Os sentidos do (re)nascer e do morrer e o diabetes (viver ou morrer, eis a questão)

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Desde que fui diagnosticada com diabetes tipo 1 em 1986, aos 9 anos de idade, recebi orientações sobre os riscos que a doença não tratada poderia me trazer. Ouvi muitas histórias – de médicos, profissionais de saúde e amigos dos meus pais – sobre pessoas que não se cuidaram e que morreram jovens com deficiências múltiplas em função das complicações do diabetes mal controlado.

Assim, e como já a partir do segundo ano com diabetes tive uma complicação (catarata nos dois olhos), minha perspectiva de longevidade era muito baixa. E depois que passei dos vinte anos de idade (e dos dez com diabetes), com uma nova complicação – retinopatia, comecei a sentir angústia a cada comemoração de aniversário, que mais me lembrava o caminho da morte que o percurso da vida. Relatei essa experiência em 2014 no texto “Diabetes e o medo da morte (ou da vida?)“.

Se por um lado a minha morte precoce era uma ideia presente, por outro lado o sentimento de tristeza pela perda do meu pai e da minha mãe no futuro se fazia totalmente ausente, porque sempre achei que eu partiria antes deles. De uma certa forma, o diabetes era o meu “salvo conduto” para não enfrentar a ideia de provável perda de pessoas queridas, experiência natural da vida qualquer um. Menos da minha (assim eu achava).

De uns anos pra cá, entretanto, comecei a sentir que minha vida não se encerraria assim tão rápido quanto eu imaginava. As complicações do diabetes que vieram com o decorrer do tempo de diagnóstico (30 anos de diabetes), embora tenham me trazido algumas limitações – a neuropatia me impede de realizar atividades físicas de alto impacto, por exemplo – também incentivaram comportamentos mais saudáveis, como a prática regular de exercícios (aeróbicos de baixo impacto e musculação) e mudanças na alimentação. Se perto dos 30 anos de idade eu achava que não os ultrapassaria, agora que me aproximo dos 40 considero que tenho um longo caminho ainda pela frente.

Todavia, o tempo não passou apenas para mim, passou também para as pessoas que amo. Renasci ao ultrapassar os 30 anos de idade mas, sobrevivendo, acabei matando meu pai e minha mãe, porque agora a ideia de que vou perdê-los um dia se torna provável. 

Lidar com a sensação da própria morte (mesmo viva) não é simples, mas enfrentar a ideia de possível morte das pessoas amadas, mesmo que num futuro mais distante, é igualmente tormentoso.

Logicamente, já havia descoberto na infância que isso aconteceria, que meu pai e minha mãe um dia morreriam. De certa forma estou revivendo esta fase, com uma sutil diferença entre saber que eles se vão, e pensar que continuarei presente quando eles estiverem definitivamente ausentes. Na minha visão era eu que me ausentaria antes de todos. A saudade seria uma dor da minha família, e não minha.

 
Tela “Cronos devorando seus filhos” de Goya
 
Desde 1997, quando me mudei de São José dos Campos para São Paulo, eu e meus pais moramos em cidades diferentes. Sinto uma falta enorme de tomar um café com a minha mãe ao fim da tarde, como algumas amigas fazem com suas mães. Às vezes passo meses sem abraçar meu pai. Mas todos os domingos converso com minha mãe por skype, e no fim da tarde das segundas e quintas-feiras converso com meu pai. 
 
A partir desse novo paradigma de longevidade, comecei a sentir mais intensamente a importância desses momentos para mim. E me alegrei com a possibilidade de cuidar do meu pai e da minha mãe, e retribuir os cuidados que até hoje me dirigem, experiência que na minha expectativa original não se mostrava viável. 
 
No último ano, no mês de dezembro que passou, mês do meu aniversário, não fiquei remoendo a angústia da morte em vida com o diabetes, porque não tenho mais esse sentimento, substituído por uma certa tristeza de um dia a falta do café e do abraço ser definitiva. Passei o natal com meus pais na praia. 
 
Lembrei meu pai de tomar seus remédios e ele me fez companhia para tomar cerveja. Assei peixe e fiz o feijão, ensinando à minha mãe como deixar o caldo grosso, e ela me ensinou como fazer o molho da salada, enquanto preparávamos o almoço juntas. E até reclamei com minha mãe quando, durante um passeio, ela se fixou num bate-papo do whatsapp ao invés de conversar comigo. 
 
Passei a semana como se fosse a última ao lado deles, mesmo sabendo que não era. Assim, quando ela (a última vez) realmente chegar, sentirei que a presença dos momentos vividos intensamente juntos pode ser igualmente ou mais potente que a dor de não tê-los mais ao meu lado.
 
Desfruto em abundância de sentimentos a presença de meus pais na minha vida, pois “Tudo agora mesmo pode estar por um segundo”. Essa é minha nova dor de viver.