Pra não dizer que não falei das flores

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Durante o carnaval, estive visitando minha irmã e sobrinhos na bela cidade de Martins, região serrana do RN. Ainda enfeitiçada pelo azul, pelo verde da serra e pela rebeldia das flores de todas as cores que enfeitavam o trajeto, sentei-me junto a ela na mesa da cozinha, onde me esperava com café quentinho e deliciosas tapiocas.
Conversamos sobre sua vida de “médica do PSF no interior” sendo interrompidas de vez em quando por uma e outra mulher que chegavam à sua casa no sábado de carnaval acompanhadas do filho doente ou um pai idoso desidratado. Ela trabalha na unidade mista de Serrinha, município de cinco mil habitantes situado a seis quilômetros de Martins, mas acaba atendendo também em casa quando necessário.
Contou-me sobre a exaustiva “demanda” de atendimentos que beiram os sessenta por dia e adentram à noite; falou-me de sua perplexidade ao chegar ao município de serrinha e perceber tantos casos sérios de exclusão, reclusão e confinamento de “pacientes” tidos como portadores de transtornos mentais.
Seguem, resumidamente, alguns dos seus relatos:
Lírio, 42 anos, há vinte anos só sai de casa para o hospital psiquiátrico de outra cidade, onde já passou por três internações.
Acácia tem 38 anos, sofreu abuso sexual na infância. Desde então, vive confinada em uma rede sendo levada apenas para a igreja. Olhar de quem se sente ameaçada o tempo todo, rejeita qualquer contato físico e as únicas palavras proferidas repetidamente para quem tenta dela se aproximar, são: “sai daqui”
Narciso, belo garoto de 14 anos, olhos claros, alto, cabelos lisos e pele muito branca, foi diagnosticado na infância como “hiperativo”; aos poucos, foi sendo isolado em decorrência de seu “mau comportamento”. Apresentando-se a cada dia mais agressivo, a ele foi destinado um canto da casa entre grades onde recebe o alimento e vegeta entre seus próprios dejetos.
Antúrio, 30 anos, passa os dias vagando no quintal da casa e dorme no galinheiro; ninguém consegue convencê-lo a tomar um banho ou mesmo cortar os pelos da crescida barba que invade toda a sua face.
Relata que aconteceram "algumas mudanças", apesar das imensas dificuldades.Começou visitando as famílias, conversando, juntando-se à equipe de agentes de saúde e enfermeira para tentar retirar estas pessoas do isolamento. No seu próprio carro, vez ou outra convencia, depois da visita domiciliar, um destes “pacientes” para uma volta pela cidade. Assim, conseguiram que todos participassem da campanha de combate à dengue: uma boa oportunidade para sair de casa passeando com faixas e cartazes junto à equipe, no “trenzinho da alegria” – vagões puxados por trator que conseguiram com a prefeitura.
Recentemente, viu no grupo tecendo redes RN a divulgação de uma chamada para Seleção de Projetos de Arte Cultura e Renda na Rede de Saúde Mental. A equipe se empolgou para inscrever um projeto. Pensou, inicialmente, em uma padaria, mas não havia local, tinha que ser algo mais prático. Pensou em utilizar o imenso espaço vazio ao redor da Unidade Mista. Surgiu a idéia de plantio de frutas, mas logo desistiram, ia demorar muito a colheita, tinha a questão da época, estação…Havia o terreno, o clima frio da serra e a vontade de fazer diferente. Foi assim que chegaram à decisão: tinha que ser plantio. Plantio de flores!
Nome do projeto: Pra não dizer que não falei das flores. Projeto aprovado. Um técnico da EMATER explica sobre o tamanho das covas, a distância entre elas, os melhores adubos e o tempo de florescer de cada muda.  À equipe, juntaram-se o conselho tutelar da criança e do adolescente, os agentes comunitários, a assistente social Daniela, a psicóloga Marineide, a enfermeira Emanuele, Edson – coordenador do CRAS e os principais parceiros: os “portadores de transtorno mental” e seus familiares.
Há quarenta e cinco dias, todos visitam “o roseiral” (é assim que é chamado o pátio do hospital agora) duas vezes por semana. Plantam novas mudas em novos canteiros e conferem o que foi plantado. Conversam pouco ainda. Portando enxadas, luvas, regadores, eles sorriem ao revolverem a terra e já não se assustam quando suas mãos se tocam.
Debaixo do cajueiro, fazem uma pausa para dividirem os lanches.
De dentro do consultório, entre um atendimento e outro, minha irmã Michela contempla os canteiros floridos pensando que sem eles nunca saberia que Anturio toca violão e nem conseguiria que Narciso fosse ao dentista.
Quando alguém diz: “tá lindo, mas acho que não vai dar renda,” ela responde: “Não faz mal; o importante é sairmos do lugar. Depois plantaremos nas praças e nas ruas.”