as bioidentidades em questão

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Rossano Cabral Lima, psiquiatra, discute a tese da construção das bioidentidades hoje, mais especificamente o transtorno de déficit de atenção com ou sem hiperatividade como um avatar identitário para milhares de crianças. A introdução do livro já nos seduz de cara pela delicadeza do olhar atento às armadilhas do pensamento que reduz algo tão complexo e rico como as subjetivações a mera emergência do biológico.

Veja aqui:

Nos últimos anos, a descrição de uma série de condutas, afetos e mal-estares humanos vem sofrendo um progressivo deslocamento de sentido. A pluralidade de abordagens, outrora presente quando se tratava de explicar as vicissitudes individuais, tem sido solapada por concepções fisicalistas, que tendem a reduzi-las a sua dimensão biológica. Até meados do século passado, tais concepções disputavam a hegemonia com outras que se originavam em diferentes campos e que utilizavam outros vocabulários. Dessa forma, os comportamentos que traziam desconforto a si e a outros podiam ser considerados como tendo causas médicas, mas também podiam ser tomados como efeitos da ação insuficiente ou inadequada de instâncias como a família ou a escola, da falta de obstinação e vontade ou de conflitos interiores. Hoje, explicações psicológicas, sociológicas, pedagógicas ou oriundas da moral leiga são dispensadas como equivocadas e "anticientíficas", sendo substituídas, especialmente, por outras que localizam no corpo as razões dos dissabores experimentados na vida. Embora esse movimento não se restrinja aos fenômenos tidos como desviantes ou psicopatológicos, o campo psiquiátrico tem sido um dos lugares privilegiados nos quais essa tendência aparece. Nele, uma categoria nosológica tem se destacado pela rapidez com que vem saltando dos ambientes médicos para outros recantos da vida cultural e social: o Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDA/H). Se, a princípio, seu conhecimento era restrito a setores da comunidade psiquiátrica, essa entidade passou, especialmente a partir dos anos 90, a influenciar o raciocínio clínico de outros especialistas e a fazer parte do vocabulário cotidiano de professores, pais e outros adultos. Crianças anteriormente tidas como "peraltas", "maleducadas", "indisciplinadas" ou "desmotivadas", e adultos que se consideravam "desorganizados" e "irresponsáveis", começam a ser tornados como acometidos por uma disfunção nos circuitos cerebrais, possivelmente de origem genética, que provoca uma deficiência ou inconstância na atenção e um excesso nos níveis de ação. Paulatinamente, a experiência de si e a identidade pessoal passam a ser contaminadas pelo reconhecimento, nos critérios diagnósticos do transtorno, de novas leituras para antigas dificuldades pessoais."

 

Um trecho de Aldous Huxley é evocado para termos a exata dimensão do que é uma bioidentidade. Que belo achado:

– Todos me dizem que sou extremamente pneumática – disse Lenina em tom pensativo, acariciando as próprias pernas.

– Extremamente. – Mas havia uma expressão de dor nos olhos de Bernard. "Como carne", pensou.
(…)
– Você me acha bem feita? – Novo sinal afirmativo.

–Sob todos os pontos de vista?
 

– Perfeita – respondeu ele em voz alta. E, interiormente: "é assim que ela encara a si mesma. Não se importa de ser somente carne".
 

Aldous Huxley (1982), Admirável mundo novo