Oguata Pyahu e a Residência Multiprofissional em Saúde Indígena: Um novo Caminhar no desafio de SUStentar
Mba’ eichapa[1]!
“Um dia em profundo sono, o SUS lhe apareceu
Foi logo se apresentando e explicações lhe deu
Que o SUS não é do governo, que o SUS também era seu […]
João então respondeu eu tô gostando de ver e o SUS lhe disse: tem mais
Melhor ainda vai ser, se equipes e usuários tentarem se conhecer
Então João acordou meio sem acreditar, mas estava decidido, não custa nada tentar
Se o SUS pediu ajuda, todo mundo tem que dar”
(BRASIL, 2003).[2]
Nasci no interior de São Paulo, neta de paulistas e nordestinos, vindos do estado de Alagoas e Bahia. Sempre estive em meio ao diferente: ouvindo histórias, sotaques, gírias, saboreando temperos e lembranças… Cordéis contados de um lugar que ainda não conheci, por pessoas que lá viveram e que traziam até mim os sonhos do sertão e de meus antepassados. Não imaginava que continuaria esta caminhada intercultural com tanta intensidade.
Acabo de concluir minha caminhada na Residência Multiprofissional em Saúde (RMS), com ênfase em Atenção à Saúde Indígena em Dourados/MS, Programa de Pós Graduação da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Trago aqui, meu trabalho de conclusão de curso com o título “Oguata Pyahu e a Residência Multiprofissional em Saúde Indígena: Um novo Caminhar no desafio de SUStentar”.
Na UFGD, a RMS teve início em 2010, incluindo as especialidades de Enfermagem, Nutrição e Psicologia. O Programa busca contemplar a integralidade por meio da ação multiprofissional entre as áreas no contexto do SUS, através das ênfases em Atenção Cardiovascular e Atenção à Saúde Indígena. Residentes, Tutoria e Preceptoria compõem aulas, projetos, apresentações e demais espaços de mobilizações, no desafio de conciliar teoria e prática em saúde, contemplando o objetivo da Educação em Serviço, diminuindo fragmentações entre o pensar e o fazer, do ser e do estar, na possibilidade de “tornar-se”.
A questão indígena ganha notoriedade em todas as vivências, essencialmente através de setores marcantes como a maternidade e a pediatria do Hospital Universitário, e caminhando junto às equipes da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), Casa de Apoio à Saúde Indígena (CASAI) e Hospital e Maternidade Porta da Esperança-Missão Presbiteriana Caiuá. Esses são campos de prática externos, com um acesso maior ao território de tal população. Para tanto, as reflexões passeiam pela Antropologia, Interculturalidade, História, Cosmologia, Territorialidade, concepções de saúde, entre outras costuras.
Tendo respirado o processo de participação social no Brasil desde anos anteriores da RMS, hoje vivendo os desdobramentos de tais mobilizações, percebo o “cuidado” como um Encontro. Deslocando-me ao Encontro com os Kaiowá e Guarani, conheci suas histórias e mitos de origem, o que aproximou nosso caminhar, crenças e movimento, onde minha mobilidade na RMS se transformou em mobilização.
O “caminhar” na RMS, possibilitou conhecer o que os indígenas das etnias Kaiowá e Guarani chamam de Oguata (caminhar), que permeado por tal experiência descobri poder chamar de Oguata Pyahu, um novo caminhar, que traz a inspiração neste relato. Para isso, meus ouvidos ficaram constantemente sensíveis às falas que soavam nos corredores, estradas, comunidades tradicionais, salas, quartos, reuniões, eventos científicos, atendimentos e demais espaços por onde caminhei.
Nesse sentido, aproximo o Oguata Pyahu e meu desafio de “SUStentar” como uma nova forma de caminhar no processo de construção do SUS, a partir do caminhar do Residente, com suas chegadas e partidas, encantos e desconfortos.
A figura a seguir, ilustra o caminho que fiz na RMS, com os lugares por onde passei em Dourados/MS. São pontos que trazem as instituições de ensino, os campos de prática na rede SUS, incluindo a rede de saúde indígena, espaços de gestão e participação social, entre outros.
