidado.

Allan e Bia.

Referências

BONDIA, JL. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Palestra proferida no 13º COLE-Congresso de Leitura do Brasil, realizado na Unicamp, Campinas/SP, no período de 17 a 20 de julho de 2001.

GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. 7ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.

LANCETTI. A. Clínica Peripatética. Hucitec, São Paulo, 2006. 

PELBART, Peter Pál . VIDA CAPITAL- Ensaios de biopolítica. 1. ed. São Paulo: Iluminuras, 2003.