RODA DE CONVERSA PARA DISCUSSÃO DE REFORMA DA CME DO HOSPITAL EVANGÉLICO DE DOURADOS (MS)
A reunião havia sido marcada para uma manhã na sala de estudos do próprio hospital, assim os funcionários da CME poderiam participar sem grandes transtornos de locomoção e tempo. Como cheguei adiantado fui logo organizando as cadeiras em forma de círculo para a discussão em roda, estratégia para que todos possam falar e ouvir numa mesma “altura” de poder.
“- O pessoal mudou a reunião para uma sala da administração do hospital”, disse-me uma funcionária.
“- Como assim? Lá dá pra gente se posicionar em roda?”, perguntei.
“- Sim, lá tem uma mesa redonda”.
Quis, então, confirmar a presença dos participantes convidados e perguntei sobre o arquiteto do projeto de reforma e a funcionária do setor CME. O arquiteto confirmou que viria e a coordenadora da CME também irá participar, disse-me a funcionária. Mas nós havíamos combinado que teríamos a participação de trabalhadores da CME, do pessoal que realiza as atividades da CME, que “põe a mão na massa”, além do pessoal da coordenação.
“- Ah, sim, então nós vamos chamar para a reunião!”
Nos dirigimos para esta sala, do outro lado da rua e fora do prédio do hospital, e iniciamos a nossa escuta primeiramente com uma funcionária com vinte e cinco anos de trabalhos na CME e ela nos contou a sua rotina, seus fluxos, suas dificuldades, …… Vinte e cinco anos de trabalho nesta CME, em horas de trabalho dariam vários mestrados, doutorados e pós-doutorados!!!
Os outros funcionários do hospital, ainda não familiarizados com o “ouvir” o outro, principalmente sendo este outro uma pessoa considerada “não especialista”, intervinham em sua exposição com argumentações baseadas em normativas para justificar alguma conduta julgada não convencional.
Apesar deste episódio, que poderá ser superado a medida que formos implementando novas rodas de conversa e convencendo a todos os participantes da importância das mesmas através dos resultados palpáveis obtidos, chegamos ao final com alterações substanciais de aproveitamento de espaços, fluxos e melhoria na interação entre os funcionários. Saímos com outro projeto, construído de maneira participativa, fruto de uma construção coletiva, democrática, em que valorizamos o encontro de saberes, as experiências já vividas. Em cada rabisco no projeto expressamos e materializamos o protagonismo dos sujeitos que é um dos pilares do conceito de Ambiência que tem por princípio a inclusão de todos os que estejam implicados com o processo de produção de saúde.
8 Comentários
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Por Sérgio Aragaki
Parabéns!
Um trabalho tecido com delicadeza e firmeza para valorização de trabalhadorxs e do trabalho em saúde.
Lembrei de uma pessoa que talvez possa contribuir nesse belo processo: a profa. Catia Paranhos, do curso de Psicologia da Universidade Federal da Grande Dourados.
Abraço
Por paulo figueiredo
A Cátia Paranhos é minha grande amiga e a principal responsável por eu ter entrado neste mundo da Ambiência e da Política Nacional de Humanização. Foi ela que contribuiu para minha formação como Apoiador em Ambiência.
Um grande abraço.
Por catia martins
Olá Paulo, Serginho, Débora e pessoal da RHS, boa noite!
Fazia tempo que eu não passeava por aqui. A RHS está linda e cheia de novidades!!!
Li o post de Paulo e alguns outros também. Preciso dizer o óbvio: estes apoiadores fazem cada coisa linda por ai… Povo corajoso que vai buscando brechas para produzir mudanças. Fico feliz de participar desta história. Sabemos que construir modos democráticos de fazer as coisas não é trivial!
Paulo, vc é um grande apoiador da PNH! Sorte nossa termos vc na discussão da Ambiência! Adorei seu comentário: “Vinte e cinco anos de trabalho nesta CME, em horas de trabalho dariam vários mestrados, doutorados e pós-doutorados!!!” É isso mesmo. O trabalhador tem tantos aprendizados e conhecimentos sobre o seu fazer… Não podemos desperdiçar isso. Continue! Seguimos juntos!
Serginho e Débora, saudades! Agradeço a lembrança.
um abraço, Catia
Por Ricardo Teixeira
Olá Cátia, Paulo, Sérgio,
Que bom que você gostou da nova RHS e suas novidades! Mas o que continua a me encantar nessa Rede (que ecoa e multiplica a experiência da PNH e sua presença na história das práticas no SUS) é a qualidade dos relatos que aqui são compartilhados, a imensa riqueza da experiência produzida cotidianamente no mundo do trabalho no SUS e que aqui tem guarida, uma casa, um ponto de encontro, um lugar pra ser compartilhada, refletida e guardada. Essa é outra característica da RHS (na verdade, sua alma) que só melhora!
Esse relato do Paulo é uma dessas inúmeras pérolas que podemos encontrar por aqui. Aliás, a contribuição do Paulo para esta Rede, para o SUS e para a saúde pública brasileira é enorme!