O mapa acima além de tracejados e siglas, diz de um movimento em rede, tecendo vínculos e histórias. É interessante observar que ao me aventurar no aplicativo de localização Google Earth, a comunidade indígena não estava registrada automaticamente no mapa, como outros lugares da cidade de Dourados. Durante as vivências, não fiz apenas os caminhos pelas estradas oficiais do município. Conheci e caminhei pelos atalhos criados e recriados pela comunidade. São aqueles localizados nas últimas ruas dos bairros nobres próximos às reservas, que atravessam as rodovias adentrando as estradas da comunidade. Em meio à essas trilhas de terra, barro, com chuva e sol, encontrei cercas que criam fronteiras simbólicas, lixo, buracos e com difícil acesso. Mas também encontrei famílias indígenas caminhando juntas. Meus olhos logo identificaram os telhados e todos os lugares por onde passei e foi esse caminhar nos atalhos das aldeias que me fizeram ilustrar esse chegar e partir, identificando com minha memória os momentos em que pude “estar junto”.
Apresenta-se no cenário da saúde o olhar centrado no biologicismo, desconsiderando história e cultura, de forma curativa e pragmática. Em contraponto, estão as práticas populares junto às terapias alternativas, com práticas de saúde tradicionais, conhecimentos etnomedicinais dos povos indígenas e grupos comunitários. Fui aproximando desse caminho as Políticas de Saúde que trazem visibilidade ao usuário e comunidades tradicionais como a Política Nacional de Humanização (PNH), Educação Permanente em Saúde, Educação Popular em Saúde, Práticas Integrativas e Complementares do SUS, entre outras referências e inspirações.
É importante identificar a interação e a relacionalidade das práticas sociais, onde esse caráter relacional e de múltiplas vozes dizem das relações sociais com ligação ao processo saúde/doença, articulando conceitos e práticas. A intermedicalidade vem de uma realidade de negociações entre agentes políticos. Nesse sentido, é importante o valor da coletividade e autonomia dos povos, com o reconhecimento da pluralidade dos saberes.
A Residência Multiprofissional em Saúde vem para qualificar o SUS, compreendendo a saúde de forma ampliada, com olhares diferentes para o diferente e humanizando o cuidado em saúde de forma integral.
Através da ênfase em Saúde Indígena da RMS, pude perceber que “estar junto” mobiliza os sujeitos coletivos através de importantes encontros. Para ampliar os olhares, conhecer lugares e compreender melhor as relações com “o outro”. A partir de tal mobilidade vou transformando-me, imersa na aventura de “SUStentar”.
Ser residente é morar dentro de si, com disposição para receber! Os caminhos que já fizemos estão do lado de dentro, prontos para fazerem efeito em nossa forma de cuidar e de receber o cuidado, prontos para o Oguata Pyahu, um novo caminhar…
Em anexo, os detalhes desse intenso caminhar, que está além das 5760 horas, já que o caminhar da RMS não cabe no Lattes.
Coloco algumas imagens, para que possam produzir encantamentos e curiosidades, assim como foi comigo e com as companhias especiais que tive… Residentes, Preceptoria, Tutoria, Orientadores de Ensino, a mediadora de lindos Encontros Elenita Sureke Abílio e demais parceiros (as).
Em especial, agradeço a preciosa orientação de Cátia Paranhos Martins, que em meio a muitos desafios, esteve disponível a essa imersão e que trouxe a ideia de contar aqui nossa história!
AbraSUS sempre!
[1]Mba’ eichapa: Expressão de saudação da língua guarani (MOTA, 2015).
[2] Música de Lincoln Macário Mota, Cordel: “O dia que o SUS visitou o cidadão”, de 2003.
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Que narrativa bela e contagiante, Paula. Diminuir a fragmentação entre o pensar e o fazer, como você bem nos chama a atenção, é um dos princípios que regem a nossa empreitada nesta rede também. É também compor com mais um valioso material, a dissertação disponibilizada no post, que a torna uma rede voltada para inúmeras frentes de defesa do SUS. Agradecemos demais o teu relato e a abertura de teu trabalho para todos!