Sempre vejo alguma nova publicação do Paulo ser destacada, de tempos em tempos, pelos editores/curadores da RHS. Nem sempre consigo ler todas e depois de ler este belo post, me deu vontade de dar uma navegada no blog do Paulo nesta Rede, dando uma olhada em tudo que ele já publicou desde que chegou por aqui. Vale a pena!
https://redehumanizasus.net/usuario/paulo-figueiredo
Com certeza, este blog do Paulo é uma importantíssima referência na web brasileira sobre ambiência, apoio institucional e método da roda!
O que eu acho espetacular é que, desse modo, o Paulo contribui para o aprimoramento do SUS não apenas através de suas ações no cotidianos dos serviços, mas também tendo a generosidade de compartilhar todo esse cabedal de experiência, todo esse manancial de conhecimentos que jorra do mundo do tabalho em saúde, sempre em cuidadas e saborosas narrativas, que nos fazem participar do lugar da experiência.
Parabéns, Paulo! E muito obrigado!
E isso é o que eu acho mais fascinante nessa outra experiência do SUS que é a RHS!
A gente fala em virtual, mas só se virtual remeter realmente ao seu étimo (virtus, vis, isto é, força, potência, força vital), pois eu vejo “fisicamente” toda a vida que se expressa nesses relatos, toda a vida que conspira de modo quase “material” na ideias e afetos que suscitam. E aí, eu fico pensando que a RHS é, de fato, mais um espaço (ciberespaço) em que o SUS (ciberespaSUS) se faz produção de vida, produção de saúde porque produção de vida.
Não é mesmo, Cátia?
Beijos e abraços a todos!
Ricardo
Por catia martins
Por patrinutri
Paulo querido, muito obrigada por provocar esta reunião por aqui!
Esta rede é um espaço mesmo de lindos encontros e muita riqueza!
Saudades deste lindo coletivo que embora em espaço diferentes segue acreditando nos princípios e diretrizes da PNH!
Seu relato me lembrou o texto de Ruben Alves sobre as dificuldades de ouvir e que quem não sabe experimentar perde muita riqueza, perde a chance de aprender um pouco mais, perde a riqueza de se reinventar pela experiência do outro.
Em grupo onde as pessoas não tem o hábito de reunir e muitas vezes limitam-se a cumprir suas tarefas sem um caráter de equipe, há mesmo a necessidade de desenvolver esta habilidade de escutar e, ao mesmo tempo, de respeitar as diferentes opiniões ou olhares sobre um mesmo objeto.
Que riqueza esta roda! Persista, e siga compartilhando conosco , quem sabe possamos lhe apoiar a distância, trocar experiências .
Aí vai a aula do grande Ruben Alves!
ESCUTATÓRIA
Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.
Escutar é complicado e sutil. Diz o Alberto Caeiro que “não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma”. Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Aí a gente que não é cego abre os olhos. Diante de nós, fora da cabeça, nos campos e matas, estão as árvores e as flores. Ver é colocar dentro da cabeça aquilo que existe fora. O cego não vê porque as janelas dele estão fechadas. O que está fora não consegue entrar. A gente não é cego. As árvores e as flores entram. Mas – coitadinhas delas – entram e caem num mar de idéias. São misturadas nas palavras da filosofia que moram em nós. Perdem a sua simplicidade de existir. Ficam outras coisas. Então, o que vemos, não são as árvores e as flores. Para ser ver é preciso que a cabeça esteja vazia.
Faz muito tempo, nunca me esqueci. Eu ia de ônibus. Atrás duas mulheres conversavam. Uma delas contava para a amiga os seus sofrimentos.(Contou-me uma amiga, nordestina, que o jogo que as mulheres do nordeste gostam de fazer quando conversam umas com as outras é comparar sofrimentos. Quanto maior o sofrimento, mais bonita é a mulher e a sua vida. Conversar é a arte de produzir-se literariamente como mulher de sofrimentos. Acho que foi lá que a ópera foi inventada. A alma é uma literatura. É nisso que se baseia a psicanálise…) Voltando ao ônibus. Falavam de sofrimentos. Uma dela contava do marido hospitalizado, dos médicos, dos exames complicados, das injeções na veia – a enfermeira nunca acertava – dos vômitos e das urinas. Era um relato comovente de dor. Até que o relato chegou ao fim esperando, evidentemente, o aplauso, admiração, uma palavra de acolhimento na alma da outra que, supostamente, ouvia. Mas o que a sofredora ouviu foi o seguinte: “Mas isso não é nada…” A segunda iniciou, então, uma história de sofrimentos incomparavelmente mais terríveis e dignos de uma ópera que os sofrimentos da primeira.
Parafraseio o Alberto Caeiro: “Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma.” Daí a dificuldade: a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. No fundo somos todos iguais às duas mulheres do ônibus. Certo estava Lichtenberg – citado por Murilo Mendes: “Há quem não ouça até que lhe cortem as orelhas.” Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos…
Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos, estimulado pela revolução de 64. Pastor protestante (não “evangélico”), foi trabalhar num programa educacional da Igreja Presbiteriana USA, voltado para minorias. Contou-me de sua experiência com os índios. As reuniões são estranhas. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, como se estivessem orando. Não rezando. Reza é falatório pra não ouvir. Orando. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias estranhas. Também para se tocar piano é preciso não ter filosofia nenhuma.) Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito. Pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que julgava essencais. Sendo dele, os pensamentos não são meus. São-me estranhos. Comida que é preciso digerir. Digerir leva tempo. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se falo logo a seguir são duas as possibilidades. Primeira: “Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava eu pensava nas coisas que eu iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado.” Segunda: “Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou.” Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: “Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou. E assim vai a reunião.
Há grupos religiosos cuja liturgia consiste de silêncio. Faz alguns anos passei uma semana num mosteiro na Suíça, Grand Champs. Eu e algumas outras pessoas ali estávamos para, juntos, escrever um livro. Era uma antiga fazenda. Velhas construções, não me esqueço da água no chafariz onde as pombas vinham beber. Havia uma disciplina de silêncio, não total, mas de uma fala mínima. O que me deu enorme prazer às refeições. Não tinha a obrigação de manter uma conversa com meus vizinhos de mesa. Podia comer pensando na comida. Também para comer é preciso não ter filosofia. Não ter obrigação de falar é uma felicidade. Mas logo fui informado que parte da disciplina do mosteiro era participar da liturgia três vezes por dia: às 7 da manhã, ao meio dia e às 6 da tarde. Estremeci de medo. Mas obedeci. O lugar sagrado era um velho celeiro, todo de madeira, teto muito alto. Escuro. Haviam aberto buracos na madeira, ali colocando vidros de várias cores. Era uma atmosfera de luz mortiça, iluminado por algumas velas sobre o altar, uma mesa simples com um ícone oriental de Cristo. Uns poucos bancos arranjados em “U” definiam um amplo espaço vazio, no centro, onde quem quisesse podia se assentar numa almofada, sobre um tapete. Cheguei alguns minutos antes da hora marcada. Era um grande silêncio. Muito frio, nuvens escuras cobriam o céu e corriam, levadas por um vento impetuoso que descia dos Alpes. A força do vento era tanta que o velho celeiro torcia e rangia, como se fosse um navio de madeira num mar agitado. O vento batia nas macieiras nuas do pomar e o barulho era como o de ondas que se quebram. Estranhei. Os suíços são sempre pontuais. A liturgia não começava. E ninguém tomava providências. Todos continuavam do mesmo jeito, sem nada fazer. Ninguém que se levantasse para dizer: “Meus irmãos, vamos cantar o hino…” Cinco minutos, dez, quinze. Só depois de vinte minutos é que eu, estúpido, percebi que tudo já se iniciara vinte minutos antes. As pessoas estavam lá para se alimentar de silêncio. E eu comecei a me alimentar de silêncio também. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. É música, melodia que não havia e que quando ouvida nos faz chorar. A música acontece no silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem. No silêncio, abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós – como no poema de Mallarmé, A catedral submersa, que Debussy musicou. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar – quem faz mergulho sabe – a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Me veio agora a idéia de que, talvez, essa seja a essência da experiência religiosa – quando ficamos mudos, sem fala. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia que de tão linda nos faz chorar. Pra mim Deus é isso: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto…
(Correio Popular, 09/04/1999)
Oi Paulo,
Hoje pela segunda vez li o seu relato na companhia de uma colega de trabalho no HILP, e diante do belo exemplo de trabalho cogerido, valorizando o trabalho em equipe, o método da roda, num planejamento arquitetônico de ambiência, falei para a colega – dá vontade de imprimir o texto e sair colando em todas as obras em andamento da SESAPI, mostrando a importância do fazer em equipe de forma democrática. Entretanto, falamos uma para a outra, vamos fazer melhor, vamos incluir como uma das pautas do próximo encontro do colegiado gestor do HILP, aproveitando a insatisfação de alguns trabalhadores e usuários em relação a uma das áreas que está em construção do hospital, e que não foi discutida com o coletivo de trabalho, e que está causando polêmicas.
Temos um colegiado gestor, onde discutimos as questões mais complexas do hospital, com a inclusão dos trabalhadores, usuários e até representantes das instâncias de participação e de controle social, e por duas vezes, o engenheiro responsável pelas obras foi convidado para participar de duas reuniões, e não compareceu.
Que maravilha o seu trabalho Paulo! Revela a implicação com um fazer diferente, um fazer inclusivo valorizando a construção coletiva na produção de saúde! E continue nos brindando com os seus relatos trazendo essas belas rodas de participação coletiva!
Ah, continuo aguardando as fotos dos espaços humanizados arquitetados por você, conforme comentário feito numa outra publicação sua, lembra?
AbraSUS!
Emília
Por VALERIA ELIANE MARINHO
Parabéns amigo! Quisera eu fazer assim com todos os EIS de Curitiba… mas impossível…
Já fizemos com vários… mas não tão profundamente como vc…
Belo trabalho!
abs